I. A contradição de acórdãos, sobre a mesma questão fundamental de direito, a que alude o n.º 1 do artigo 688º do CPC, enquanto pressuposto da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, para além de dever ser expressa (que não meramente implícita) e determinante para as soluções alcançadas no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, pressupõe a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente díspar, do mesmo quadro legal.
II. Inexiste tal identidade quando num caso (do acórdão fundamento) está em causa a privação da utilização de um veículo sinistrado em consequência de um acidente de viação com responsabilidade baseada num facto ilícito (violação de normas estradais) que, para além de ser passível de uma normal utilização, vinha sendo efetivamente utilizado e no outro caso está em causa a não utilização de dois lotes, de cuja utilização os autores estão privados, no âmbito de um negócio de permuta de lotes realizado com o réu (não sendo feita a prova de qualquer utilização dos mesmos).
III. Inexiste contradição nas soluções jurídicas a que se chegou em ambos os acórdãos, quando no acórdão recorrido se seguiu o entendimento de que o direito à indemnização dependia não só da prova da privação do uso como também de uma concreta utilização relevante do bem e no acórdão fundamento se seguiu no essencial o mesmo entendimento.
IV. Isto, na medida em que neste se considerou que a indemnização do dano decorrente da privação do veículo tem lugar quando o proprietário do veículo danificado deixa de dele poder dispor e gozar livremente, que a privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário e que quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente.
Não disponível.
Recurso de Uniformização de Jurisprudência
Proc. N.º 1721/12.0TBMRG.C2.S1-A
Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Inconformados com o nosso acórdão de 30.04.2019, proferido no processo principal, que, para além de conceder parcialmente a revista ao réu Município da Marinha Grande, lhes negou a revista, vieram os autores AA e mulher BB interpor recurso para uniformização de jurisprudência.
Tal recurso cinge-se à decisão de manter a absolvição do réu (decidida por ambas as instâncias) relativamente ao pedido de indemnização referente à privação do uso dos seus prédios (identificados nos pontos 1 e 3 dos factos provados).
E o recorrente invoca como Acórdão-Fundamento o Acórdão do STJ de 08.11.2018, transitado em julgado, proferido no Proc. Nº 1069/16.1T8PVZ.P1.S1 – cuja certidão juntou (fls. 18 a seguintes).
Relativamente à questão da admissibilidade do recurso (o que ora releva), formularam as seguintes conclusões:
1ª – O douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, aqui em apreciação, absolveu o réu do pedido de indemnização pela privação do uso de bens imóveis.
2ª - Assim, o Acórdão-recorrido propugna que, para a indemnização do dano da privação de uso de bem, tem de provar não só a privação do uso mas também a prova concreta de uma utilização relevante do bem.
3ª - E no Acórdão-recorrido defende-se que nada se provou relativamente à efetiva perda de efetivas utilidades dos lotes, por parte dos autores.
4ª - Por sua vez, no Acórdão-fundamento o dano decorrente da privação de uso constitui um dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, unicamente pela privação do uso e fruição de um bem.
5ª - E pode ler-se no Acórdão-fundamento a privação do uso se traduz na perda da utilidade desse bem e que essa utilidade tem valor pecuniário.
6ª - Apesar de não se alegar e/ou não demonstrar qualquer prejuízo efetivo como dano emergente ou lucros cessantes, há um dano ressarcível e, consequentemente, o direito a ser indemnizado pela privação do uso com base na equidade (artº 566°, n° 3, do CC).
7ª - Assim, ambos os Acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação ou das mesmas normas jurídicas, há identidade de aspetos entre ambos os Acórdãos, e a questão fundamental de Direito é exatamente a mesma: a aceitação ou não, do dano de privação de uso de um bem, como geradora de responsabilidade civil.
8ª - Em consequência, e salvo melhor opinião, há contradição entre o Acórdão-recorrido e o Acórdão-fundamento, devendo ser admitido o presente recurso.
Nas suas contra-alegações o recorrido Município da Marinha Grande tomou posição:
- No sentido da inadmissibilidade do recurso, uma vez que o acórdão recorrido não pôs termo ao processo, na medida em que nele se anulou o acórdão da Relação na parte em que nele se condenou o réu no pagamento das quantias despendidas pelos autores em IMI e se ordenou que a Relação conheça da invocada prescrição de tal direito;
- No sentido da inexistência de contradição entre os acórdãos em questão.
Notificados para querendo tomar posição sobre a questão da inadmissibilidade do recurso, os recorrentes vieram tomar posição no sentido da sua admissibilidade e o recorrido veio reafirmar a sua posição.
Por despacho do Relator, de 12.11.2019, o recurso não foi admitido.
II
Notificados de tal despacho, vieram os recorrentes (autores), AA e mulher BB, reclamar para a conferência, pedindo a revogação daquele despacho e que, em sua substituição, seja proferido por acórdão que admita o recurso.
Alegam em resumo que, tendo-se considerado no despacho objeto da reclamação que os quadros factuais subjacentes a ambos os acórdãos (acórdão recorrido e acórdão fundamento) não são essencialmente idênticos, tal diferença não pode servir para a recusa do recurso e que essa diferença não existe.
Mais alegam que, contrariamente ao que se considerou no despacho, as soluções jurídicas a que se chegou em ambos os acórdãos são efetivamente contraditórias.
E, mais alegam ainda que, tendo o despacho reclamado considerado ainda, como fundamento da rejeição do recurso, que a recusa da indemnização peticionada pelos autores ora recorrentes pela privação do uso dos prédios, se baseou na inexistência de ilicitude, tal afirmação não é correta, na medida em que o afastamento do direito à indemnização não radicou na responsabilidade contratual e na inexistência de ilicitude da mesma e que, na verdade existe ilicitude, uma vez que o réu Município incumpriu com a permuta.
A parte contrária (réu Município da Marinha Grande) não respondeu.
Colhidos os vistos, cumpre decidir:
III
Foram os seguintes os factos dados como provados em ambos os arestos:
No acórdão recorrido:
“1. O prédio urbano composto por lote de terreno para construção urbana, sito no lugar de ..., freguesia e concelho de …., que confronta do Norte com terrenos camarários, do Sul com o lote de terreno ..., do Nascente com terrenos camarários e do Poente com futuro arruamento, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de …. com o número ..., está inscrito a favor dos autores através da Ap. 25 de 1967/09/21.
2. O prédio urbano composto por lote de terreno para construção urbana, sito no lugar de ..., freguesia e concelho de …., que confronta do Norte com o lote de terreno ..., do Sul com terrenos camarários, do Nascente com terrenos camarários e do Poente com arruamento, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o número …., está inscrito a favor dos autores através da Ap. 15 de 1999/11/03.
