I - Tendo o voto de vencido do acórdão recorrido descaracterizado a dupla conforme e integrando o objecto do recurso tanto nulidades da decisão recorrida como questões de mérito, a revista é admissível.
II - Concluindo-se pela irrelevância de todos os factos em causa para formular um juízo (pretendido pelos recorrentes) de culpa leve efectiva dos réus, fica prejudicada – por ser acto inútil – a determinação da baixa dos autos a fim de a Relação identificar, entre os factos que os apelantes pretendiam aditar, quais aqueles que entendeu como não provados e quais aqueles que entendeu serem irrelevantes para a prova do dolo eventual ou negligência grosseira dos réus; assim como para efectuar o correspondente juízo probatório sobre estes últimos.
III - Perante a factualidade dada como provada, não oferece dúvidas que os réus não podem ser responsabilizados ao abrigo do princípio geral da responsabilidade por facto ilícito e culposo, consagrado no n.º 1 do art. 483.º do CC, nem que a culpa do lesado se encontra provada, conforme exige o art. 572.º do CC.
IV - Porém, subsistem dúvidas sobre a aplicabilidade ao caso concreto do regime do n.º 2 do art. 493.º do CC, o que implica elucidar a questão da qualificação da actividade de abate de árvores como actividade perigosa e, em seguida, aferir da natureza, do conteúdo e do destinatário da presunção normativa, assim como das exigências para a sua elisão.
V - A actividade de abate ou derrube de árvores não será sempre e em absoluto uma actividade perigosa, sendo que, como é por demais evidente, a diferenciação se há-de fazer em razão do porte das árvores em causa. No caso dos autos, em que As árvores que estavam a ser cortadas tinham mais de 20 metros de altura, estão em causa árvores de grande porte, não oferecendo dúvidas de que, pelo menos segundo o critério da elevada intensidade dos potenciais danos, a actividade desenvolvida integra o conceito de actividade perigosa.
VI - O regime especial em causa não tem como destinatário quem executa a actividade perigosa, mas quem é, por assim dizer, o titular dessa actividade ou o “exercente” da mesma. Que, no caso concreto, é a pessoa do 1.º réu, mas não a do 2.º réu, assalariado e subordinado do primeiro.
VII - Deste modo, apenas se encontra em aberto a possibilidade de responsabilização do 1.º réu à luz do regime de violação dos deveres de segurança no tráfego, concretamente do regime do n.º 2 do art. 493.º do CC, sendo que, de acordo com a orientação tradicional, cabe ao presumido culpado fazer prova de factos que demonstrem uma conduta diligente da sua parte; e, de acordo com a posição que mais recentemente se vem afirmando na doutrina e na jurisprudência, lhe cabe fazer prova da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa.
VIII - No caso dos autos as providências adoptadas consistiram, apenas e tão-só, em orientar a queda das árvores de forma a caírem dentro da área do terreno em causa, o que se afigura ter em vista prevenir danos (pessoais ou materiais) causados aos/nos terrenos vizinhos. Mas que, efectivamente, não bastará para dar como provada uma conduta diligente do “exercente”, no sentido de prevenir que a queda das árvores causasse danos a quem, porventura, se encontrasse dentro do perímetro da dita queda.
IX - Pode assim formular-se uma conclusão intercalar: estamos perante uma situação em que ocorreu culpa do lesado, mas em que, simultaneamente, não foi feita prova de diligência bastante do lesante para afastar a presunção do art. 493.º, n.º 2, do CC.
X - Importa interpretar a conjugação da norma do n.º 2 do art. 570.º do CC com a norma do n.º 2 do art. 493.º do mesmo Código, no sentido de que aquele que exerce uma actividade perigosa só pode beneficiar da exclusão da obrigação de indemnizar prevista na primeira norma se provar que a conduta culposa do lesado foi causa exclusiva do dano.
XI - Trata-se de solução correspondente à que foi seguida pelas decisões do STJ nas quais se entendeu verificar-se concausalidade entre a conduta culposa do lesado e a culpa presumida do lesante pelo exercício de actividade perigosa, reduzindo-se proporcionalmente a indemnização por aplicação da regra do n.º 1 do art. 570.º do CC.
