I - As regras sobre repartição do ónus da prova não intervêm quando o facto foi provado, ainda que por aquela das partes a quem não aproveita.
II - Os factos provados podem sê-lo por meios de prova oferecidos por qualquer das partes.
III - Os pressupostos da responsabilidade civil podem verificar-se a partir de presunção legal, nomeadamente de culpa, não tendo a mesma sido ilidida.
Não disponível.
Processo 1178/14.1TBFLG.P1.S2
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – Relatório
1. AA instaurou acção declarativa de condenação contra Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ...e BB, pedindo que as rés sejam solidariamente condenadas a pagar-lhe quantia nunca inferior a € 200.813,50, acrescida de juros de mora desde a citação, e ainda a pagar-lhe todas as consultas, tratamentos e intervenções cirúrgicas, medicamentos que porventura necessite e quaisquer outras despesas a isso inerentes a pagar de acordo com as necessidades que vierem a surgir, a liquidar em posterior execução de sentença.
Para tanto e em síntese, alegou que a primeira ré administra e explora o hospital privado denominado “Hospital ...” ao passo que a segunda ré é médica especialista em ... que presta serviços para a primeira ré através da realização de exames da especialidade. A autora realizou, no referido hospital e executado pela referida médica, entre outro, um exame de videocolonoscopia; sofreu uma perfuração do colon durante a colonoscopia referida, com o diâmetro de cerca de 2 cm, na face anterior do recto superior. Presume que a segunda ré não observou os cuidados a que estava obrigada, agindo com imperícia; descreve as lesões e sequelas sofridas na sequência do descrito evento e reivindica ser indemnizada pelos danos sofridos.
2. A ré BB deduziu incidente de intervenção provocada de Axa Portugal Companhia de Seguros, S.A., arguindo a sua ilegitimidade passiva para a acção. Impugnou, no essencial, os factos alegados pela autora, negando que a perfuração de 2 cm tivesse sido provocada por si durante a colonoscopia. Concluiu pugnando pela improcedência da acção e pela absolvição do pedido.
3. A ré Santa Casa da Misericórdia de ... deduziu incidente de intervenção principal provocada da Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., alegando que celebrou com aquela um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional, por força do qual aquela seguradora passou a garantir a responsabilidade civil por actos ...s e de ... inerentes ao exercício da profissão. Impugnou, no essencial, os factos alegados pela autora. Concluiu pugnando pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido.
4. Por despacho de fls. 124 a 126 dos autos, foi admitida a intervenção principal provocada de Axa Portugal Companhia de Seguros, S.A., e de Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A..
Regularmente citadas as intervenientes principais, as mesmas deduziram as suas contestações onde igualmente impugnam os factos alegados pela autora.
A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., aceita a celebração do contrato seguro invocado pela ré Santa Casa da Misericórdia, mas não aceita que o evento alegado pela autora estivesse no âmbito da garantia prestada por aquele contrato uma vez que a ré BB nunca pertenceu ao quadro próprio e efectivo do Hospital ..., pelo que jamais os prejuízos invocados pela autora se encontrariam cobertos pelo contrato de seguro em causa.
Alega, ainda, que o sinistro alegado pela autora jamais lhe foi participado sendo que a responsabilidade civil garantida no contrato de seguro só garante os danos durante o período de vigência da apólice por erros profissionais cujas consequências sejam reclamadas ao segurado ou à seguradora até ao prazo máximo de um ano a contar da data da ocorrência, nos termos das condições particulares da apólice, o que não aconteceu.
Por fim, alega que a perfuração do intestino é uma complicação possível à realização de um exame de colonoscopia, mesmo cumprindo escrupulosamente todas as regras da legis artis, sendo que a autora, antes de ser submetida ao exame, foi informada dos riscos inerentes à realização do mesmo, tendo autorizado submeter-se ao procedimento.
5. Foi proferido despacho saneador, onde se julgaram improcedentes as excepções processuais arguidas, fixou-se o objecto do litígio e se condensaram os factos assentes e os factos que integravam os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento tendo sido proferida sentença, com a seguinte parte dispositiva:
“Pelo exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, em consequência, decide-se absolver as rés, Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ...– e BB, e as intervenientes do pedido deduzido pela autora AA.
Custas a cargo da autora.”
6. Interposto recurso de apelação, seguiu-se o recurso de revista, tendo este STJ proferido acórdão que determinou que o tribunal da Relação eliminasse as contradições na matéria de facto e procedesse, após essa eliminação, a um novo julgamento da causa, se possível, pelo mesmo colectivo.
7. Os autos baixaram ao Tribunal recorrido, que proferiu novo acórdão, eliminando a contradição – que afinal se havia traduzido num mero lapso.
Em seguida foi proferido acórdão, no qual se decidiu:
“Pelo exposto, decide-se julgar procedente o recurso deduzido, revogando-se a decisão proferida e condenando-se, solidariamente, as rés BB, Axa Portugal Companhia de Seguros, S.A. e Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ...a pagar à autora AA a quantia de €78.313,50 Euros (setenta e oito mil, trezentos e treze euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora desde a citação relativamente à quantia de 5.313,50 Euros e desde a presente decisão no que ao demais concerne, e ainda a pagar-lhe todas as consultas, tratamentos, intervenções cirúrgicas e medicamentos que porventura necessite bem como quaisquer outras despesas a isso inerentes, a liquidar em execução de sentença.
A ré Tranquilidade S.A. vai totalmente absolvida.
Custas por autora e rés condenadas na proporção dos decaimentos respectivos.”
8. Apresentaram recurso de revista as RR BB e a seguradora AGEAS.
8.1. A Ré BB apresentou as seguintes conclusões no recurso de revista (transcrição):
A. No essencial, o Acórdão recorrido padece de erro de julgamento de Direito, por ter feito uma incorreta interpretação e aplicação das normas e princípios estabelecidos quanto ao ónus da prova. Com efeito,
B. Todo o erro emerge do Acórdão em mérito ter, encapotadamente, invertido o ónus da prova do facto n.º 17º que a 1.ª Instância, justa e corretamente, deu como não provado, mas que, agora, o referido Acórdão vem alterar e dar como provado.
C. O ónus da prova deste facto, que encerra dois dos pressupostos da responsabilidade contratual – o pressuposto “ilicitude” e o pressuposto “nexo de causalidade adequada entre o facto colonoscopia e o dano perfuração da face anterior do recto superior” – recai sobre a Autora porque, quanto a estes dois pressupostos, a lei não consigna nenhuma presunção da sua verificação e são aqueles elementos necessários da verificação da causa de pedir complexa fundada em responsabilidade contratual
D. Esse ónus da prova da causa de pedir referida está preceituado no artigo 342.º, n.º 1, do CC, sob a epígrafe Ónus da prova: – «Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado». De facto,
E. Estando perante a responsabilidade contratual e em face prova apreciada, é de concluir que, no caso presente, de todo, não se demonstrou um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, isto é: «a demonstração que o facto colonoscopia foi o facto que provocou a lesão». E essa prova incumbia à Autora, quanto ao facto constitutivo do seu direito!
F. Mesmo que assim se não entendesse, o que não se condescende, por força do artigo 414.º do CPC, sempre teríamos de concluir que tal ónus da prova recaía sobre a Autora. Nesse sentido, dispõe este preceito sob a epígrafe Princípio a observar em casos de dúvida: – «A
dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se
contra a parte a quem o facto aproveita.».