3. O prédio urbano composto por lote de terreno para construção urbana, sito no lugar de ..., freguesia e concelho de …., que confronta do Norte com o lote de terreno …., do Sul com o lote de terreno n.º …., do Nascente com terreno e do Poente com arruamento público, inscrito na matriz predial urbana da mencionada freguesia sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de … com o número …., está inscrito a favor dos autores através da Ap. 4 de 1999/07/08.
4. O prédio referido em 1) foi adquirido ao réu pelos autores, em hasta pública, em 31 de Agosto de 1965, pelo preço de 128.100$00, a que corresponde o contravalor de € 638,98 (seiscentos e trinta e oito euros e noventa e oiro cêntimos), através do Alvará n.º ….
5. O referido lote foi adquirido com a condição de os autores nele fazerem construções no prazo de um ano a contar da data da arrematação e a concluí-las completamente no prazo máximo de dois anos (condição 2ª), sob pena dos compradores serem expropriados pela mesma Câmara por metade do valor arrematado nos termos da legislação em vigor.
6. Os autores nunca edificaram qualquer construção neste prédio.
7. O prédio identificado em 3) foi adquirido ao réu pelos autores em 23 de Agosto de 1973, em hasta pública, pelo preço de 325.500$00, a que corresponde o contravalor de € 1.623,59 (mil seiscentos e vinte e três euros e cinquenta e nove cêntimos), através do Alvará n.º …
8. O referido lote foi adquirido com a condição de os autores iniciarem nele a construção no prazo máximo de um ano a contar da data da arrematação e a conclui-la completamente no prazo máximo de dois anos (condição 2ª do referido Alvará), sob pena de reversão do lote em questão para a Câmara Municipal da Marinha Grande, por via da expropriação, por metade do valor da arrematação nos termos da lei das expropriações em vigor naquela data.
9. Os autores nunca edificaram qualquer construção neste prédio.
10. O prédio identificado em 2) foi objeto de contrato promessa de compra e venda outorgado entre o autor e CC, datado de 20 de Outubro de 1973, através do qual aquele declarou prometer comprar e este declarou prometer vender o aludido imóvel pelo preço de 200.000$00, a que corresponde o contravalor de € 997,60 (novecentos e noventa e sete euros e sessenta cêntimos).
11. Em 14 de Setembro de 1999, os autores celebraram escritura de justificação no Cartório Notarial da …., a cargo da Notária DD, por via da qual declararam ser donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do seguinte prédio: “urbano, composto de lote de terreno para construção urbana, com a área de dois mil e cem metros quadrados, sito em ..., freguesia e concelho de …., a confrontar do norte com Lote ..., do sul e nascente com Terrenos Camarários e do poente com Arruamento, inscrito na respetiva matriz, em nome do justificante marido sob o artigo número ...º com o valor patrimonial de 20.527.500$00, e atribuído de vinte um mil contos…”. Mais declaram os autores que o supra referido prédio era “proveniente de um loteamento efetuado antes da entrada em vigor da lei dos loteamentos, que declaram não estar descrito na Conservatória do Registo Predial de …, nem nunca ter feito parte de nenhum ali descrito, nomeadamente do descrito sob o número duzentos e cinquenta e oito, do Livro ...”. Pelo mesmo instrumento, os autores declararam que o prédio em questão veio à sua posse por “compra efetuada no ano de mil novecentos e setenta e seis à sociedade Sousa & Sousa, Lda., com sede ao tempo na cidade da Marinha Grande”, e bem assim que há mais de vinte anos que “possuem o dito prédio em nome próprio, sem oposição de quem quer que fosse desde o seu início, posse que sempre exerceram, sem interrupção e ostensivamente, com conhecimento de toda a gente e traduzida em atos materiais de conservação, defesa e fruição, nomeadamente utilizando-o, procedendo à limpeza do terreno e pagando os respetivos impostos, sendo por isso uma posse pacifica, contínua e pública” e que, por isso, “adquiriram tal prédio por usucapião, não tendo todavia, dado o modo de aquisição documento que prove o seu direito de propriedade perfeita.”
12. A sociedade “Sousa & Sousa, Lda.” solicitou ao Réu autorização para ceder ao Autor o lote de terreno referido em 2), pedido que o Réu deferiu em 25/01/1979.
13. À data da aquisição dos prédios referidos em 1) e 3) pelos Autores, o Réu tinha previsto destinar o local onde os mesmos se inseriam (...) a zona industrial do concelho de …., tendo os Autores adquirido, pelo menos, os lotes supra identificados sob os pontos 1) e 3), para neles edificarem as instalações da sociedade denominada “Litografia Gisarte, Lda.”, que se dedica à embalagem de papel e cartolina e serigrafia, e que tinha instalado o seu estabelecimento comercial noutro local.
14. Com a aquisição dos aludidos prédios, os Autores pretendiam transferir para os mesmos a sede da sociedade “Litografia Gisarte, Lda.”, tendo intenção de aí edificar umas novas instalações para o exercício da atividade comercial da mesma, de forma que toda a atividade da mesma seria transferida para aqueles prédios, tendo sido este o motivo pelo qual investiram na aquisição dos mesmos.
15. Em data que não se consegue precisar mas que situa entre os anos 1974 e 1975, o Réu edificou nos prédios referidos em 1) e 3) um bloco de moradias e edifícios destinados a habitação social.
16. Em reunião realizada 13 de Julho de 1976, o Réu deliberou o seguinte: “existem três lotes de terreno para construção, que foram vendidos por esta Câmara Municipal, sendo dois propriedade do Senhor AA e um da firma ‘Sousa & Sousa, Lda.’ Desta vila. Tem este município necessidade de fazer uma permuta destes lotes por outros a ceder na mesma zona, mais a Sul, em virtude de: 1. Ter construído um bloco de moradias que, em parte, foi instalado naqueles terrenos; 2. Por desejar libertar o restante terreno para promover a sua cedência para construção de uma decidido, por unanimidade, mandar demarcar os terrenos a permutar, a fim de se exararem os necessários documentos legais”.