XII - No caso dos autos, não tendo sido feita prova de que a conduta culposa do lesado foi a causa exclusiva do dano, conclui-se pela verificação de uma situação de concausalidade que – por aplicação do n.º 1 do art. 570.º do CC, e em conformidade com o princípio ínsito no art. 563.º do mesmo Código – não exclui automaticamente a obrigação de indemnizar, antes conduz à realização de um juízo de proporcionalidade.
XIII - Assim sendo, e ponderados os dados relevantes, considera-se que a contribuição para o acidente dos autos e para a lesão fatal dele resultante, se deveu, em igual medida, à vítima e ao 1.º réu.
XIV - Nos termos do art. 679.º do CPC que, mandando aplicar ao recurso de revista o regime do recurso de apelação, excepciona dessa aplicação a regra da substituição ao tribunal a quo, prevista no art. 665.º do mesmo Código, devem os autos baixar à Relação a fim se ser fixado o montante indemnizatório.
Não disponível.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. AA e BB instauraram, em 24 de Maio de 2017, a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, contra: 1º - CC; 2º - DD; 3ª - AGEAS Portugal - Companhia de Seguros, S.A., pedindo que os RR. sejam solidariamente condenados a pagar aos AA. – sendo a Companhia de Seguros ré até ao limite do capital seguro – a quantia de €71.317,85, correspondente aos seguintes danos:
Quantias acrescidas de juros de mora, contados desde a citação.
Para sustentarem o pedido formulado, alegaram, em síntese, o seguinte:
- No dia 2 de Junho de 2015, o 1º e o 2º RR. procederam ao corte de eucaliptos num terreno situado na freguesia de …/…., área da comarca de …;
- Tal actividade estava a ser desenvolvida num terreno em declive, sendo que as árvores caíam no solo sem terem sido previamente amarradas ou sustentadas;
- Na referida data, o pai dos AA., EE, deslocou-se ao citado terreno com vista a identificar as estremas do mesmo, tendo acedido ao terreno a partir de um caminho existente na parte mais elevada do mesmo, onde estava o 1º R. a carregar a madeira com uma grua de um camião aí estacionado;
- Estando já no dito terreno, o EE foi atingido por uma ou mais árvores cortadas pelo 2º R., o que lhe veio a determinar um conjunto de lesões que foram causa directa e necessária da morte;
- Os RR. viram o EE quando ele chegou ao terreno e quando se dirigiu ao local onde veio a ser atingido, tendo continuado o corte das árvores apesar de o terem visto e saberem que o mesmo se encontrava no local;
- O 2º R. actuou culposamente uma vez que foi o autor material do abate das árvores, sendo, consequentemente, responsável pelos danos causados;
- O 1º R. é igualmente responsável uma vez que, sendo o patrão do 2º R., foi ele que o encarregou do abate das árvores, respondendo, mesmo que não houvesse culpa da sua parte, nos termos previstos no art. 500º, nº 1, do Código Civil, considerando a relação de comissão existente entre ambos;
- Ainda que assim não se entendesse, a responsabilidade do 1º e 2º RR. decorreria do regime estabelecido no art. 493º, nº 2, do Código Civil, dado que o abate de árvores, face ao circunstancialismo alegado, é uma actividade perigosa.
O 1º R. contestou, impugnando, de forma motivada, parte substancial da factualidade vertida na petição inicial e alegando que o evento em discussão nos autos se deveu à conduta do falecido pai dos AA., o qual, de forma repentina, absolutamente imprevista e sem qualquer razão justificativa, entrou no terreno onde era desenvolvida a referida actividade.
A R. seguradora deduziu, de igual forma, contestação, sustentando que não estão reunidos os pressupostos do dever de indemnizar, uma vez que que os AA. não alegaram factos que permitam concluir que existiu, na situação em apreço, qualquer comportamento menos zeloso por parte do 1º e 2º RR., sendo certo que, a ser verdade que o falecido foi atingido por uma árvore quando se encontrava no terreno em causa, tal facto é imputável ao mesmo, em virtude de se ter introduzido no prédio em questão sem se fazer anunciar e sem que o 1º e o 2º RR. se tivessem apercebido da sua presença.
Paralelamente sustentou que o pagamento de uma eventual indemnização nunca seria da sua responsabilidade, uma vez que os danos em causa, face às condições gerais da apólice, estão excluídos da respectiva cobertura.