G. A Sentença deu tal facto n.º 17 como não provado porquanto o Tribunal da 1.ª Instância, fundada e prudentemente, não conseguiu formar uma convicção certa de que a colonoscopia em apreço foi a causa da perfuração de 2 cm ut supra aludida. E nesse sentido expõe, de forma clara e motivada, a fundamentação das suas dúvidas, de fls. 37 a 41 da Sentença, para a qual se remete em reiteração. Ora,
H. Contra esta dúvida livremente apreciada, muito bem fundamentada sobre a causa da perfuração, veio o Acórdão recorrido, incompreensível e incorretamente, decidir contra o sustentado na 1.ª Instância, com os seguintes argumentos. Vejamos:
I. Primeiro argumento:
“ (...) Pese embora o doutamente expendido na sentença sob apreciação, fundamentalmente o parecer técnico do Colégio de Gastroenterologia e as dúvidas referenciadas quanto à causa da perfuração do recto, entendemos existir prova bastante para concluir, com um razoável grau de segurança, que a perfuração foi causada pelo exame de colonoscopia.
Procuremos explicar porquê: desde logo, a desconsideração que deve ser feita, a nosso ver, do intervalo de 43 horas entre o exame e as primeiras dores sentidas pela autora. Entendemos a eventual invulgaridade dessa assintomalogia; porém a mesma não será assim tão rara, em especial tendo em conta a idade da autora, e, em si mesmo, não será sequer reveladora. Bastará atentar como, por exemplo, no processo recenseado acima - processo nº 2104/05.4TBPVZ igualmente se verificou que “no dia 22 de Junho de 2002, a autora foi submetida a um exame de colonoscopia, sendo que durante os dois dias que se seguiram à realização daquele exame, colonoscopia, a autora apenas foi acometida de obstipação intestinal (como no caso ora em apreço). Apenas no dia 25 de Junho, da parte da manhã, ou seja, cerca de três dias depois, a autora sentiu dores abdominais, concretamente no fundo da barriga, e vómitos alimentares.”
J. Quanto a este primeiro argumento sustentado no Acórdão, com pressuposto factuais absolutamente diversos, cabe salientar que a ora Recorrente não foi parte no citado processo (n.º 2104/05.4TBPVZ), pelo que não teve a possibilidade de participar e dar o seu contributo para o desfecho dessa ação. Logo, não pode esse argumento contra a ora Recorrente ser tomado em conta para decidir este processo, sob pena de violação do princípio do contraditório - cf artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
K. Segundo argumento:
Ora existe nos autos suficiente prova que aponta neste mesmo sentido de alguma reacção assintomática, particularmente estando em causa doentes mais idosos (como a autora) em que os sintomas tardam normalmente mais a revelar-se. Depois porque o próprio parecer do Colégio de Gastroenterologia indica esse nexo de causalidade entre a realização de um exame de colonoscopia e a perfuração no local encontrado sendo certo que estando em causa a zona anterior do recto superior (e não a zona média ou inferior) esse nexo permanece e reforça-se ao passo que a outra possível causa de perfuração - uso de microlax - mais se encontraria arredada. Note-se que a própria BB indica que o recto terá cerca de 25 centímetros de extensão o que, a nosso ver, praticamente afasta a possibilidade de a perfuração na parte superior do recto se ter devido aos dois microlaxes que constam de um tubo/seringa de cerca de 4 a 5 centímetros.
Além disso, temos depoimentos díspares dos diferentes ...s; fica, porém como «pano de fundo» a certeza de que não haverá situações de «nunca» ou «impossível» nestas matéria em litígio, restando ao aplicador do Direito analisar e optar perante este quadro sempre relativo; decidir implica sempre uma escolha preferivelmente próxima daquela explicação que, face a situações de normalidade, idênticas ao quotidiano, se apresenta como a mais robusta e substanciada.”
L. Praticamente, o Acórdão recorrido acaba por concluir que é com margem de incerteza, ainda que relativa, que opta por estabelecer o nexo de causalidade entre a colonoscopia e a perfuração. Assim, se não há certeza da parte do julgador, em conformidade e cumprimento do disposto nos artigos 342.º, nº 1, do CC, e 414.º do CPC, tem que se dar o facto n.º 17 como não provado, já que é um facto constitutivo do efeito jurídico pretendido pela Autora, integrante da causa de pedir e que aproveita à Autora. Daí concluirmos no sentido de que o Acórdão recorrido violou essas disposições legais.
M. Toda a prova pericial e pessoal, com conhecimentos ...s, foi no sentido de não conseguir, no caso concreto, estabelecer esse nexo de causalidade adequada. Sendo assim, parece-nos que para contrariar tal impossibilidade não bastam os argumentos ora sindicados, que são parcos e pouco categóricos, sendo certo que está em causa do conhecimento e a especialidade a honorabilidade, bom nome profissional e competência da Ré no desempenho da Medicina, mormente de .... Em verdade,
N. A inversão do ónus da prova nos termos prosseguidos torna impossível que alguma vez os ...s deixem de ser condenados, o que viola os princípios jurídico de ordem constitucional de garantia de defesa do réu e da culpa, assim como o princípio de que toda a proposição precisa de sustentação e de prova para ser levada em consideração, conformemente o conteúdo da relação controvertida. Se a prova não é oferecida, essa proposição não tem valor argumentativo e deve der desconsiderada, assim decorrendo da leges artis e das peritagens requeridas para demonstração da realidade dos factos alegados.
O. Terceiro argumento:
“A perfuração do recto exige uma causa exógena - a autora não tinha problemas de saúde que justifiquem outra hipótese - e essa causa externa implica uma intromissão “agressiva” que provoque uma consequência anormal e estranha, como é a perfuração.
Perante duas causas possíveis, em termos ...s, descartada uma delas toleravelmente improvável, resta-nos a outra, logicamente normal e racionalmente expectável. A opção de permanecermos numa situação de dúvida, como doutamente entendeu fazer o tribunal recorrido, justificando, repita-se, com detalhe e profundidade tal conclusão, embora legítima e fundada, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, de afastar. A delimitação estrita das causas geradoras da lesão que são, em concreto, apenas duas e a consolidada impossibilidade de a mesma decorrer da toma de microlax incita, com suficiente probabilidade, à escolha de uma causa que sempre se apresentaria como eloquente num quadro como o descrito nos autos.
Sublinhe-se que o parecer do Colégio ... acaba por subsumir a causa do evento a duas hipóteses que considera possíveis e afasta-se de outras que, de todo modo, não foram minimamente apuradas. A dúvida maior, como vimos, adviria do intervalo temporal entre o exame e o início da sintomalogia mais aguda mas tal facto, de natureza inesperada, não descarta o essencial do ocorrido: entre as duas causas aventadas apenas uma pode ser tida como verdadeiramente sustentada e é essa, salvo melhor opinião, que se apresenta como adequada e credível à luz de um observador médio.
De teor especulativo parece-nos a referência presente nas doutas contra-alegações da ré BB sobre a possibilidade, em forma de interrogação, de a autora ter aplicado algo mais do que apenas microlax (ponto 31) ou ainda a asserção da existência de “intestinos baixos” pelo facto de a Autora ter tido filhos (aventada em alguns testemunhos).”
P. Considera o Acórdão recorrido que é mera especulação a admissibilidade de a Autora ter aplicado algo mais de que apenas microlax ou a admissibilidade de a Autora ter intestinos baixos pelo facto de ter tido filhos. Ora, se naturalmente se pode considerar que é especulação, já que nenhum meio de prova o atesta categoricamente, em verdade não é menos especulação considerar que existe a impossibilidade de a perfuração ter decorrido da toma de microlax, já que essa possibilidade foi aceite por todos os depoimentos de ...s especialistas e relatórios periciais produzidos nos autos. Sendo que,
Q. Existe, sim, a possibilidade de haver nexo de causalidade entre a toma de microlax e a perfuração, pelo que havendo duas ou mais possibilidades de causas de perfuração, não se tendo provado com certeza o que deu causa à mesma, na dúvida devem funcionar as regras do artigo 342.º, n.º 1, do CC, e 414.º do CPC, optando-se por dar como não provado o facto n.º 17 que o Acórdão recorrido deu como provado, como correta e justamente fez a Sentença da 1.ª Instância.