17. Os autores aceitaram a referida permuta antes do dia 21 de Dezembro de 1976.
18. No dia 21/12/1976, a Comissão Administrativa reconheceu a necessidade de o Município fazer uma permuta de uns lotes de terreno que vendeu ao Senhor AA e situados no ... por outros a ceder-lhe na mesma zona, mais a Sul, dado que, por um lado, foi construído um bloco de moradias que em parte está instalado naqueles terrenos e, por outro lado, deseja libertar o restante terreno para promover a sua cedência, a fim de nele ser construída uma Cooperativa de Consumo. Considerando que os terrenos a permutar têm a mesma área e são de valor sensivelmente igual, considerando que o proprietário dos terrenos concordou com a permuta, a Comissão Administrativa deliberou efetuar a mesma permuta, cujos terrenos estavam devidamente assinalados no extrato do Plano de Urbanização, na escala 1:2000. E ainda que no respetivo contrato de permuta deveriam fixar exaradas as seguintes condições: a) O autor marido obrigava-se a construir no prazo de seis anos contados da respetiva escritura, salvo casos de força maior, devidamente justificados e aceites pela Câmara Municipal; b) Se não fosse dado cumprimento à condição antecedente, o terreno, inclusive com quaisquer benfeitorias nele introduzidas, reverteria integralmente para o Município, sem que este ficasse obrigado a pagar qualquer indemnização. Mais deliberou solicitar ao Governo Civil a necessária autorização para que possa efetivar-se a permuta em referência.
19. O Réu obrigou-se a criar todas as condições necessárias para a realização da escritura pública de permuta, nomeadamente, a criar, material e juridicamente, os dois lotes prometidos permutar, de acordo com o extrato do Plano de Urbanização fornecido aos autores.
20. O réu procedeu à demarcação e identificação, em planta, dos futuros lotes a entregar aos autores em sede de permuta, tendo entregue uma cópia da demarcação aos mesmos, o que ocorreu em 14/08/1992.
21. Por escrito datado de 07/08/1992, o Réu declarou ao Autor que determinara fosse diligenciada a demarcação do lote vendido pela Câmara com a brevidade possível.
22. Por escrito recebido pelo Réu em 17/03/1999, o Autor declarou, ademais, esperar que a permuta feita há cerca de 25 anos, por interesse e a pedido da Câmara, seja respeitada, pedindo que lhe fossem dados lotes de terreno que lhe permitissem a construção do número de fogos acordado em ofício 5.102 de 14/08/1992.
23. Por escrito datado de 4/07/2011, dirigido ao Senhor presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande, recebido em 6/07/2011, o Autor reiterou a sua vontade de que fossem colocados os marcos nos terrenos permutados.
24. Por escrito datado de 13/12/2011, dirigido a Sr. Vereador em funções na Câmara Municipal da Marinha Grande, o Autor solicitou que se fizesse a escritura de permuta dos terrenos em causa.
25. Até à presente data, não só o Réu não realizou a permuta prometida, como nem sequer constituiu os lotes prometidos permutar, não tendo marcado os mesmos no terreno nem os autonomizou juridicamente.
26. No local dos prédios referidos em 1) e 3) existia uma lixeira que apenas veio a ser retirada pelo Réu antes da verificação do facto referido em 15), o que impediu os Autores de construírem nos locais dos prédios em causa nos termos das condições referidas em 5) e 8).
27. Pelo menos desde o ano de 1994, no que concerne ao prédio referido em 2), e desde o ano de 2000 no que concerne aos prédios referidos em 1) e 3), até ao ano de 2012, os Autores liquidaram o IMI correspondente, cfr. certidão de fls. 318 e verso p.p., nesta sede considerada integralmente reproduzida.
28. Em finais de 2009, o Réu facultou aos Autores uma planta de localização elaborada pela Divisão de Ordenamento e Planeamento Urbanístico, da qual constam os lotes a permutar, bem assim a referência a “terrenos pertencentes ao Sr. AA na conformidade com as deliberações da C.M.M.G. tomadas nas reuniões de 13/07/1976 e de 21/12/1976”, que consta de fls. 261 p.p. e nesta sede se considera integralmente reproduzida.
29. A presente ação foi instaurada no dia 12/11/2012.
30. Os Autores declararam comprar e o proprietário do prédio referido em 2) declarou vender-lhes o mesmo.
31. O Réu, em 1990, edificou as antigas instalações do ISMAG na parte nascente do prédio referido em 2., instalações que foram utilizadas pelo referido instituto desde o ano letivo de 1995/1996, e que vieram a ser cedidas posteriormente pelo Réu à Associação para o Desenvolvimento Económico e Social da Região da Marinha Grande (ADESER).
32. Foi o Réu que, por si ou por intermediário, pelo menos desde 1990, cuidou do prédio referido em 2) dos factos provados e desde então o vem mantendo e conservando as edificações nele construídas, sem oposição de ninguém, dia após dia, mês após mês, ano após ano, à vista de toda a gente, incluindo dos autores.!”
E no acórdão – fundamento:
“1. Até Maio de 2015, o Autor foi o proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca .., modelo ..., com a matrícula ...-FJ-...;
2. Nessa data, estava em vigor o contrato de seguro celebrado entre a Ré e CC, titulado pela apólice …, pelo qual foi transmitida para a Ré a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel de matrícula ...-FJ-..., até ao limite de €5.000.000.000,00 para a reparação de danos corporais e de €1.000.000,00 para a reparação de danos materiais, bem como a cobertura facultativa de choque, colisão e capotamento – à data pelo capital de €10.900,00 (dez mil e novecentos euros) e sem franquia a cargo do segurado - tudo conforme condições particulares e gerais juntas a fls. 42 e segs. com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido;
3. Nesse contrato de seguro o aqui autor figura como condutor habitual;
4. No dia 31 de Março de 2015, pelas 22 e 30 minutos, o Autor conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ..., com a matrícula ...-FJ-..., pela Rua …., em …, …, em direção à ...(Nacional 14);
5. No local, a estrada apenas possui uma faixa de rodagem para cada um dos sentidos de trânsito;
6. Na dita Rua …, encontrava-se estacionado, no lado direito da faixa de rodagem, atento o sentido de trânsito do veículo conduzido pelo Autor, o veículo comercial com a matrícula ...-...-DJ;
7. No mesmo lado direito da aludida faixa de rodagem, imediatamente antes do DJ, encontrava-se igualmente estacionado o veículo ligeiro de passageiros, da marca …, com a matrícula ...-EA-...;
8. No momento em que se aproximava daqueles dois veículos estacionados, o Autor cruzou-se com um veículo todo-o-terreno que seguia em sentido contrário;
9. O qual tinha acabado de sair da ...e entrava na Rua …, em direção a ...;
10. Circulava de forma a ocupar a faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário, por onde na ocasião, seguia o veículo do Autor;
11. Procurando evitar o embate com este veículo, o Autor desviou o veículo que conduzia para o seu lado direito e foi embater na traseira do veículo de matrícula EA;
12. Com a força deste embate, o veículo de matrícula EA foi projetado para a frente, indo embater com a sua frente, na traseira do veículo de matrícula DJ;
13. Em virtude do embate, o veículo de matrícula FJ sofreu danos e ficou imobilizado na Rua …;
14. Foi elaborada a participação amigável do acidente que foi remetida à Ré;
15. Após peritagem realizada ao veículo, o custo da reparação foi orçado em €14.277,00;
16. A Ré enviou à tomadora do seguro, que recebeu, a carta datada de 7 de Abril de 2014, cuja cópia está junta a fls. 39 vs e 40, com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde, além do mais, comunicava que considerava a reparação economicamente inviável;
17. Em 27 de Maio de 2015, o Autor vendeu a viatura de matrícula FJ no estado de salvado à sociedade “DD, S.A.”, recebendo o preço de €1.602,00;
18. À data do acidente, a Ré havia dado ao veículo de matrícula FJ o valor de €10.900,00;
19. Por carta de 26 de Agosto de 2015 – cuja cópia está junta a fls. 14 com o teor que aqui se dá por integralmente reproduzido - a Ré comunicou à tomadora do seguro que não assumia a responsabilidade pela reparação dos danos decorrentes do acidente, alegando que estes não se apresentam compatíveis com a dinâmica do acidente participado”;
20. O veículo de matrícula FJ era utilizado pelo Autor e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola,
21. A imobilização do seu veículo causou ao Autor transtornos, obrigando-o recorrer a transportes públicos e a pedir emprestados viaturas automóveis a familiares e a amigos para se deslocar.”