Em resposta, os AA. pronunciaram-se no sentido da improcedência da excepção peremptória de exclusão de cobertura invocada pela R. seguradora.
Por requerimento de 30 de Janeiro de 2018, os AA. procederam à redução do pedido, no que se refere à quantia relativa a despesas de funeral que vem mencionada em sede de articulados, passando a peticionar, a esse título, o montante de €60,19.
Com data de 18 de Outubro de 2018 (fls. 260) foi proferida sentença, julgando a acção improcedente e absolvendo os RR. dos pedidos contra eles formulados.
Inconformados, os AA. interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito, mas apenas na parte relativa à absolvição dos 1º e 2º RR., declarando expressamente conformarem-se com a absolvição da R. seguradora.
Por acórdão de 10 de Julho de 2019 (fls. 260) foi o recurso julgado improcedente, confirmando-se, com voto de vencido, a decisão recorrida.
2. Vêm os AA. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
“I -
1ª- O acórdão recorrido é nulo, por notória incongruência e obscuridade e por não se ter pronunciado sobre questão que devia apreciar – artigo 615º/1, c) e d) CP Civil.
2ª- Nas conclusões 5ª a 17ª das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação, os AA enunciaram factos instrumentais que resultaram da audiência de julgamento, e que podem esclarecer que a vítima estava em condições objectivas de ser vista pelos RR e que estes estavam em condições objectivas de a ver.
3ª- A comprovação de que os RR viram a vítima, ou estavam em condições de a ver, é determinante para provar a sua culpa, que, enquanto facto essencial, os AA alegaram na petição inicial.
4ª- Apesar de ter apreendido correctamente esta argumentação dos AA, o Tribunal da Relação não conheceu de tais factos, com o argumento de que os AA não os alegaram, e que pretendem “transmutar” factos alegados e demonstrar através de factos instrumentais realidade distinta da alegada na petição inicial.
5ª- Os AA não pretendem alterar nem completar o que alegaram (na petição ou na apelação), mas exactamente o contrário: visam provar o que alegaram, pelo que a fundamentação do acórdão recorrido para a decisão de não conhecer de tais factos é confusa, obscura e contraditória, infeliz.
II -
6ª- O acórdão recorrido é ainda nulo, por falta de fundamentação – artigo 615º/1, b) CPCivil.
7ª- Os AA alegaram, na petição inicial, a maior parte desses mesmos factos instrumentais (dia e hora do acidente, configuração do local e do caminho, motivos por que a vítima terá ido ao local, etc), só o não tendo feito de todos, porque alguns resultaram dos depoimentos de testemunhas e de um dos réus.
8ª- Não obstante, no acórdão recorrido diz-se que “alguns dos factos se revelam absolutamente inócuos e sem nenhum interesse para a solução do litígio, não encontrando suporte probatório alguns deles, e outros conflituam com a matéria já fixada” - mas não se diz quais e porquê “alguns” são “absolutamente inócuos”, quais e porquê “alguns” não têm suporte probatório, quais e porquê “outros” conflituam com a matéria já fixada.
III -
9ª- O acórdão recorrido violou a regra da distribuição do ónus da prova – artigo 342º/2 CCivil – e desconsiderou o alcance probatório da declaração de parte.
10ª- O acórdão recorrido bastou-se com o facto de os RR terem dito que não viram a vítima (antes do abate da árvore), quando é certo que lhes incumbia a eles provarem porque não viram a vítima, que normalmente seria vista, tendo em conta a hora, o dia, o local, a sua idade.
11ª- O acórdão recorrido conferiu às declarações do Réu DD, em benefício próprio, prestadas perante um agente da GNR, o mesmo valor probatório de um depoimento ou declaração de parte prestado em audiência pública de julgamento perante um juiz e sujeito ao contraditório da contra parte.
12ª- Apesar de “ver” ou “não ver” ser um facto pessoal, o acórdão recorrido aceitou que o Réu DD não viu a vítima, só porque o outro Réu disse que ele não viu.
13ª- O princípio da livre apreciação da prova não pode subverter as regras específicas de cada meio de prova, não podendo conferir arbitrariamente a declarações favoráveis prestadas perante uma autoridade policial o mesmo valor probatório de declarações prestadas em audiência, perante um juiz, nem pode conferir a declaração de parte de um Réu a virtualidade de provar factos pessoais, favoráveis, de outro Réu.