R. Sem a prova de que o facto praticado pela ora Recorrente, 2.ª Ré – a colonoscopia em apreço – foi causa de perfuração, falta a prova da ilicitude do ato e do nexo de causalidade entre aquele facto e este dano.
S. Basta que não se prove um dos pressupostos da Responsabilidade contratual, para que esta não exista, com exceção da culpa, que se presume, nos termos do artigo 799.º, n.º 1, do CC. Daí,
T. Reiterar-se que é de concluir que o Tribunal da 1.ª Instância fez um correto julgamento da matéria de facto e aplicou corretamente o Direito ao caso sub judice, não tendo violado – antes, respeitado pontualmente – qualquer disposição legal.
U. Devendo o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que confirme a douta Sentença da 1.ª Instância.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Excelências doutamente suprirão, deve o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto ser revogado e ser confirmada a Sentença da 1.ª Instância que julgou a ação julgada totalmente improcedente e, em consequência, absolveu as Rés e as intervenientes do pedido deduzido pela Autora AA. Assim decidindo, farão, como se espera, a costumada JUSTIÇA!”.
8.2. A R. AGEAS PORTUGAL – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
“A. A douta sentença proferida pela Primeira Instância esclarece, de forma exemplar como a valoração da prova teve por base a prova pericial realizada (extensamente) nos autos – exactamente pela essência da causa de pedir se fundar nas questões técnicas e científicas – para depois gravitar a coerência e assertividade da demais prova produzida, seja testemunhal, seja documental, isto é, teve por fundamento a análise critica e ponderada dos vários elementos probatórios.
B. Por seu turno - e com o devido respeito, que é muito - o Tribunal a quo, fundamena o Acórdão recorrido em conjecturas, elucubrações, suposições.
C. No Acórdão recorrido, o Tribunal a quo apenas recorre à regra da inversão do ónus da prova em caso de dúvida, pois admite - o que se realça - a dúvida sobre a causa da lesão sofrida pela Autora, aqui recorrida.
D. Mas para que se verifique a obrigação de indemnizar derivada de responsabilidade civil, contratual e extracontratual, necessário se torna a verificação cumulativa dos requisitos enunciados no artigo 483.º do
Código Civil, ou seja, apenas existe obrigação de indemnização quando se tenha verificado um comportamento ilícito e culposo do agente apto a causar os danos sofridos, ou seja, que haja um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
E. Acresce que, no nosso ordenamento jurídico vem consagrada a teoria da causalidade adequada, isto é, constitui mister determinar, tendo em conta as regras da experiência, se era ou não provável que da acção ou omissão resultasse o prejuízo sofrido, ou seja, se aquela ou esta são causa adequada do dano sofrido.
F. Aqui chegados, e em face prova apreciada, apenas se pode concluir que não se demonstrou um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, isto é, que foi o exame de colonoscopia o facto gerador do dano sofrido pela Autora.
G. A prova de tal facto, de acordo com a sobredita teoria da causalidade adequada, incumbia à Autora, por ser facto constitutivo do direito que veio invocar.
H. No que concerne aos factos respeitantes à forma como decorreu o exame de colonoscopia, o Tribunal de Primeira Instância teve em consideração o depoimento prestado pela Ré BB conjugado com o relatório que a própria elaborou, respeitante ao exame de colonoscopia (cfr. fls. 681 dos autos), e com os depoimentos das testemunhas CC, ..., e DD, ..., as duas pessoas que, juntamente com a Ré BB, integraram a equipa clínica que realizou a colonoscopia em causa nos autos à Autora, criaram no Tribunal de Primeira Instância a convicção que o exame de colonoscopia decorreu da forma como se deu como provada.
I. Mas a verdade é que o Acórdão recorrido, à margem desta consideração concreta sobre todo o acervo de prova produzido, acaba por reconhecer que opta por estabelecer o nexo de causalidade entre o exame ... realizado e o dano sofrido com dúvida.
J. Se assim é, entende a Recorrente que, fazendo actuar as disposições constantes dos Artigos 342.º, nº 1 do Código Civil e 414.º do CPC, tem que ser mantida a conclusão alcançada em Primeira Instância do facto n.º 17 se considerar como não provado.
K. As queixas da Recorrida que se encontram anotadas no registo clínico do episódio de urgência do Hospital ...e no boletim de transferência desse Hospital (fls. 30, 362 e 363), para além da obstipação, referem dor “anal” e não outro tipo de dor, designadamente na zona abdominal ou lombar, sendo que a testemunha EE, ... que assistiu a Recorrente naquele episódio de urgência e que subscreveu aqueles registos clínicos, referiu de forma categórica, em julgamento que as queixas eram aquelas e não outras, pois que, se outras fossem, as teria descrito no referido registo.
L. Se entrarmos no campo das suposições, tal como o Tribunal a quo faz, não poderá descartar-se a hipótese de a Recorrida se ter socorrido de outros expedientes mais invasivos que a utilização dos Microlax.
M. Certo é que, não é menos especulativa a consideração de que é impossível que a perfuração possa ter decorrido da utilização dos Microlax.
N. A diferença é que essa possibilidade foi admitida por todos os depoimentos de ... especialistas e relatórios periciais produzidos nos autos.
O. Perante a dúvida insanável sobre a verificação ou não dos factos em crise o Tribunal de Primeira Instância ficou confrontado com obrigação legal de valorar tal dúvida contra quem esses factos aproveitavam, como imposto pelo Artigo 414.º do CPC.
P. Existindo a possibilidade de haver nexo de causalidade entre, pelo menos, a utilização dos Microlax e a perfuração, isto é, havendo plurimas possíveis causas de verificação do dano, não se tendo provado com certeza qualquer uma delas, devem funcionar as regras do Artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e do Artigo 414.º do CPC.
Q. Assim se fazendo a correcta aplicação do direito, deveria o Tribunal a quo ter mantido o julgamento feito pelo Tribunal de Primeira Instância, mantendo o facto n.º 17 como não provado.
R. Sem a prova (cabal) de que o facto praticado pela ora Ré BB foi causa do dano da Autora, falta a prova da ilicitude do acto e do nexo de causalidade entre aquele facto e o dano.
S. Ao decidir como decidiu, o Acórdão recorrido violou o disposto nos Artigos 342.º, n.º 1 do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil.
T. Deverá, por conseguinte, o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que confirme a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância.
Termos em que se requer seja o Acórdão recorrido revogado, e substituído por outro que confirme a douta Sentença do Tribunal de Primeira Instância, assim se fazendo a costumada Justiça.”
Foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
10. De facto
10.1. Pelas instâncias foram considerados provados os seguintes factos (a negrito os alterados pelo TR):
1º - A 1ª ré, Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ..., pessoa colectiva de direito privado, no âmbito do seu escopo social, administra e explora um hospital privado denominado “Hospital ...”, com serviços de atendimento permanente, serviço de medicina física e de reabilitação, serviço de ambulatório e consultas externas, bloco operatório, consultas e exames de especialidade, exames auxiliares de diagnóstico e de hemodiálise (alínea A) dos factos assentes).
2º - A 2ª ré, BB, é médica especialista em ... que presta serviços para a 1ª ré, Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ..., através da realização de exames desta especialidade (alínea B) dos factos assentes).
3º - A ré encontra-se inscrita na Ordem dos ..., e bem assim no Colégio da Especialidade de ... (alínea C) dos factos assentes).
4º - Na relação clínica com a autora, e por solicitação desta, a ré BB, na qualidade de … em prestação de serviços no Hospital ...em ... (da Ré Santa Casa da Misericórdia de ...), realizou exames endoscópicos, com Endoscopia digestiva alta (feito por via oral) e Colonoscopia total, sob sedação, na manhã do dia 31/07/2013 (alínea D) dos factos assentes).
5º - O serviço foi executado pela equipa clínica constituída pela Dr.ª BB como executante, pela Dr.ª ... como anestesista e pela ... DD (alínea E) dos factos assentes).