IV
No acórdão recorrido, a decisão em causa (confirmação do decidido na 1ª instância no sentido da improcedência do pedido de indemnização pela privação do uso dos lotes) foi fundamentada nos seguintes termos:
“I – Quanto à indemnização relativa à privação do uso dos prédios (revista dos autores):
1) Conforme supra referimos, os autores pediram a condenação do réu no pagamento de uma indemnização referente à privação do uso e fruição dos prédios – indemnização essa que, em sede de pedido principal, liquidaram em € 3.260,17, (mais os juros de mora, capitalizados, à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde 1 de Janeiro de 1976, até efetivo e integral pagamento, que à data computam em € 517.846,17) e que, em sede de pedido alternativo e de pedido subsidiário, pediram que fosse calculada “pelo somatório da renda devida pelo arrendamento de cada um dos edifícios construídos nos lotes dos autores (ou suas frações), a preços de mercado por referência a cada um dos anos decorridos desde a data da sua ocupação, acrescidos de juros capitalizados – ou pelo somatório da capitalização do juro do produto da sua venda - desde a data em que as mesmas seriam devidas, até efetivo e integral pagamento, cujo valor, por não ser ainda quantificável se relega para execução de sentença” – pedidos esses que foram julgados improcedentes na 1ª instância e bem assim, em sede de apelação, pela Relação.
Conforme se alcança do acórdão recorrido, a Relação - fazendo referência à existência de duas posições jurisprudenciais, uma no sentido de a mera indisponibilidade do bem constituir só por si dano indemnizável, independentemente da sua utilização efetiva e outra, dominante, no sentido de para o efeito se exigir a prova da existência de concretos prejuízos, decorrentes de tal privação – veio a aderir a esta última posição.
2) É contra tal entendimento (e respetiva decisão) que se manifestam os autores, os quais defendem a posição contrária, ou seja, no sentido de os danos indemnizáveis ocorrerem com a mera privação do uso, independentemente da prova efetiva de danos materiais e da demonstração dos mesmos.
3) Estando em causa a verificação do dano enquanto pressuposto da responsabilidade civil (art.483º do C. Civil), não se suscitam dúvidas de que a privação do uso pode ter repercussões negativas no património do respetivo dono (quer como dano emergente, quer como lucro cessante), pelo que a questão apenas se coloca, quando apenas se prova a mera privação do uso de um bem, que não a ocorrência de um dano concreto, traduzido no aumento de despesas ou na redução de proveitos.
E efetivamente, nesta matéria, a jurisprudência não tem seguido um entendimento uniforme, seguindo, no essencial, dois entendimentos distintos: - Um no sentido de se dever exigir a alegação e prova não só da privação do uso, como também a prova de uma concreta utilização relevante do bem (neste sentido, vide Paulo Mota Pindo, in Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, I, 594 e ss., e Maria da Graça Trigo in Responsabilidade Civil, Temas Especiais, 64; e na jurisprudência, entre outros, os acs. do STJ de 10.1.2012 e 3.5.2011, ambos in www.dgsi.pt.); - E outro no sentido de se considerar bastante a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o direito à indemnização, reservando-se o não reconhecimento daquele direito para situações em que tenha ficado provado que a concreta privação do uso do bem não traduz, na esfera do respetivo titular, um dano patrimonial relevante (segundo Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, I, 11ª ed., 301, e Abrantes Geraldes, in CDPrivado, Responsabilidade Civil, 137 e ss., e, entre outros, os ac.s do STJ de 16-6-2009 e 6-5-2008, in www.dgsi.pt),
Em tal contexto de divergência jurisprudencial, afigura-se-nos como sendo mais ajustada aquela primeira orientação, que é dominante na jurisprudência, ou seja, no sentido de não ser indemnizável, sem mais, a mera privação do uso da coisa, devendo o lesado alegar e provar (para além da privação do uso) a existência de uma concreta utilização relevante do bem e que a privação gerou a perda dessas utilidades.
Trata-se do entendimento ultimamente dominante e, não se vendo razões para dele se discordar, bem pelo contrário, sempre haverá que ter presente o que se dispõe no nº 3 do art. 8º do C. Civil, nos termos do qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os caos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.
Não se exigindo assim apenas e tão só (para além da prova da privação) a prova de concretos e quantificáveis prejuízos advenientes da privação do uso - ou seja um outro entendimento, mais radical, que é perfilhado no acórdão recorrido – exige-se contudo a prova da frustração de uma concreta utilização relevante do bem e por consequência a perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.
Neste sentido, naqueles dois supra referidos acórdãos do STJ de 03.05.2011 e de 10.01.2012, em que é relator Nuno Cameira, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, considerou-se que “não é suficiente, todavia, a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa por outrem frustrou um propósito real – concreto e efetivo – de proceder à sua utilização). No mesmo sentido ainda, o acórdão do STJ de 08.05.2007 (em que é relator Sebastião Póvoas, in www.dgsi.pt) e ainda o acórdão de 09.07.2015 (em que é relatora Fernanda Isabel Pereira igualmente disponível in www.dgsi.pt), no qual se considerou que “ a privação do uso de um veículo automóvel… constitui um dano autónomo, indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor…bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava”.