IV -
14ª- A nulidade do acórdão implica a nulidade de todo o acórdão, e portanto da decisão que recaiu sobre os factos impugnados (conclusões 18ª a 26ª da apelação), atenta a necessidade de compatibilizar toda a matéria de facto.
15ª- Caso assim não se entenda, os factos provados consolidam a convicção de que os RR agiram com culpa, efectiva, pois nada fizeram para verificar o local antes de abaterem as árvores, porque iniciavam o corte depois da interrupção do almoço, nem atentaram na presença da vítima no local, que era visível, atentas as circunstâncias de tempo, modo e lugar.
V -
16ª- No acórdão recorrido fez-se errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 5º/1 e 2, 154º, 415º/1, 454º/1, 466º/1, 552º/1, d), 607º/4 e 662º/1 e 2 do CP Civil, e nos artigos 342º/2 e 482º/1 do CCivil.”
O 1º R. contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:
“I. A douta fundamentação do douto Acórdão recorrido não é essencialmente diferente da douta fundamentação da Sentença de 1.ª Instância, que confirma;
II. Os Recorrentes não impugnam nem fundamentam o seu recurso no douto Voto de Vencido;
III. Os Recorrentes limitam-se a invocar nulidades do douto Acórdão recorrido – o que, em si, não confere direito nem é pressuposto para a admissibilidade do recurso de revista;
IV. Assim, por inadmissível, deve ser indeferida a interposição da Revista, por violação do disposto no Artigo 671.º do CPC, designadamente, no seu n.º 3.
V. A admissão, subsidiariamente, para o caso de não ser admitida a interposição do recurso de Revista, da arguição de nulidade também não pode ser deferida, porquanto é incompatível com a interposição de recurso, que determina a renúncia à arguição de nulidade;
VI. De qualquer modo, a argumentação dos Recorrentes é, inclusivamente, contrária à fundamentação do douto Voto de Vencido, que, assim, para eles não pode ter qualquer valimento, porquanto
VII. Neste subscreve-se pacífica e inteiramente a douta Decisão de Facto do douto Acórdão recorrido, cuja matéria os Recorrentes argúem de nulidade,
VIII. No douto Voto de Vencido considera-se em enorme proporção (70%) a culpa do lesado e em muito menor proporção (30%) a mera presunção de culpa do lesante, sendo que
IX. Os Recorrentes entendem que nem sequer se está perante uma situação de presunção de culpa, mas de efectiva (e a 100%) culpa dos Réus,
X. O que, só por si, é demonstrativo de que os Recorrentes não impugnam materialmente o douto Acórdão recorrido nem o douto Voto de Vencido (que, em si, em nada abona a tese dos Recorrentes) mas, apenas, lateralmente, invocando nulidades,
XI. Assim, repete-se, não podendo ser admitida a revista.
XII. Acresce que as invocadas nulidades não existem, pretendendo os Recorrentes, apenas, um segundo julgamento da matéria recursória, o que não é permitido por lei.
XIII. O douto Voto de Vencido, salvo sempre o enorme e devido respeito pelo Seu Ilustre Subscritor, não pode ter acolhimento, porquanto,
XIV. Para além de aceitar inteiramente a douta Decisão de Facto e a respectiva fundamentação,
XV. Pressupõe estar-se perante uma actividade perigosa – o que não é o caso, pois não está demonstrado,
XVI. Acrescendo que mesmo que o fosse ou possa ser, nas concretas circunstâncias do caso presente a culpa do lesado foi a única causa do evento danoso, o que afasta a culpa presumida nos termos do disposto no n.º 2 do Artigo 493.º do CCivil, por força do disposto no n.º 2 do Artigo 570.º do mesmo Diploma Legal.
XVII. Assim, e salvo sempre o devido respeito pela opinião contrária, para além de não existir qualquer causa de nulidade, não existe qualquer razão para a revogação do douto Acórdão recorrido, que deve ser mantido e confirmado integralmente.”
3. Por acórdão da conferência de 9 de Janeiro de 2020 (apenas no Citius), a Relação pronunciou-se no sentido da não verificação das alegadas nulidades.
