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ECLI:PT:STJ:2008:07P4729.2B

Relator: PIRES DA GRAÇA

Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA VÍCIOS DO ARTº 410 CPP PROVA FUNDAMENTAÇÃO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS ACORDÃO DA RELAÇÃO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA HOMICÍDIO QUALIFICADO MEDIDA CONCRETA DA PENA

Processo: 07P4729

Nº Convencional: JSTJ000

Nº do Documento: SJ200802130047293

Data do Acordão: 13/02/2008

Votação: UNANIMIDADE

Texto Integral: N

Nível de acesso: 1

Sumário



I - É praticamente uniforme neste STJ o entendimento de que para conhecimento do recurso de acórdão final do tribunal colectivo em que venha invocado qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP é competente o Tribunal da Relação.
II - A reforma do CPP operada pela Lei 48/2007, de 29-08, não alterou esse entendimento.
III - A actividade probatória consiste na produção, exame e ponderação dos elementos legalmente possíveis que habilitam o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto.
IV - Prova directa é a que se refere ao thema probandum, aos factos a provar; prova indirecta ou indiciária é a que respeita a factos diversos (instrumentais) do tema probatório, mas que possibilitam ao julgador, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável.
V - Através da exigência de fundamentação consegue-se que as decisões judiciais se imponham não por força da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz – Marques Ferreira, in Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230. Ao mesmo tempo, permite-se a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em condições melhores para fazer um adequado usado do princípio de livre apreciação da prova.
VI - Antes da vigência da Lei 59/98, de 25-08, entendia-se que o art. 374.º, n.º 2, do CPP não exigia a explicitação e valoração de cada meio de prova perante cada facto, mas tão-só uma exposição concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, não impondo a lei a menção das inferências indutivas levadas a cabo pelo tribunal ou dos critérios de valoração das provas e contraprovas, nem impondo que o julgador expusesse pormenorizadamente o raciocínio lógico que se encontrava na base da sua convicção, pelo que somente a ausência total da referência às provas que formaram a fonte da convicção do tribunal constituía violação do art. 374.º, n.º 2 do CPP, a acarretar nulidade da decisão nos termos do art. 379.º do mesmo diploma legal.
VII - Actualmente, face à nova redacção do n.º 2 do art. 374.º do CPP – introduzida pela Lei 59/98, de 25-08, e inalterada pela Lei 48/2007, de 29-08 –, é indiscutível que tem de ser feito um exame crítico das provas, ou seja, é necessário que o julgador esclareça “quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra”.
VIII - O dever constitucional de fundamentação da sentença (art. 205.º, n.º 1, da CRP) basta-se com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como com o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas também dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
IX - A fundamentação decisória não tem que preencher uma extensão épica, sem embargo de dever permitir ao seu destinatário directo e à comunidade mais vasta de cidadãos, que sobre o julgado exerce um controle indirecto, apreender o raciocínio que conduziu o juiz a proferir tal decisão. Não basta, pois, uma mera referência dos factos às provas, torna-se necessário um correlacionamento dos mesmos com as provas que os sustentam.
X - Por outro lado, a lei não exige que em relação a cada facto se autonomize e substancie a razão de decidir, como também não exige que em relação a cada facto fonte de prova se descreva como a sua dinamização se desenvolveu em audiência, sob pena de se transformar o acto de decidir num tarefa impossível.
XI - Aplicada aos tribunais de recurso, a norma do art. 374.º, n.º 2, do CPP não tem aplicação em toda a sua extensão, nomeadamente não faz sentido a aplicação da parte final de tal preceito (exame crítico das provas que serviram para formar a livre convicção do tribunal) quando referida a acórdão confirmatório proferido pelo Tribunal da Relação ou quando referida a acórdão do STJ funcionando como tribunal de revista. Se a Relação, reexaminando a matéria de facto, mantém a decisão da 1.ª instância, é suficiente que do respectivo acórdão passe a constar esse reexame e a conclusão de que, analisada a prova respectiva, não se descortinaram razões para exercer censura sobre o decidido.