6º - A autora acordou com a ré Santa Casa da Misericórdia de ... - Hospital ...a realização do exame ... da especialidade de ..., a colonoscopia, referido no anterior ponto 4º, mediante o pagamento de uma quantia monetária da autora àquela ré Santa Casa da Misericórdia de ....
7º - A autora é uma senhora que recorreu ao serviço daquele hospital, em 31/07/2013, para realizar dois exames auxiliares de diagnóstico daquela especialidade na Unidade de Endoscopia Digestiva.
8º - Por conselho do seu ... de família e mediante prévia marcação, a autora foi submeter-se, numa quarta-feira, dia 31/07/2013, pelas 11.30 horas, a uma videocolonoscopia e a uma endoscopia digestiva alta.
9º - Fê-lo sob anestesia, ou seja, com sedação e assistida por anestesista.
10º - Depois de ter feito as competentes preparações, respectivamente, citrafleet para o primeiro exame e jejum para o segundo.
11º - Após o exame, após a realização dos procedimentos de recobro e após a avaliação final feita pela médica anestesista e pela 2ª ré BB, com a concessão da respectiva alta, 2ª Ré BB informou a autora de que estava tudo bem com ela, que podia ir embora para casa.
12º - Após o exame, após a realização dos procedimentos de recobro e após a avaliação final feita pela médica anestesista e pela 2ª ré BB, com a concessão da respectiva alta, foram entregues à autora os relatórios dos exames clínicos que a autora juntou com a petição inicial como docs. nºs 1 e 2, que aqui se dão por integralmente reproduzidos e que correspondem aos documentos juntos a fls. 277 e 278 (2as. Vias dos mencionados relatórios), de onde constam conclusões diagnósticas de não padecer a autora de quaisquer alterações endoscópicas.
13º - A autora regressou a casa pelas 14 horas, almoçou e esteve bem, mantendo-se nesse estado até cerca das 09h30m da manhã do dia 2 de Agosto de 2013, altura em que sentiu um mal-estar que a impediu de tomar o pequeno-almoço.
14º - Cerca de dois dias após os exames, ou seja, no dia 02 de Agosto de 2013, logo pela manhã, cerca das 09h30m, por razões exactas que em concreto não foi possível apurar, mas que, pelo menos, se relacionavam com o facto de a autora não defecar desde os exames e ter a ideia de que estava obstipada, a autora contactou telefonicamente o seu ... de família, Dr. GG, que a aconselhou a tomar um microlax e, se isso não resultasse, a dirigir-se ao hospital.
15º - Nessa manhã, a autora introduziu via rectal, pelo menos, dois microlax, não tendo, mesmo assim, conseguido defecar.
16º - Por razões exactas que em concreto não foi possível apurar, mas que, pelo menos, se relacionavam com o facto de a autora não defecar desde os exames e ter a ideia de que estava obstipada, e ter persistido nessa situação mesmo depois de ter introduzido via rectal, pelo menos, dois microlax, a autora dirigiu-se à Urgência do Hospital ..., da 1ª Ré, levada pela filha HH, apresentando-se muito queixosa devido às dores intensas.
17º - No serviço de Urgência da ré, onde foi prontamente atendida, o ... Dr. EE, fez-lhe R-X abdominal de pé.
17º-A (anterior facto não provado) - O exame de colonoscopia executado pelo ré BB causou uma laceração/perfuração do mesmo, com diâmetro de cerca de 2cm na face anterior do recto superior, constituindo a causa de todos os danos e sequelas descritos nos factos provados.
17º-B (anterior facto não provado) - A laceração de aproximadamente 2 cm. de diâmetro da face anterior do reto superior foi provocada à autora pela 2ª ré BB durante o exame ... de colonoscopia.
18º - O diagnóstico foi de “dor anal/obstipação/Quadro suboclusivo (?)”, pelo que, como o quadro clínico da autora não tinha melhoras, foi enviada de ambulância para as Urgências do Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE., em Penafiel, aos cuidados da Cirurgia Geral.
19º - A autora chegou à Urgência daquele hospital pelas 13:12h, com o diagnóstico de “dor abdominal intensa/severa, localizada aos quadrantes inferiores e proctalgia”.
20º - A proctalgia é uma dor no recto.
21º - Aí foi submetida a vários exames auxiliares de diagnóstico: - TAC do abdómen superior, TAC pélvico, TAC com suplemento de contraste endovenoso.
22º - E aí esteve muito tempo a soro, aguardando pelos resultados das análises laboratoriais e dos TAC, a fim de avaliar se devia ser operada, pois os mesmos eram indispensáveis à determinação do tratamento.
23º - Enquanto aguardava, a autora sofreu dores fortíssimas, tendo-lhe sido ministrado, primeiro paracetamol mais tramadol 200mg/metoclopramida, e, pelas 16:55h, morfina.
24º - A dor, que, pelas 13:44, na avaliação da dor feita, era já de 7 numa escala de 1 a 10, foi aumentando de forma absolutamente insuportável.
25º - Nem a morfina conseguia aliviar-lhe a dor.
26º - A autora, ao longo dessas quase cinco horas de sofrimento, anteviu a morte, e por mais do que uma vez.
27º - Julgando que chegara “a sua hora”, chegou mesmo a pedir à filha que chamasse os seus irmãos, pois queria despedir-se deles.
28º - Entretanto, começou a entrar em convulsão e como o TAC revelara «bolhas de pneumoperitoneu e de ar no mesentério em relação com perfuração» foi proposta e enviada para cirurgia urgente.
29º - Correndo risco de vida.
30º - Pelo que foi directamente do serviço de Urgência para o Bloco pelas 17:39h, com o diagnóstico de perfuração intestinal.
31º - Aí a A. foi, de urgência, submetida a “laparotomia exploradora, tendo-se verificado peritonite difusa de características fecalóides, com origem em laceração de aproximadamente 2 cm de diâmetro da face anterior do recto superior”.
32º - A causa de peritonite foi uma laceração da face anterior do recto superior de aproximadamente 2cm.
33º - Na referida cirurgia, foi efectuada à autora secção do recto e confecção de colostomia, o que significa que a autora passou a ter o seu trânsito intestinal (fezes e gases) desviado para o exterior do seu corpo, para sacos próprios para a sua colecta, através de uma abertura feita directamente na parede abdominal e cólon.
34º - A autora esteve os três dias imediatos à operação sob forte sedação, não dando acordo de si.
35º - Manteve-se internada até ao dia 10/08/2013, data em que teve Alta hospitalar, para domicílio, sendo orientada para consulta externa.
36º - Do relatório de Alta Médica consta no local respeitante ao “Diagnóstico de saída”: “Perfuração de cólon durante colonoscopia”.
37º - Na sequência do internamento de urgência e intervenção cirúrgica a que foi sujeita, a Autora regressou a casa com 45kg de peso, sem forças físicas, nem anímicas.
38º - Ficou acamada, completamente prostrada durante 8 dias.
39º - Não conseguia ingerir sólidos, sendo que, durante 8 dias, apenas conseguiu beber água e líquidos, começando aos poucos a ingerir fruta cozida.
40º - Nos primeiros quinze dias, veio a sua casa uma ... da Unidade de Saúde ... (USF do Centro de saúde de ...) fazer-lhe o curativo no estoma, nos pontos e mudar-lhe “o saco”.
41º - Passando depois a autora a ser levada ao Centro de Saúde, para cuidados de penso.
42º - A autora viu agravados a ansiedade e humor triste de que já padecia e caiu num estado de depressão, pois não aceitava a limitação de ser colostomizada.
43º - Com muita vergonha de si, por ter que andar com “o saco”.
44º - A ponto de não conseguir partilhar a intimidade do quarto com o marido, como sempre, até aí, fizera.