4.1. Suscita o 1º R., aqui Recorrido, a questão da inadmissibilidade do recurso, invocando, por um lado, que para se descaracterizar a dupla conforme seria necessário que, além do voto de vencido, ocorresse fundamentação essencialmente diferente entre as decisões das instâncias; e, por outro lado, que, de qualquer forma, o voto de vencido não pode obstar à formação da dupla conforme uma vez que os Recorrentes não fundaram a sua pretensão recursória na posição assumida no dito voto.
A resolução da questão passa pelas seguintes considerações:
Conclui-se, assim, que a existência do voto de vencido vale, por si só, como impedimento à ocorrência de dupla conforme.
4.2. Invoca o 1º R. Recorrido um outro fundamento para a inadmissibilidade do recurso: tendo os Recorrentes invocado essencialmente nulidades do acórdão recorrido, o recurso não deve ser admitido uma vez que as nulidades não podem ser objecto autónomo de recurso.
Vejamos.
Tem o Recorrido razão ao alegar que a nulidade da decisão não constitui, por si só, objecto de recurso (cfr. arts. 615º, nº 4, e 617º, nº 5, do Código de Processo Civil, tal como têm sido interpretados pela jurisprudência deste Supremo Tribunal).
Contudo, compulsadas as conclusões recursórias pelas quais se delimita o objecto do recurso (cfr. art. 635º, nº 4, do CPC), identificam-se as seguintes questões:
Quanto a esta última questão, esclareça-se que, ainda que a formulação do pedido do recurso seja equívoca, a conclusão 15ª permite claramente a identificação de tal questão como integrando o objecto do recurso. Aliás, em sede de contra-alegações (conclusões XIII a XVII), pronunciou-se o 1º R., aqui Recorrido, sobre a questão substantiva da responsabilidade dos RR.
Deste modo, bastaria a identificação das duas últimas questões elencadas para se constatar que o objecto recursório integra outras questões para além daquelas que respeitam à nulidade do acórdão recorrido. A tais questões acresce, porém, como infra se justificará, uma outra, resultante da devida requalificação da alegada nulidade por omissão de pronúncia.
Assim, concluindo-se que o voto de vencido descaracterizou a dupla conforme e que o objecto do recurso integra tanto nulidades da decisão recorrida como questões de mérito, o presente recurso é admissível.
Cumpre apreciar e decidir.
5. Vem provado o seguinte (mantêm-se a numeração e a redacção da Relação):
1 – No dia 2 de Junho de 2015, a partir pelo menos das 13 horas, o 1º e o 2º réu procederam, sozinhos, ao corte de eucaliptos num terreno situado no …, entre … e …, freguesia de …/…, concelho de …, área da comarca de … (art. 1.º da petição inicial).
2 – Na ocasião, o 2.º réu trabalhava por conta e sob as ordens do 1.º réu, como seu assalariado (art. 2.º da petição inicial).
3 – O 2.º réu manuseava uma motosserra, com a qual cortava os eucaliptos que se encontravam no referido terreno (art. 3.º da petição inicial).
4 – As árvores caíam no solo sem protecção ou orientação de cordas (art. 4.º da petição inicial).
5 – No local, o terreno é em declive, servido no seu lado mais elevado por um caminho de terra batida (art. 5.º da petição inicial).
6 – O 1.º réu manobrava a grua de um camião com a qual retirava os troncos já cortados dos eucaliptos, a fim de os acomodar num veículo (camião) destinado a transportá-los (art. 7.º da petição inicial).
7 – Nesse dia 2 de Junho, EE saiu de casa, na Rua …, …, em …, com uma foice, dizendo ao genro, FF, que ia ao pinhal e que “não demorava” (art. 8º da petição inicial).
8 – Por motivos não concretamente apurados, o EE dirigiu-se ao terreno onde estavam a ser cortados os eucaliptos, vindo a ser atingido por uma árvore cortada pelo 2º réu (art. 13.º da petição inicial).
9 – O 1.º réu chamou o serviço de emergência médica, tendo comparecido no local uma equipa do INEM e dos bombeiros voluntários, bem como a GNR (arts. 14.º e 15.º da petição inicial).
10 – O falecido foi encontrado a cerca de 55 metros do caminho de terra batida referido em 5 (art. 16.º da petição inicial).