Apontando no mesmo sentido (e até mais longe), vide ainda os acórdãos do STJ de 12.01.2012 e de 03.10.2013 (em que é relator Fernando Bento, ambos igualmente disponíveis in www.dgsi.pt), no último dos quais se expendeu, a propósito, o seguinte:
“E não constituindo a mera privação do uso – melhor se diria, a mera privação da possibilidade de uso (que não deve ser confundida com a privação do uso…) - um dano patrimonial só por si indemnizável, desacompanhado da demonstração das concretas e efetivas utilizações que a coisa proporcionava ou era suscetível de proporcionar e que a ocupação fez frustrar, forçoso é concluir que falece um dos pressupostos da responsabilidade civil, ou seja, o dano.
Dano que, como se sabe, na sua vertente patrimonial – porque só esta está neste momento em causa – exprime uma diferença entre o valor real e efetivo do património do lesado e o valor que esse mesmo património teria sem o evento lesivo (valor hipotético, portanto) - (art. 564º nº2 CC).
Ora, tal diferença só pode ser encontrada se o uso ou gozo tiver um valor material concreto, não um valor abstrato; ou seja, quando a sua privação se traduza num dano emergente (prejuízo causado) ou num lucro cessante (benefícios frustrados).
O uso pressupõe uma utilização e a impossibilidade (concreta) desta analisa-se ou numa diminuição patrimonial ou numa frustração de aumento do património; é nesta diferença patrimonial concreta e efetiva, resultante quer da diminuição, quer do não aumento, que consiste o dano da privação do uso.
Logo, não havendo uso, isto é, aproveitamento das vantagens económicas proporcionadas pela coisa, inexistirá obviamente dano da despectiva privação.
E por isso é que o Tribunal carece de conhecer, quando está em causa a privação de uso e dando por assente tratar-se de um dano patrimonial, se aquela privação redundou concretamente num dano emergente ou num lucro cessante, para apurar o valor dos mesmos, pois a indemnização visa precipuamente reconstituir - por equivalente pecuniário, na impossibilidade óbvia de reconstituição natural - a situação hipotética que existiria se não tivesse ocorrido o facto ilícito e o dano, (art. 562º e 563º CC).
Concluindo, pois:
A privação do uso (ou da possibilidade de uso) só constitui dano ressarcível mediante a referenciação às concretas e efetivas utilidades atingidas ou cuja fruição se frustrou; só assim se concretizará tal dano em termos de suscetibilidade da medição através da teoria da diferença (art. 566º nº2 CC); o dano normativo da privação do uso – isto é, sem consideração daquelas utilidades - é meramente abstrato e não exprime uma diferença entre situações patrimoniais, a menos que seja concretizado e explicitado em factos reveladores do prejuízo e dos benefícios frustrados em que consistiu a impossibilidade de gozo”.
Ainda no mesmo sentido, o acórdão deste Tribunal de 12.07.2017 relatado pelo ora relator (in Sumários de Julho de 108).
4) Posto isto, importa verificar se, em concreto, os autores lograram fazer a prova de que a privação do uso dos lotes ocupados pelo réu gerou para si a perda de utilidades relativas a uma relevante utilização dos mesmos.
E isto, e apenas, em relação aos prédios identificados nos pontos 1 e 3 dos factos provados, que são propriedade dos autores (o prédio referido no ponto nº 2 foi registado a seu favor com base na escritura de justificação de 14.11.1999, que foi declarada destituída de eficácia).
Para o efeito, relevam a nosso ver, os seguintes elementos factuais, emergentes da factualidade dada como provada:
- Os lotes foram adquiridos, o primeiro (do ponto nº 1) em 31.08.1965 e o segundo (do ponto nº 3) em 23.08.1973;
- Ambos foram adquiridos em hasta pública, na condição de os autores neles fazerem construções no prazo de um ano e a conclui-las no prazo máximo de dois anos;
- Os lotes estavam destinados pelo réu a zona industrial e os autores adquiriam os mesmos tendo em vista a edificação das instalações de uma sociedade que se dedicava à embalagem de papel e cartolina e serigrafia:
- Todavia, os autores nunca ali edificaram qualquer construção;
- No local existia uma lixeira que apenas veio a ser retirada e pelo réu antes de este ali edificar, entre 1974 e 1975, um bloco de moradias e edifícios destinados a habitação social;
- E, posteriormente, em 1976 foi reconhecida pelo réu a necessidade de realização da permuta em causa nos autos.
Resulta assim de tal circunstancialismo fáctico que, até então, os autores nunca retiraram qualquer utilidade dos lotes em causa, sendo certo que a sua utilização sempre teria que passar pela realização de obras tendentes à eliminação da lixeira, nada se provando nessa perspetiva.
De resto, os autores nem sequer cumpriram com as exigências da venda em hasta pública, relativas à realização de construções no prazo de um ano e à respetiva conclusão no prazo máximo de dois anos.
A partir de 1976, a utilização dos lotes por parte do réu, acabou por ter cobertura no acordo das partes sobre a permuta em causa nos autos – não estando assim em causa uma ocupação ilícita.
E assim, toda e qualquer indemnização teria que assentar na responsabilidade civil contratual, emergente do incumprimento (seja a mora, seja o incumprimento definitivo – incumprimento este que nem sequer está em causa nos autos), pelo réu, desse acordo de permuta.
Todavia, se é certo que o réu se obrigou a criar as condições necessárias à realização da permuta, sendo que até à data, não só não realizou a permuta como nem sequer constituiu os lotes prometidos permutar – também é certo que não se mostra provado que tenha sido acordado qualquer prazo para o efeito.
E, não obstante as várias insistências do autor no sentido da efetivação da permuta (vide nºs 22 a 24) dos factos provados), o certo é que nunca os autores fixaram ao réu qualquer prazo admonitório.
5) Em face do que se acaba de expor e uma vez que nada mais se provou relativamente à efetiva perda de efetivas utilidades dos lotes, por parte dos autores (sendo certo que estes sempre beneficiarão da natural valorização dos lotes que lhe foram prometidos na permuta) – haveremos de concluir no sentido de não se mostrar provada o requisito em causa a que acima aludimos, referente à perda de utilidades relativas a uma relevante utilização dos lotes.
E daí que, ainda que com fundamentação diferente, se imponha manter o decidido no acórdão recorrido no sentido da não atribuição de indemnização com base na privação do uso dos lotes.
Improcedem assim, nesta parte e nesta conformidade, as conclusões da revista dos autores, impondo-se nessa parte a confirmação do acórdão recorrido.”
E, no acórdão – fundamento, a decisão (de manter a indemnização fixada na 1ª instância pela privação do uso do veículo acidentado) foi fundamentada nos seguintes termos:
“Constitui dano indemnizável toda a perda, prejuízo ou desvantagem resultante da ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica.”