45º - A autora sentia-se também profundamente desconfortável e humilhada sempre que, para mudar o saco, o que acontecia duas ou três vezes por dia, tinha de pedir ajuda a uma das suas filhas.
46º - Só quinze dias depois de ter regressado a casa, e após uma noite em claro, a chorar, a autora conseguiu arranjar coragem e força anímica para, ela própria, fazer o serviço.
47º - Entre a alta hospitalar e Dezembro desse ano de 2013, a autora foi assistida na consulta externa do Hospital de Penafiel para os colostomizados, onde fez várias consultas e tratamentos.
48º - Foi proposta para reconstrução do trânsito intestinal e fez tratamento prévio específico.
49º - Foi internada no mesmo hospital no dia 03/12/2013 para o efeito, onde ficou até ao dia 09/12/2013.
50º - Sendo aí submetida no dia 04/12/2013 a “tratamento cirúrgico de reconstrução do trânsito intestinal”, que decorreu sem complicações.
51º - Após a alta hospitalar, a autora teve que ir, por várias vezes, ao Centro de Saúde – USF da ..., quer para cuidados de penso, quer para retirar os pontos no 10º dia do pós-operatório, tratamento prescrito após alta, no relatório de Alta de 09/12/2013.
52º - A partir daí ficou a ter, por vezes, dor tipo cólica difusa associada a obstipação, que a autora tenta resolver com medidas dietéticas e laxantes.
53º - Passou também a ser tratada por neurologia e medicada com ansiolíticos e antidepressivos para tratamento da perturbação persistente de humor de que passou a padecer em virtude dos factos supra descritos, tratamento que mantém.
54º - Entretanto, desenvolveu uma hérnia paraestomal.
55º - A 30/05/2014 recorreu ao SU do Hospital ..., por dor abdominal intensa.
56º - Após TAC abdominal, que mostrou “hérnia com estrangulamento na região do recto abdominal esquerdo”, teve de ser submetida a nova operação (lise de bridas e reparação de hérnia incisional).
57º - E, teve, alta no dia 03/06/2014.
58º - Após a ocorrência dos factos supra descritos, a autora manifesta grande tristeza e angústia pela verificação dos mesmos e medo de novas complicações.
59º - A autora, nascida em 10-05-1944, tinha à data do exame ..., 69 anos de idade.
60º - Sempre foi uma pessoa autónoma até à data da laceração de aproximadamente 2 cm de diâmetro da face anterior do recto superior supra descrita.
61º - Fazia toda a lide da casa, refeições incluídas, bem como bordados para fora, para além de fazer alguma jardinagem no seu quintal, tudo embora com uma pequena limitação resultante de um problema que anteriormente havia tido num ombro.
62º - E dava todo o apoio ao marido, que tem problemas sérios de visão e que depende muito dela, sendo ela quem o conduzia ao hospital, a tratamentos e a todo o lado.
63º - Desde da ocorrência da laceração de aproximadamente 2 cm de diâmetro da face anterior do recto superior supra descrita, a vida da autora mudou, passando a autora a ter, em consequência daquela laceração e dos tratamentos necessários a que foi submetida, as seguintes sequelas: dor tipo cólica difusa associada a obstipação; perturbação persistente do humor; cicatriz cirúrgica mediana infraumbilical de cerca de 16 cm; e cicatriz de 4 cm no flanco esquerdo.
64º - Em consequência dos factos descritos, a autora sentiu e continua a sentir mágoa e tristeza por se sentir limitada.
65º - As descritas sequelas determinam à autora um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 11 pontos, com repercussão em medida igual nas actividades da sua vida diária, não devendo a autora carregar pesos.
66º - Em consequência da laceração e sequelas supra descritas, a autora passou a necessitar e continuará a necessitar por tempo indefinido de acompanhamento ... regular da especialidade de psiquiatria e de medicação regular de foro psiquiátrico e ocasionalmente de medicação (laxantes) para a obstipação.
67º - Nos períodos pós operatórios – respeitantes às intervenções cirúrgicas supra descritas – e períodos imediatamente subsequentes, a autora necessitou da ajuda de terceiras pessoas (dependendo nesse período da filha (HH) ou da sua irmã (II) ou da empregada para quase tudo) para a ajudarem na sua vida quotidiana, pelo menos 4/h por dia, pois naqueles períodos deixou de conseguir fazer muitas coisas que faziam parte da sua rotina ou ficou muito limitada na realização das mesmas, a saber:
- durante o período que mediou a primeira e a segunda intervenção cirúrgica, ou seja, entre 10/08/2013 e 02/12/2013, a autora necessitou de empregada doméstica, para a auxiliar diariamente nas tarefas da casa;
- a autora não tinha forças, nem condição física, para executar essas tarefas;
- a empregada preparava ambas as refeições, tratava de toda a lide doméstica, das compras pesadas e do jardim;
- o mesmo aconteceu entre 04-01-2014 a 29-05-2014 e de 01-07-2014 até 17-07-2014, na convalescença das segunda e terceira intervenções cirúrgicas.
68º - Após a operação descrita no anterior ponto 56º e até à data da consolidação ... legal da lesão sofrida, consolidação que ocorreu em 22/03/2016, existiu uma elevada probabilidade de a autora sofrer recidivas de hérnias incisionais, que a verificarem-se tornaria necessário o apoio de terceira pessoa à autora para múltiplas tarefas do dia-a-dia até à resolução desse problema.
69º - Nos lapsos temporais indicados no anterior ponto 67º, a empregada trabalhou de segunda a sexta, cinco horas por dia, a € 4 por hora, auferindo 100 € por semana.
70º - Durante esse período, a autora teve que ser acompanhada por especialista de neurologia, no que despendeu 150€.
71º - A autora despendeu 400€ em consulta e relatório de avaliação de incapacidades, que decidiu pedir e realizar para instruir a presente acção.
72º - A autora despendeu 136,50€ pela realização do exame de colonoscopia supra referido.
73º - A autora sofreu dores de grau 6 na escala respectiva de “quantum doloris”, por força das lesões sofridas em particular durante os internamentos hospitalares e as três operações cirúrgicas a que foi sujeita, bem como nas respectivas convalescenças.
74º - No primeiro, em que foi operada de urgência, a autora sofreu dores lancinantes que nem a morfina conseguiu iludir ou suavizar.
75º - Nessa altura, a autora anteviu a sua própria morte.
76º - Sofreu com a antevisão de não mais voltar a ver e conviver com o seu querido marido e filhos, JJ, HH e KK.
77º - A autora correu risco de vida, sendo que poderia ter morrido com a infecção interna (peritonite aguda), se não tivesse sido operada de urgência.
78º - Entretanto, a autora, como consequência do ocorrido, ficou com perturbação persistente do humor.
79º - Esteve colostomizada durante praticamente seis meses.
80º - O que a fazia sentir diminuída, pois nunca conseguiu aceitar essa sua condição, que a fazia sofrer muito.
81º - Nessa altura, a autora chorava frequentemente, perdeu o sono, passando noites e noites sem conseguir dormir.
82º - A autora sente-se deprimida, triste e amargurada por não ser a pessoa autónoma que era antes e com mais alegria.
83º - Nos lapsos temporais indicados no anterior ponto 67º, a autora não conseguia fazer muitas actividades que a ocupavam no seu dia-a-dia, não conseguia bordar, fazer jardinagem, conduzir, fazer as compras para a casa.
84º - Após a consolidação da lesão, a autora passou a poder fazer as tarefas do dia-a-dia, mas com esforços suplementares correspondentes aos 11 pontos do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de que ficou a padecer.
85º - A autora deixou de levar o marido ao hospital.
86º - Os factos descritos angustiam a autora.
87º - A autora limitou a sua vida social, limitou o convívio com amigas e familiares, passando a ficar mais tempo em casa.
88º - À data da propositura da acção, a autora ainda estava em recuperação da terceira operação supra descrita e ainda não tinha chegado ao seu peso normal, sequer.