11 – A autópsia ao corpo de EE, pelo Serviço de Patologia Forense do Gabinete Médico-Legal e Forense do Baixo Vouga, revelou, além do mais, fractura do esterno e bilateral das costelas, contusão e laceração do saco pericárdico, contusão e laceração cardíaca e pulmonar esquerda, hemotórax bilateral, lacerações da aorta torácica, laceração diafragmática, hemoperitoneu, esfacelo e lacerações do baço, avulsão dos rins, contusão intestinal, infiltração sanguínea peri-esofágica, peri-aórtica, peri-pancreática, bilateral do psoas, peri-suprarrenal esquerda e peri-renal bilateral, fracturas da bacia, fractura de D6 e L2 e dos discos D9/D10 e L4/L5, hemorragia epidural, subdural e subaracnoide dos segmentos vertebrais dorsal e lombar (art. 17.º da petição inicial).
12 – O Serviço de Patologia concluiu que a morte de EE foi devida às lesões traumáticas tóraco-abdomino-pélvicas e raqui-meningueas dorsais e lombares supra descritas, as quais constituíram causa adequada da morte (art. 18.º da petição inicial).
13 – Segundo o relatório, “tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devidas à queda de uma árvore” (art. 22.º da petição inicial).
14 – As árvores que estavam a ser cortadas tinham mais de 20 metros de altura (art. 23.º da petição inicial).
15 – O 1.º réu celebrou com a 3.ª ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, na modalidade “RC empresarial”, actividade “dumpers”, titulado pela apólice n.º 00…4.07.1…2, cujas condições resultam do documento de fls. 90 a 116, cujo teor se considera integralmente reproduzido (art. 35.º da petição inicial e art. 30.º da contestação da ré seguradora).
16 – EE deixou como seus únicos herdeiros os autores, seus filhos, como tal habilitados por escritura de 24 de Julho de 2015 (art. 37.º da petição inicial).
17 – À data da morte, o falecido contava 77 anos, tendo nascido em 25 de Dezembro de 1937 (art. 45.º da petição inicial).
18 – Com a morte do seu pai os autores sofreram um desgosto (art. 50.º da petição inicial).
19 – O EE vivia com a sua filha, ora autora, e o genro (art. 51.º da petição inicial).
20 – Com o funeral de seu pai, a autora suportou uma despesa de 1.317,85 € (art. 2.º da petição inicial).
21 – O corte de árvores no terreno em questão iniciou-se na semana anterior a 2 de Junho de 2015 (art. 6.º da contestação do 1.º réu e art. 17.º da contestação da ré seguradora).
22 – Tendo sido cortados cerca de dois terços das árvores aí existentes, de norte para sul, na referida semana em que se iniciaram os trabalhos (art. 7.º da contestação do 1.º réu).
23 – O terreno em causa está compreendido entre dois caminhos florestais, a Norte e a Sul (art. 8.º da contestação do 1.º réu).
24 – Naquele dia 02/06/2017, o 1.º réu encontrava- sensivelmente a meio do terreno, naquela parte já sem árvores, com o camião e a grua a carregar madeira cortada (art. 17.º da contestação do 1.º réu).
[alterado pela Relação; na sentença tinha a seguinte redacção: Naquele dia 02/06/2017, o 1.º réu encontrava- sensivelmente a meio do terreno (orientação Norte/Sul), naquela parte já sem árvores, com o camião e a grua a carregar madeira cortada]
25 – O 2.º réu encontrava-se um pouco mais para Sul, a cortar o resto das árvores (art. 18.º da contestação do 1.º réu).
26 – Orientando a sua queda de Poente para Nascente, caindo com a copa para este lado (art. 19.º da contestação do 1.º réu).
27 – O 2.º réu é madeireiro experiente e as árvores estavam a cair nos termos e para o lado pretendido, ficando completamente dentro das estremas do terreno (art. 20.º da contestação do 1.º réu).
28 – No local em causa, era perfeitamente audível o ruído da motosserra manobrada pelo 2.º réu, sendo ainda audível o ruído da grua em funcionamento e das árvores que iam caindo à medida que iam sendo cortadas (art. 21.º da contestação do 1.º réu e art. 22.º da contestação da ré seguradora).
29 - Sendo que motosserra produz um som muito ruidoso que, ao cortar, se torna quase ensurdecedor (art. 21.º da contestação da ré seguradora).