Na verdade, o lesante deve reparar todos os prejuízos causados ao lesado que merecerem a tutela do direito de modo a colocá-lo na situação que existiria se não tivesse ocorrido a lesão, querendo significar, no que ao caso sub iudice respeita, que o período de reparação, mesmo atraso da reparação ou substituição que não seja imputável ao Autor, deve ser suportado por quem responde pelos danos sofridos pelo lesado.
O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo susceptível de indemnização, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.º 1305º do Código Civil, cabendo, assim, pela mera violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
Abrantes Geraldes refere que “não custa a compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património que possa servir de base à determinação da indemnização” apud, Indemnização do Dano Privação do Uso, páginas 39-41.
Face aos artºs. 562º a 564º e 566º do Código Civil, da imobilização de um veículo em consequência de acidente, pode resultar: a) um dano emergente - a utilização mais onerosa de um transporte alternativo como o seria o aluguer de outro veículo; b) um lucro cessante - a perda de rendimento que o veículo dava com o seu destino a uma actividade lucrativa; c) um dano advindo da mera privação do uso do veículo que impossibilita o seu proprietário de dele livremente dispor com o conteúdo definido no artº. 1305º, do Código Civil, fruindo-o e aproveitando-o como bem entender, neste sentido, Abrantes Geraldes, apud, obra citada páginas, 39-41.
Na Jurisprudência, por todos, refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Fevereiro de 2008, apud, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, Tomo I, pág. 90, “constitui princípio assente em direito, que a privação ilícita do uso de qualquer bem constitui um dano de que o lesado deve ser compensado (…) a mera indisponibilidade de um veículo, independentemente de, da mesma, terem resultado para o lesado prejuízos económicos quantificados, é passível de indemnização, a calcular nos termos prescritos no artº. 566° nº. 3, do Código Civil, como, aliás, vem sendo sufragado na doutrina” dando-se nota, naquele aresto, da atinente orientação doutrinária - neste sentido, Professor Menezes Leitão, apud, Direito das Obrigações, vol. I, página 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Professor Júlio Gomes, nº. 3, página 62 e Temas do Desembargador Abrantes Geraldes, volume I, páginas 90 e 91.
Pese embora alguma Jurisprudência tenha decidido no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo, continuamos a entender que se nos afigura que as circunstâncias que caracterizam este tipo de situações, nomeadamente, as atinentes às dificuldades de prova de alguns factos (de que são exemplo o deixar de passear, ou não ter praticado variadas ações por não poder dispor de automóvel), em conjugação com os despropositados benefícios que esta interpretação traz para as seguradoras (reconhecidamente a parte mais forte na relação contratual de seguro), as quais se sentem mais desobrigadas de fornecer um veículo de substituição, conduzem-nos a perfilhar a Jurisprudência tradicional, aliás maioritária.
Quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.
Assim, o verificado injustificado atraso, trouxe dano para o Autor, na medida em que o não pagamento de uma indemnização que integraria, no devido tempo, no preço de aquisição de outro veículo, uma vez que está em causa a substituição do veículo ...-FJ-... (perda total), por outro que o Autor poderia ter adquirido, aproximando-se assim, o mais breve possível da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano, impedindo-o de adquirir um veículo substitutivo, tendo ficado privado do respetivo uso desde o dia 8 de Junho de 2015 (data considerada como termo inicial relevante, pelo Tribunal a quo, considerando que a gestão do processo do sinistro, deveria ter ficado concluído no prazo de 2 [dois] meses, após, o sinistro [o que se julga razoável]), até à data em que lhe for paga a indemnização pela perda do total do veículo, …-SJ-….
Demonstrado o dano, e sendo dano que advém da simples privação do uso do veículo, na falta de quantificação objetiva, é legítimo o recurso à equidade para fixar a respetiva compensação, conforme, aliás, assumido nos termos do aresto recorrido, cujos termos e valores encontrados, sufragamos, uma vez que o valor compensatório a atribuir foi calculado com base numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida e que não colide com critérios jurisprudenciais atualizados e generalizantes, de forma que não põe em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio de igualdade.
Tendo presente a figura da equidade, a qual visa alcançar a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenha em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer o valor aquisitivo do dinheiro na atualidade, entendemos, não merecer reparo o valor fixado pelo Tribunal a quo.”
V
O despacho do Relator, objeto da presente reclamação, foi proferido nos seguintes termos:
“(…)
2) Resulta do disposto no n.º 1 do artigo 688º do CPC que o primeiro pressuposto substancial de admissibilidade deste recurso é a existência de uma contradição decisória entre dois acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça sobre uma mesma questão fundamental de direito.
Conforme tem sido entendido na jurisprudência e na doutrina, tal contradição tem que ser expressa e não meramente implícita, sendo ainda imprescindível que a questão de direito apreciada se revele determinante para as soluções alcançadas num e noutro acórdão.
Num outro plano, tem sido pacífica e reiteradamente entendido pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça que a contradição pressupõe a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente díspar, dos mesmos preceitos ou institutos jurídicos.
Por fim, é imperioso que as soluções divergentes em confronto tenham sido encontradas no âmbito do mesmo quadro normativo, i.e. no “domínio da mesma legislação” de acordo com a terminologia legal.
3) Analisados os dois arestos em confronto (acórdão recorrido e acórdão-fundamento), haveremos de concluir no sentido da inexistência da invocada contradição.
Desde logo porque os quadros factuais subjacentes a ambos os arestos não são substancialmente idênticos:
No acórdão-fundamento, no qual está em causa a privação do uso de um veículo automóvel acidentado, foi dado como provado (nºs 20 e 21 dos respetivos factos provados) que “o veículo de matrícula FJ era utilizado pelo Autor e pela sua companheira nas deslocações profissionais e de lazer de ambos, servindo igualmente para levar a filha menor à escola” e que “a imobilização do seu veículo causou ao Autor transtornos, obrigando-o a recorrer a transportes públicos e a pedir emprestadas viaturas automóveis a familiares e amigos para se deslocar”.
Em suma, não se provando quaisquer prejuízos concretos, provou-se contudo a existência de um concreta utilização do veículo, da qual o autor ficou privado – o que não sucede no quadro factual do acórdão recorrido.