89º - A autora sempre foi uma senhora vaidosa, com boa figura, que preza a sua imagem.
90º - Sentindo-se, agora, triste e diminuída por ter ficado com a “barriga” com cicatrizes supra descritas que a desfeiam, causando-lhe vergonha de a exibir.
91º - A autora sente-se fragilizada e angustiada pelo que lhe sucedeu.
92º - E, por vezes, sente o mal-estar decorrente da obstipação de que passou a padecer e da dor tipo cólica difusa.
93º - Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, previamente à realização dos referidos exames, a autora assinou os Termos de Responsabilidade, como consentimento para a realização e reconhecimento do risco inerente a cada um dos exames – colonoscopia e endoscopia digestiva alta -, nos termos constantes do documento de fls. 91 e 92 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tendo a autora sido informada, pelo menos por esta via, dos riscos inerentes à realização dos mesmos, tendo, mesmo assim, a autora autorizado submeter-se aos procedimentos propostos.
94º - Os referidos exames decorreram com normalidade, não tendo sido necessária qualquer intervenção de terapêutica, sendo que a intervenção terapêutica teria riscos subsequentemente maiores, tais como biópsias ou polipectomias.
95º - O recobro da paciente/ora autora decorreu dentro do que é normal e habitual.
96º - No momento da alta, foi avaliado o estado da paciente/ora autora e foram-lhe entregues em mão os respetivos relatórios e explanados os esclarecimentos e aconselhamentos adequados decorrentes daquele tipo de exames, com comprovação médica como é efetuado a todos os pacientes.
97º - A alta médica foi dada porque a autora não apresentava ou reportava queixas que a ela obstassem.
98º - Na 48 horas seguintes à realização dos exames, a autora ficou ansiosa com o não funcionamento intestinal.
99º - De acordo com os conhecimentos ... e científicos existentes, é possível/normal que a primeira dejecção pós exame de colonoscopia ocorra volvidas 48 h após a realização daquele exame.
100º - A ré BB realizou o exame de colonoscopia sem que fosse detectado qualquer problema ao longo do mesmo.
101º - As consultas e os exames complementares de diagnóstico que a ré BB efectuava na ré Santa Casa da Misericórdia de ...-Hospital ..., eram realizados de acordo com a sua própria agenda e disponibilidade.
102º - No exercício da sua actividade a primeira ré agia, como age, com inteira independência técnico-científica, seja no que concerne a diagnósticos e prescrições ...-medicamentosas, seja em matéria de intervenções cirúrgicas/exames complementares de diagnóstico e respectivas técnicas utilizadas, seja quanto à oportunidade temporal das intervenções e tratamentos conexos, bem como quanto à observância das demais leges artis.
103º - No caso em apreço, a segunda ré efectuou, no estabelecimento da primeira ré, uma colonoscopia e uma endoscopia digestiva alta à autora, tendo praticado todos os actos ... inerentes à realização de tais exames complementares de diagnóstico com total liberdade, independência e autonomia técnico-científica.
104º - A primeira ré disponibilizou as suas instalações e os materiais necessários à realização dos aludidos exames complementares de diagnóstico, não tendo dirigido à segunda ré quaisquer ordens ou orientações a respeito desses exames.
105º - No caso em apreço, a primeira ré forneceu à autora e à segunda ré todos os meios técnicos e terapêuticos necessários, com padrões elevados de qualidade, à realização dos exames em questão.
106º - O sinistro alegado pela autora jamais foi participado – quer pela primeira ré, quer pela autora – à Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., que o desconhecia por completo.
107º - A perfuração do intestino é uma complicação possível à realização de um exame de colonoscopia - mesmo cumprindo escrupulosamente todas as regras da leges artis - complicação essa que, quando detectada de imediato, se resolve suturando a área atingida.
108º - Aquando da realização do exame de colonoscopia, a autora estava informada e consciente dos riscos que tal exame poderia comportar, conformando-se com eles, aceitando submeter-se ao mesmo.
109º - A interveniente Axa celebrou com a ré BB um acordo de seguro de responsabilidade civil titulada pela Apólice nº ..., nos termos da qual aquela ré transferiu para aquela interveniente a sua responsabilidade por actos ou omissão negligente prestados no exercício da sua actividade profissional de médica gastrenterologista, com o limite de 600.000,00€ (300.000,00€ como sub-limite capital seguro) e uma franquia inicial a cargo da segurada de 10%, com o limite mínimo de 125,00€ para os danos materiais, dando-se, no mais, por reproduzido o conteúdo do documento de fls. 143 (alínea F) dos factos assentes).
110º - A Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., celebrou com a 1ª ré, Santa Casa da Misericórdia de ... – Hospital ...-, a pedido desta, um acordo de seguro do ramo Responsabilidade Civil Geral, titulado pela apólice n. ..., nos termos e condições constantes dos documentos de fls. 161 a 166 e fls. 103 a 107 cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (alínea G) dos factos assentes).
111º - Foi subscrita pela primeira ré a cobertura de “Responsabilidade Civil Profissional”, com o capital de 500.000,00€ e uma franquia de 10% sobre o valor do sinistro, com o valor mínimo de 1.500,00€ (alínea H) dos factos assentes).
112º - Mediante tal acordo, de harmonia com o disposto nas Condições Gerais, Cláusula de Exclusão de Síndroma de Imuno Deficiência Adquirida e dentro dos limites fixados nas Condições Particulares da Apólice, a interveniente Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., comprometeu-se a garantir “…o pagamento das indemnizações que legalmente sejam exigíveis…” à primeira ré “…em consequência de danos patrimoniais e/ou não patrimoniais decorrentes exclusivamente de lesões materiais ou corporais causados involuntariamente a pacientes ou a terceiros em geral, em consequência das circunstâncias a seguir descritas:
Na qualidade de proprietário, arrendatário ou usufrutuário do imóvel destinado à actividade do hospital;
Pelo mobiliário ou outros esquipamentos existentes no imóvel afecto à actividade do segurado;
Pela utilização de material de uso ..., incluindo aparelhos de Raio X desde que utilizados exclusivamente para diagnóstico;
Por danos resultantes de queda total ou parcial de tabuletas, anúncios luminosos e toldos;
Fica garantida a Responsabilidade Civil profissional do corpo clínico (... e ...) que compõe o quadro próprio do estabelecimento de saúde, enquanto ao serviço deste.” (alínea I) dos factos assentes).
113º - Encontra-se estabelecido nas referidas Condições Particulares da Apólice que, para além das exclusões previstas nas Condições Gerais, ficam excluídos da garantia do presente contrato de seguro, os danos:
“…Derivados de factos anteriores à data do início da apólice, ainda que as consequências só se manifestem depois dessa data;
Resultantes da prática de actos para os quais o pessoal ..., para... e de enfermagem não se encontrem devidamente habilitados, nos termos da lei ou regulamentos aplicáveis;
Resultantes da inobservância de disposições legais ou regulamentares que regem o exercício da profissão médica, bem como os resultantes da recusa da prestação de serviços da sua competência;
Causados em consequência de cirurgia estética ou plástica;
Causados em consequência da utilização de aparelhos de electrochoque;
Em consequência de radiação nuclear ou contaminação radioactiva, salvo os resultantes de radiodiagnóstico;
Resultantes de violação do sigilo profissional;
Danos causados em consequência da utilização de pentotal sócio (soro da verdade), bem como os danos resultantes de psiquiatria;
Que estejam em efectiva ou suposta relação com a síndrome de imunodeficiência adquirida (sida) ou dos seus agentes patogéneos;
Por furto ou roubo de bens de pacientes e de terceiros em geral;
Resultantes de Procedimentos curativos ou de práticas que não tenham recebido a anuência das entidades científicas ou profissionais competentes;
Resultantes da Responsabilidade Civil Profissional do pessoal ... e de enfermagem quando não se encontrem ao serviço do estabelecimento seguro ou não façam parte do quadro próprio de pessoal do referido estabelecimento;
Por prejuízos indirectos, lucros cessantes e/ou perdas consequenciais;
Por qualquer tipo de poluição e/ou contaminação.” (alínea J) dos factos assentes)
114º - Do mesmo modo, ficou, ainda, estabelecido, nos termos do acordado no artigo 3.º, n.º 1, das Condições Gerais da Apólice, que ficam excluídos os danos:
- “que devam ser garantidos ao abrigo de seguros obrigatórios” (alínea f));
- “resultantes de lucros cessantes, paralisações de actividade de perdas indirectas” (alínea g));
- “resultantes de reclamações baseadas em acordos ou contratos particulares celebrados entre o terceiro e o segurado, na medida em que a responsabilidade que daí resulte exceda a que o segurado estaria obrigado na ausência de tal acordo ou contrato.” (alínea h)). (alínea L) dos factos assentes).