XII - O duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento na 2.ª instância. Dirige-se somente ao exame dos erros de procedimento ou de julgamento que lhe tenham sido referidos em recurso e às provas que impõem decisão diversa (e não indiscriminadamente todas as provas produzidas em audiência).
XIII - O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127.° do CPP. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância. O art. 127.° indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e da imediação na recolha da prova.
XIV - Resultando provado, entre o mais, que:
- o arguido e a vítima, A, conheceram-se há cerca de 4/5 anos e viveram juntos durante 2/3 meses, até Março ou Abril de 2004, embora viessem mantendo contacto pessoal e telefónico regular;
- a A gostava do arguido;
- a partir de Janeiro de 2005, o arguido passou a partilhar a sua habitação com R;
- no dia 30-09-2005, entre as 14h00 e as 15h00, a vítima A, após um telefonema, dirigiu-se à habitação do arguido;
- durante o encontro, no interior do quarto daquela habitação, por motivos e em circunstâncias não apuradas, o arguido iniciou uma série de violentos murros e pontapés no corpo da vítima, com especial incidência na cabeça, esganando-a também com as próprias mãos;
- em momento não apurado, arrancou-lhe vários tufos de cabelo;
- e projectou álcool etílico sobre ela, ateando-lhe fogo, quando ainda estava viva;
- a violência dos golpes determinou, por parte da vítima, um jorro de sangue de tal proporção que salpicou a parede do quarto e inundou abundantemente o solo;
- o arguido procedeu à limpeza dos vestígios de sangue que se encontravam no solo, tendo guardado os objectos para tanto utilizados num armário;
- depois da morte da A, o arguido transportou-a para a sala da habitação e introduziu a parte inferior do seu corpo no interior de um caixote do lixo municipal que momentos antes foi buscar à via pública, com vista a ocultar o cadáver;
- o arguido pretendia usar o veículo pertencente à vítima a fim de transportar o seu cadáver para parte incerta, tendo, para o efeito, encostado aquele veículo junto à janela da sala, após o que o retirou dali, não concretizando os seus intentos face às movimentações dos vizinhos no prédio e ao receio de ser surpreendido;
- a morte da vítima foi devida a asfixia por esganadura, associada às lesões traumáticas cerebrais, sendo que quer as lesões traumáticas cerebrais, quer a asfixia por esganadura, só por si, eram aptas a causar a morte da vítima;
- todas as lesões foram provocadas em vida da vítima;
- com a conduta posterior à morte da vítima o arguido visava ocultar o cadáver desta;
- o arguido veio para Lisboa em 2001, altura em que já era consumidor de drogas, consumo que continuou nesta cidade, tendo em 2002 passado a frequentar as consultas de um psiquiatra, que, além do mais, lhe ministrou Buprenorfina e Subutex, consultas essas que se prolongaram, por vezes de forma irregular, até à data da sua detenção;
- antes de preso vivia na casa onde tiveram lugar os factos dos autos, que foi adquirida pelos pais, os quais lhe davam mensalmente cerca de € 450/500€;
- frequentava o 2.º ano de psicologia;
- foi condenado: a) por acórdão de 29-05-2003, transitado em julgado, pela prática, em 29-04-2002, de um crime de roubo, na pena de 2 anos de prisão, suspensa por 3 anos, com regime de prova; b), por sentença de 25-10-2006, não transitada, pela prática, em 26-11-2004, de um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de três meses de prisão;
- tem pendente, pelo menos, mais um processo em que foi acusado, em 17-06-2003, da prática, em 12-03-2002, de um crime de roubo e de burla informática contra a antiga namorada, MC;
mostra-se adequado, tendo em conta as expectativas contrafácticas no restabelecimento da validade da norma violada, e a culpa intensa a delimitar o máximo da pena a aplicar, condenar o arguido, pela prática de um crime de homicídio qualificado, numa pena de 21 anos de prisão [menos 9 meses do que a fixada pelas instâncias], e em cúmulo jurídico com a pena de 8 meses de prisão aplicada pelo crime de profanação de cadáver, numa pena única de 21 anos e 6 meses de prisão [menos 6 meses do que o decidido nas instâncias].

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

Descritores:
 COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA VÍCIOS DO ARTº 410 CPP PROVA FUNDAMENTAÇÃO EXAME CRÍTICO DAS PROVAS ACORDÃO DA RELAÇÃO RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA HOMICÍDIO QUALIFICADO MEDIDA CONCRETA DA PENA