Com efeito, neste, no qual está em causa a privação do uso de dois lotes de terreno, adquiridos, o primeiro (do ponto nº 1) em 31.08.1965 e o segundo (do ponto nº 3) em 23.08.1973, apenas se provou que (conforme em síntese ali se refere):
- Ambos foram adquiridos em hasta pública, na condição de os autores neles fazerem construções no prazo de um ano e a conclui-las no prazo máximo de dois anos;
- Os lotes estavam destinados pelo réu a zona industrial e os autores adquiriam os mesmos tendo em vista a edificação das instalações de uma sociedade que se dedicava à embalagem de papel e cartolina e serigrafia:
- Todavia, os autores nunca ali edificaram qualquer construção;
- No local existia uma lixeira que apenas veio a ser retirada e pelo réu antes de este ali edificar, entre 1974 e 1975, um bloco de moradias e edifícios destinados a habitação social;
- E, posteriormente, em 1976 foi reconhecida pelo réu a necessidade de realização da permuta em causa nos autos.
Em suma, não se provou que os autores estejam privados de uma qualquer utilização relevante que viessem levando a cabo.
4) E por outro lado porque as soluções jurídicas a que se chegou em ambos os acórdãos (relativas à mesma questão: indemnização da privação do uso dos bens, não se tendo provado a existência de danos concretos) não se nos afiguram contraditórias.
No acórdão recorrido seguiu-se o entendimento de que o direito à indemnização depende não só da prova da privação do uso como também de uma concreta utilização relevante do bem:
“(…) E efetivamente, nesta matéria, a jurisprudência não tem seguido um entendimento uniforme, seguindo, no essencial, dois entendimentos distintos:
- Um no sentido de se dever exigir a alegação e prova não só da privação do uso, como também a prova de uma concreta utilização relevante do bem (neste sentido, vide Paulo Mota Pindo, in Interesse Contratual Positivo e Interesse Contratual Negativo, I, 594 e ss., e Maria da Graça Trigo in Responsabilidade Civil, Temas Especiais, 64; e na jurisprudência, entre outros, os acs. do STJ de 10.1.2012 e 3.5.2011, ambos in www.dgsi.pt.);
- E outro no sentido de se considerar bastante a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o direito à indemnização, reservando-se o não reconhecimento daquele direito para situações em que tenha ficado provado que a concreta privação do uso do bem não traduz, na esfera do respetivo titular, um dano patrimonial relevante (segundo Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, I, 11ª ed., 301, e Abrantes Geraldes, in CDPrivado, Responsabilidade Civil, 137 e ss., e, entre outros, os ac.s do STJ de 16-6-2009 e 6-5-2008, in www.dgsi.pt),
Em tal contexto de divergência jurisprudencial, afigura-se-nos como sendo mais ajustada aquela primeira orientação, que é dominante na jurisprudência, ou seja, no sentido de não ser indemnizável, sem mais, a mera privação do uso da coisa, devendo o lesado alegar e provar (para além da privação do uso) a existência de uma concreta utilização relevante do bem e que a privação gerou a perda dessas utilidades.
Trata-se do entendimento ultimamente dominante e, não se vendo razões para dele se discordar, bem pelo contrário, sempre haverá que ter presente o que se dispõe no nº 3 do art. 8º do C. Civil, nos termos do qual “nas decisões a proferir, o julgador terá em consideração todos os caos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito”.
Não se exigindo assim apenas e tão só (para além da prova da privação) a prova de concretos e quantificáveis prejuízos advenientes da privação do uso - ou seja um outro entendimento, mais radical, que é perfilhado no acórdão recorrido – exige-se contudo a prova da frustração de uma concreta utilização relevante do bem e por consequência a perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.
(…)
Resulta assim de tal circunstancialismo fáctico que, até então, os autores nunca retiraram qualquer utilidade dos lotes em causa, sendo certo que a sua utilização sempre teria que passar pela realização de obras tendentes à eliminação da lixeira, nada se provando nessa perspetiva.
De resto, os autores nem sequer cumpriram com as exigências da venda em hasta pública, relativas à realização de construções no prazo de um ano e à respetiva conclusão no prazo máximo de dois anos.”
6) E, da mesma forma, foi esse o entendimento seguido no acórdão-fundamento:
“O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.° 1305° do Código Civil, cabendo, assim, pela mera violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
Este entendimento vem sendo sufragado pela Doutrina e pelos nossos Tribunais superiores.
A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
Pese embora alguma Jurisprudência tenha decidido no sentido do reforço das exigências de prova dos prejuízos emergentes da paralisação do veículo, continuamos a entender que se nos afigura que as circunstâncias que caracterizam este tipo de situações, nomeadamente, as atinentes às dificuldades de prova de alguns factos (de que são exemplo o deixar de passear, ou não ter praticado variadas ações por não poder dispor de automóvel), em conjugação com os despropositados benefícios que esta interpretação traz para as seguradoras (reconhecidamente a parte mais forte na relação contratual de seguro), as quais se sentem mais desobrigadas de fornecer um veículo de substituição, conduzem-nos a perfilhar a Jurisprudência tradicional, aliás maioritária.
Quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.”
7) Acresce que o acórdão recorrido ao negar aos autores ora recorrentes o direito à peticionada indemnização em bom rigor até acabou por se basear num outro fundamento: a inexistência de ilicitude.
E isto porque a utilização dos lotes em questão por parte do réu teve lugar a coberto de um acordo das partes – razão pela qual a indemnização apenas se poderia basear na responsabilidade contratual, responsabilidade igualmente improcedente face à inexistência de mora:
“A partir de 1976, a utilização dos lotes por parte do réu, acabou por ter cobertura no acordo das partes sobre a permuta em causa nos autos – não estando assim em causa uma ocupação ilícita.
E assim, toda e qualquer indemnização teria que assentar na responsabilidade civil contratual, emergente do incumprimento (seja a mora, seja o incumprimento definitivo – incumprimento este que nem sequer está em causa nos autos), pelo réu, desse acordo de permuta.
Todavia, se é certo que o réu se obrigou a criar as condições necessárias à realização da permuta, sendo que até à data, não só não realizou a permuta como nem sequer constituiu os lotes prometidos permutar – também é certo que não se mostra provado que tenha sido acordado qualquer prazo para o efeito.
E, não obstante as várias insistências do autor no sentido da efetivação da permuta (vide nºs 22 a 24) dos factos provados), o certo é que nunca os autores fixaram ao réu qualquer prazo admonitório.”
Em face do exposto, não se provando a invocada contradição de acórdãos, haveremos de concluir no sentido da inexistência da invocada contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento – razão pela qual se impõe a não admissão do recurso.
XIX – Termos em que se decide não admitir o recurso. (…)”
VI
Analisados os acórdãos em confronto e atentos os supra transcritos quadros factuais dados como provados em cada um deles e bem assim os fundamentos invocados em ambos os arestos para se chegar às diferentes soluções adotadas - uma no sentido da atribuição de indemnização e outra em sentido contrário - haveremos de concluir, conforme se concluiu no despacho reclamado, no sentido de se não verificar a contradição a que alude o nº1 do artigo 688º do CPC.