10.2. Foram considerados não provados os seguintes factos:
1º - Após a realização do exame de colonoscopia referido nos factos provados e antes da mesma ter tido a respectiva alta, a autora tivesse referido à ré BB, ou à ... ou à anestesista que constituía a equipa, queixas de dor abdominal ligeira.
2º - E bem assim que, nessa altura, lhe tivesse sido referido que tal não era sintoma relevante e que provavelmente se devia à presença de gases no intestino (aerocolia).
3º - Passadas 48 horas sobre os exames referidos nos factos provados, ou seja, no dia 02 de Agosto de 2013, a autora tivesse sentido, logo pela manhã, dor abdominal violenta, a nível abdominal e lombar.
4º - A autora estivesse, desde o exame de colonoscopia referido nos factos provados, obstipada e com dores abdominais e lombares.
5º - Apesar do laxante ou dos microlax referidos nos factos provados, a dor abdominal e lombar tivesse persistido, tornando-se cada vez mais intensa, e bem assim que a autora se tivesse dirigido ao serviço de urgência referido nos factos provados por sentir dores abdominais violentas, a nível abdominal e lombar, e que estas se tivessem tornado insuportáveis.
6º - A dor retal referida em 20º dos factos provados se caracterize por uma sensação extremamente dolorosa, localizada de 5 a 10 cm dentro do reto, semelhante a uma cãibra.
7º - Após a operação referida em 56º dos factos provados, a autora tivesse complicação infecciosa, que foi tratada conservadoramente.
8º - A autora sempre tivesse sido uma pessoa saudável até à data da colonoscopia.
9º - [1](eliminado)
10º - Após a data da consolidação ... legal da lesão descrita nos factos provados e por causa dela e das sequelas sofridas, a autora tivesse continuado a necessitar da ajuda de terceiras pessoas para a ajudarem na sua vida quotidiana, e bem assim que, a partir daquela data, a autora tivesse deixado de conseguir fazer muitas coisas que faziam parte da sua rotina.
11º - Em consequência da laceração sofrida e dos tratamentos a que foi submetida, a autora tivesse ficado com as seguintes sequelas: vómitos fáceis; dificuldade de permanecer em bipedestação mais do que alguns minutos; dificuldade em efectuar tarefas que implicam flexão e extensão do tronco; grande dificuldade em conduzir automóvel, excepto em curtos trajectos; cefaleia de tensão; dores difusas à palpação; e dor e limitação nos movimentos de flexão e de extensão do tronco.
12º - As sequelas dadas como provadas tivessem determinado à autora uma incapacidade geral parcial permanente – défice da integridade física – nunca inferior a 23 pontos.
13º - A autora necessite no futuro de tomar regularmente analgésicos e regularmente laxantes.
14º - Após a consolidação ... legal da lesão sofrida, existisse uma elevada probabilidade de, ao longo da sua vida, a autora sofrer recidivas de hérnias incisionais.
15º - Após a consolidação ... legal da lesão sofrida, existisse uma elevada probabilidade de, ao longo da sua vida, poderem acontecer mais complicações ao nível do trânsito intestinal, designadamente de oclusão.
16º - No futuro, a autora necessite de apoio de terceira pessoa para múltiplas tarefas do dia-a-dia, pelo menos 4 h/dia, em consequência da lesão e sequelas dadas como provadas.
17º [2](eliminado)
18º - A ré BB não tivesse adoptado a técnica, perícia e cuidados adequados ao exame em causa.
19º - Com o respeito das leges artis, e dentro dos padrões científicos actuais, uma colonoscopia não pudesse ser lesiva para a saúde do examinado.
20º - Em consequência da lesão sofrida, a autora tivesse padecido de uma ITA de 267 dias.
21º - Após a consolidação ... legal da lesão sofrida, a autora não possa fazer muitas actividades que a ocupavam no seu dia-a-dia, não consiga bordar, fazer jardinagem e conduzir.
22º - Em consequência das cicatrizes sofridas e descritas nos factos provados, a autora tivesse deixado de ir para a praia, como fazia habitualmente no Verão.
23º - A situação descrita em 92º dos factos provados ocorra diariamente.
24º - A ocorrência de saúde alegada pela autora tivesse decorrido do facto de esta ter ficado, nas 48 horas seguintes à realização dos exames, ansiosa com o não funcionamento intestinal.
25º - Nas 48 h seguintes à realização da colonoscopia, para além dos microlax referidos no ponto 15º dos factos provados, ao tentar aliviar-se dessa situação de desconforto, a autora tivesse introduzido outros clisteres de limpeza intestinal por via retal e tivesse usado outras técnicas para esse fim, e bem assim que, na sequência desses procedimentos, se tivesse magoado.
26º - Com a introdução dos dois microlax referida em 15º dos factos provados, a autora se tivesse magoado.
27º - Para além dos microlax referidos no ponto 15º dos factos provados, a Autora tivesse feito, após os exames em causa, outros tratamentos de limpeza trans-retais, como seja a realização de mais dois clisteres de limpeza via retal, por orientação própria ou médica.
De direito
11. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recursos, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso.
11.1. As questões suscitadas na revista da Ré BB são as seguintes:
1) saber se o TR violou as regras de repartição do ónus da prova ao alterar a matéria de facto dando como provado o facto 17-A;
2) saber se houve erro de julgamento, por ter sido decidido que havia lugar a responsabilidade civil da Ré quando faltaria um dos pressupostos essenciais da mesma responsabilidade – o nexo causal entre o facto ilícito e o dano;
3) saber se ocorreu alguma inconstitucionalidade por se ter presumido o nexo causal entre o exame ... e o dano – correspondente à alegação de que a inversão do ónus da prova nos termos prosseguidos torna impossível que alguma vez os ...s deixem de ser condenados, o que viola os princípios jurídico de ordem constitucional de garantia de defesa do réu e da culpa.
11.2. As questões suscitadas pela revista da AGEAS são as mesmas suscitadas pela revista da R. BB, salvo a questão da inconstitucionalidade, pelo que serão as questões analisadas em conjunto.
12. Conhecendo da 1ª questão:
Como já tivemos oportunidade de afirmar, no nosso anterior acórdão:
“Diz a lei civil o seguinte:
Artigo 342.º (Ónus da prova)
1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.
3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Artigo 349.º (Noção)
Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Artigo 351.º (Presunções judiciais)
As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal.
Diz o CPC o seguinte (art.º 414.º) Princípio a observar em casos de dúvida
A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.
A jurisprudência deste STJ já teve repetidas oportunidades de se pronunciar sobre o modo como se devem articular os preceitos citados.
É entendimento uniforme que, na fixação dos factos provados, não releva quem carreou para os autos os meios de prova nem quem provou os factos, e que as regras de repartição do ónus da prova só intervêm quando não se demonstrou um facto relevante. É nessa circunstância que o juiz se defronta com a dúvida de saber como decidir, já que o facto – essencial – não foi demonstrado. É também nesta situação que intervém as regras sobre repartição do ónus – e não da situação de o facto ter sido provado.”