Acompanhamos assim inteiramente os fundamentos em que o Relator se baseou para rejeitar o recurso para uniformização de jurisprudência – fundamentos esses que aqui damos por reproduzidos.
Contrariando o que agora dizem os recorrentes na presente reclamação, no sentido de a diferença dos quadros factuais não constituir fundamento para a rejeição do recurso, reafirmamos o entendimento seguido na doutrina e jurisprudência no sentido de a contradição em causa (expressa e sobre a mesma questão de direito) pressupor “a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente díspar, dos mesmos preceitos ou institutos jurídicos”.
Neste sentido, vide AMÂNCIO FERREIRA in “Recursos em Processo Civil (de acordo com o Código de Processo Civil de 2013)”, Quid Juris, pág. 116, o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/08, de 28 de Fevereiro de 2008, publicado no D.R., I Série, de 4 de Abril de 2008, págs. 2058 e ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 2013 - proferido no processo n.º 261/09.1TBCHV e acessível em www.dgsi.pt -, de 22 de Abril de 2014 – relatado no processo n.º 2603/10.6TJCBR.C1.S1-A -, de 2 de Outubro de 2014 – relatado no processo n.º 296/09.2TBVRL.P2.S1 – de 13 de Novembro de 2014 – relatado no processo n.º 278/09.4TVPRT.P1.S1 – estes sumariados pela assessoria cível deste Tribunal em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/sumarios-civel-2014.pdf .
Foi este o entendimento igualmente sufragado no acórdão do Pleno do STJ de 27.11.2018, proferido no processo nº 923/12.4TBPFR.P1.S1-A (igualmente relatado pelo ora Relator).
E, na mesma linha, vide ainda o acórdão de 29.06.2017 (proc. nº 366/13.2TNLSB.L1.S1-A, in www.dgsi.pt), onde se considerou (sumário) que “ainda que a situação de facto não tenha de ser coincidente, é de exigir que se estabeleça um confronto jurisprudencial na discussão e resolução de situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo, sejam equiparáveis”.
E o certo é que, contrariamente ao que defendem os ora reclamantes e conforme bem se considerou no despacho reclamado, o núcleo essencial das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos em confronto não é substancialmente idêntico.
Desde logo porque:
- Num caso (acórdão-fundamento) está em causa a privação da utilização de um veículo sinistrado em consequência de um acidente de viação com responsabilidade baseada num facto ilícito (violação de normas estradais) que, para além de ser passível de uma normal utilização vinha sendo efetivamente utilizado e,
- No outro caso (acórdão recorrido) está em causa a não utilização de dois lotes de cuja utilização os autores estão privados, no âmbito de um negócio de permuta de lotes com o réu.
Para além disso:
No acórdão-fundamento, muito embora não tenha sido feita a prova de quaisquer prejuízos concretos, foi feita a prova da existência de uma concreta utilização do veículo sinistrado, utilidade essa da qual o autor ficou provado:
- E, pelo contrário, no acórdão recorrido, não foi feita a prova de qualquer utilidade de que os autores tivessem ficado privados.
Na verdade, aqui, apenas se provou:
- que os lotes em questão (1 e 3), onde existia uma lixeira, foram adquiridos pelos autores em hasta pública, em 1965 e em 1973, na condição de neles fazerem construções no prazo máximo de dois anos, e sem que no entanto ali tivesse construído o que quer que fosse;
- que não obstante os lotes terem sido ocupados pelo réu entre 1974 e 1975, em 1976 foi acordada entre as partes a realização de uma permuta com outros lotes – o que significa que a ocupação dos lotes ficou legitimada e a coberto desse negócio (sem violação do direito de propriedade) – cujo cumprimento (realização da permuta) apenas veio a ser exigido com a instauração da ação a que respeita o acórdão recorrido – na qual o réu foi condenado, para além do mais:
“A reconhecer que em 21 de Dezembro de 1976, através de deliberação da sua Comissão Administrativa, deliberou permutar os lotes a constituir nos termos constantes da planta enviada aos autores através do ofício n.º ... de …, pelos lotes de que os autores são donos e legítimos proprietários, correspondentes aos prédios descritos nos pontos 1) e 3) dos factos provados”,a “encetar todas as diligências tendentes à autonomização material e jurídica dos lotes prometidos permutar e necessárias à execução do contrato de permuta a que se refere a decisão anterior, relativamente aos imóveis descritos nos pontos 1) e 3) dos factos provados, no prazo de 90 (noventa) dias contados da data do trânsito em julgado desta sentença” e a “celebrar a escritura pública da permuta prometida, no prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da data do trânsito em julgado desta sentença”.
Para além disso, discordando do entendimento dos ora reclamantes, estamos ainda inteiramente de acordo com o despacho reclamado na parte em que ali também se considerou não serem contraditórias as soluções jurídicas a que se chegou em ambos os arestos.
Com efeito, enquanto no acórdão recorrido se seguiu o entendimento de que o direito à indemnização dependia não só da prova da privação do uso como também de uma concreta utilização relevante do bem, no essencial, foi esse o entendimento seguido no acórdão fundamento, quando ali se considerou que:
“O dano decorrente da privação do veículo constitui dano patrimonial autónomo suscetível de indemnização, quando o proprietário do veículo danificado se viu privado de um bem que faz parte do seu património, deixando de dele poder dispor e gozar livremente, nos termos consagrados no art.° 1305° do Código Civil, cabendo, assim, pela mera violação do direito de propriedade, o direito a indemnização pela ocorrência desse dano.
… A privação do uso de um veículo automóvel, traduzindo a perda dessa utilidade do veículo, é um dano, e um dano patrimonial, porque essa utilidade, considerada em si mesma, tem valor pecuniário.
… Quando a privação do uso recaia sobre um veículo danificado num acidente de viação, bastará que resulte dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente - constituindo um facto notório ou resultando de presunções naturais a retirar da factualidade provada - para que se possa exigir do lesante uma indemnização a esse título, sem necessidade de provar direta e concretamente prejuízos efetivos.”
Em face do exposto, e em consonância com o entendimento plasmado no despacho reclamado, haveremos de concluir no sentido da inexistência de invocada contradição de acórdãos e, por consequência, no sentido da inadmissibilidade do recurso.
VII
Termos em se se decide indeferir a reclamação e confirmar o despacho reclamado que não admitiu o recurso para uniformização de jurisprudência.
Custas pelos reclamantes.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2020
Acácio das Neves (Relator)
Fernando Samões
António Magalhães