Tendo o tribunal considerado provado – pelos meios de prova disponíveis nos autos e de que o tribunal se pode socorrer – que a perfuração foi causada pelo exame ... e por causa dele – factos 17ºA e 17º B – não relevam as regras sobre distribuição do ónus da prova, que só intervêm quando um facto não foi provado e se afigura essencial para a solução jurídica.
Outras referências que se encontram no acórdão recorrido ao ónus da prova aparecem apenas na parte relativa ao afastamento da presunção de culpa – legalmente estabelecida na responsabilidade contratual. Tendo ai o tribunal considerado que a Ré, BB, não conseguiu convencer o tribunal de que não teria tido qualquer “culpa”, ainda que leve nos danos provocados ao A., não se considera afastada a presunção legal, tendo o tribunal de julgar a causa utilizando o pressuposto legal presumido – facto ilícito culposo – nada de errando se identificando no raciocínio e na decisão recorrida.
Cumpre ainda referir que, quaisquer alusões a meios de prova, e ao modo como estes foram analisados, é questão que está fora do controlo do STJ – pois este Tribunal só conhece de Direito e, mesmo nas situações em que vem suscitada uma questão jurídica sobre a definição dos factos provados, a mesma pressupõe que a questão tenha sido suscitada pelos recorrentes nas conclusões do recurso.
Não procede o argumento de ter sido violado o regime legal relativo ao ónus da prova.
13. Quanto à segunda questão – a de saber se estavam ou não preenchidos todos os requisitos de que a lei faz depender uma condenação em indemnização por facto ilícito, há que dizer o seguinte.
No acórdão recorrido a questão da responsabilidade civil – responsáveis e pressupostos – foi assim tratada:
“Importa agora discernir, à luz dos factos definitivamente apurados, qual a solução jurídica para o caso concreto em apreço. Com a nova configuração factológica em particular a que concerne ao novo facto que emerge do anterior facto não provado 17. importa proceder à devida subsunção de direito.
Em causa nos autos está um contrato; sabe-se que destinado à realização de um exame ..., ou seja, um contrato de prestação de serviços ...s (cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Março de 2008, www.dgsi.pt, proc. nº 08A183), sem função curativa.
Na execução da obrigação contratualmente assumida, a 2º ré perfurou o recto superior da autora.
Nuclear será, a nosso ver, o cumprimento imperfeito deste contrato de serviços .... Ora, neste contexto, sabe-se que a perfuração geradora dos danos e sequelas descritos na sentença e alvo de pedido indemnizatório ocorreu durante e por causa da execução do contrato[3] destinado à realização de um exame ...; objectivamente ocorreu uma lesão da integridade física da autora, não exigida, nem querida, pelo cumprimento do contrato.
Poderia aventar-se que, em si mesmo, este exame, pela sua natureza e características, sempre constituiria uma intromissão na integridade física da autora; simplesmente nisso consentiu a própria, assumindo os riscos decorrentes.
Mas, surge naturalmente como óbvio que esse consentimento da autora não abrange as lesões demonstradas neste processo e que advém de uma situação por esta nunca consentida – a perfuração do recto.
Sabe-se que a realização da colonoscopia implica a utilização de métodos dos quais pode resultar, sem que se prove qualquer incidente culposo, a perfuração do intestino, ainda que em casos raros; o que significa que o profissional que a executa há-de adoptar os procedimentos próprios do exame com a específica preocupação de tentar evitar que haja perfuração.
Pode assim entender-se que está em causa um “dever imposto pela regra de que, no cumprimento dos contratos, cada contraente deve ter na devida conta os interesses da contraparte” (nº 2 do artigo 762º do Código Civil); e que, sendo violado, acarreta a responsabilidade do ..., nos termos próprios da responsabilidade contratual (artigo 798º do Código Civil).
Citando “data venia” o Acórdão do STJ de 1 de Outubro de 2015, relatado pela Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, cuja fundamentação seguimos de perto, “está em causa no caso presente a “violação” de “deveres de protecção, de conduta ou laterais (para referir algumas das designações que têm sido utilizadas) caracterizados “por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de protecção à pessoa ou aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes”, resultantes da sua “conexão com o contrato” (Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, reimp, Coimbra, 1982, pág.337 e segs.)”.
Em abstracto, a perfuração do intestino pode ocorrer ainda que sejam adoptados os procedimentos devidos na realização de uma colonoscopia; isto nada tem a ver com imperícia médica que, aliás, no caso não se demonstrou.
Perante a dúvida e desconhecendo-se as causas pelas quais a colonoscopia resultou na dita perfuração, deverá aplicar-se o regime globalmente definido para a responsabilidade contratual (nº 2 do artigo 799º do Código Civil), presumindo-se a culpa do réu.
Caberia aos diversos réus, em particular à ré médica, ilidir essa presunção (nº 1 do artigo 344º do Código Civil), demonstrando os actos que concretamente praticou para evitar a perfuração ocorrida durante a colonoscopia.
Nada se sabe sobre essa matéria até porque a Dra. BB não logrou detectar o momento em que a perfuração ocorreu durante o acto ... e, por isso, nada nos pôde informar sobre os procedimentos adoptados para a debelar.
Presumida a culpa e não estando em causa o preenchimento dos demais pressupostos da responsabilidade civil, claramente verificados, o pedido de indemnização deve proceder (artigo 563º do Código Civil).
Cumpre agora apurar o montante dos danos e os responsáveis por esse pagamento na condenação a proferir sabendo nós que, no Tribunal da Relação, opera a regra da substituição imposta designadamente pelo artigo 665º, nº2 do Código do Processo Civil que obriga este tribunal de recurso a conhecer de todas as questões, mesmo as tidas por prejudicadas pelo tribunal recorrido.”
No acórdão recorrido faz-se uma análise dos factos relevantes e um enquadramento jurídico dos mesmos em termos de dali se retirar a conclusão de estarem preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil: facto ilícito, dano, nexo de causalidade entre facto e dano; culpa do lesante (presumida, por não ter a R. BB, conseguido ilidir a presunção legal de culpa, existente na responsabilidade civil contratual).
Não se vê, nem se alcança o sentido das dúvidas suscitadas pelas RR. quanto à falta de algum dos pressupostos da responsabilização.
Improcede a segunda questão suscitada.
14. No que respeita à alegada inconstitucionalidade - por se ter presumido o nexo causal entre o exame ... e o dano – correspondente à alegação de que a inversão do ónus da prova nos termos prosseguidos torna impossível que alguma vez os ...s deixem de ser condenados, o que viola os princípios jurídico de ordem constitucional de garantia de defesa do réu e da culpa, sempre se diria: 1) a presunção de culpa regulada na responsabilidade civil contratual não está regulada para a situação específica da responsabilidade médica; 2) não se consegue perceber porque motivo uma presunção de culpa – que permite a prova do contrário – há-de ser inconstitucional, sem argumentação adicional que explicite em que termos essa inconstitucionalidade se deve ter por adquirida; 3) s.m.o., não se considera que a opção legal de presumir a culpa, invertendo o ónus da prova, possa ser inconstitucional para a Ré e a necessidade de prova de todos os elementos/pressupostos da responsabilidade civil para a A. já pudessem não o ser, uma vez que – parece-nos – a parte mais carecida de protecção neste relação jurídica é o paciente.
Improcede a alegada inconstitucionalidade.
III. Decisão
Pelos fundamentos indicados, são negadas as revistas das RR., confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelas RR., em partes iguais.
Lisboa, 18 de Fevereiro de 2020
Fátima Gomes (Relator)
Acácio Neves
Fernando Samões
[1] Passou a facto provado 17-B.
[2] Passou a facto provado 17ºA.
[3] Sublinhado nosso.