30 – O falecido EE entrou no terreno onde se estava a realizar o corte das árvores sem se fazer anunciar aos réus nem previamente avisar (arts. 22.º e 45.º da contestação do 1.º réu e art. 24.º da contestação da ré seguradora).
31 – Sendo do perfeito conhecimento do falecido EE, atenta a factualidade descrita em 28 e 29, que no referido terreno estava a ser desenvolvida a actividade de corte (abate) de árvores (art. 21.º da contestação do 1.º réu e art. 23.º da contestação da ré seguradora).
32 – Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos (art. 24.º da contestação do 1.º réu e art. 25.º da contestação da ré seguradora).
33 – As árvores, uma vez cortadas, caíam inteiramente dentro do terreno, com a orientação pretendida, sem ultrapassarem qualquer das suas estremas (arts. 30.º e 36.º da contestação do 1.º réu).
34 – Estando a sua queda voluntariamente orientada de Poente para Nascente (art. 31.º da contestação do 1.º réu).
35 – A orientação da queda não se faz com cordas (art. 32.º da contestação do 1.º réu).
36 – As cordas – ou cabos de aço – usam-se não para orientar as árvores, mas para evitar que atinjam bens em determinadas circunstâncias, designadamente, quando as árvores estão juntas a casas habitadas ou a estradas com trânsito (art. 34.º da contestação do 1.º réu).
37 – A orientação da queda das árvores é feita com o corte, em duas fases, do seguinte modo:
a) Do lado para o qual se pretende que caia, fazem-se dois cortes: um, horizontal, até cerca de um terço do diâmetro do tronco (abertura da boca) e, seguidamente, um outro corte, acima desse, em diagonal descendente, num ângulo de 45 graus, até atingir o primeiro corte, assim se formando uma abertura no tronco a que, na gíria, chamam dente;
b) Após, e do lado contrário, faz-se um corte horizontal (ligeiramente acima do primeiro corte horizontal) na direcção do primeiro corte horizontal, e é com ele (corte de abate) que se vai provocar a queda do tronco para o lado pretendido, que é o oposto, por falta de apoio (art. 37.º da contestação do 1.º réu).
38 – O local onde se processava o corte das árvores era uma zona erma, sem qualquer circulação de pessoas (art. 44.º da contestação do 1.º réu).
39 – Sendo o terreno onde era efectuado o mencionado corte de árvores uma propriedade privada (art. 45.º da contestação do 1.º réu).
40 – Os réus não combinaram nem lhe foi referido pelo proprietário do terreno (a quem o 1.º réu comprou os eucaliptos) a sua intenção de deslocação ao terreno, quer dele, quer de terceiros, naquele dia ou em qualquer outro enquanto durasse o corte (derrube) (art. 18.º da contestação da ré seguradora).
Foram dados como não provados os seguintes factos:
- O terreno, no lado referido em 5, àquela data, tinha apenas mato rasteiro, com não mais de meio metro de altura (art. 6.º da petição inicial).
- O camião referido em 6 encontrava-se parado no caminho a que se alude em 5 (parte restante do art. 7.º da petição inicial).
- Na véspera do referido dia 2/6/2015, o EE fora procurado por um vizinho, com vista a ajudar a identificar quais os estremas de um terreno, onde no dia seguinte iriam ser cortados eucaliptos – terreno, no Cabeço, onde os 1.º e 2.º réu procediam ao corte dos eucaliptos (arts. 9.º e 10.º da petição inicial).
- O único acesso ao terreno do Cabeço era o caminho florestal aberto na parte mais elevada do terreno, onde estava o 1.º réu a carregar a madeira com uma grua do camião (art. 11.º da petição inicial).
- Foi por esse caminho que o EE acedeu ao terreno (art. 12.º da petição inicial).
- O 1.º e o 2.º réu viram o EE quando este chegou ao terreno, vindo pelo caminho onde estava o camião, e também o viram quando ele se dirigiu para o ponto onde foi atingido (art. 20.º da petição inicial).
- Apesar de o terem visto e de saberem da sua presença no local, ainda assim o 1.º e 2.º réu continuaram o corte das árvores (art. 21.º da petição inicial).
- Em virtude do terreno ser inclinado, era praticamente impossível assegurar para que lado é que as árvores cairiam (art. 24º da petição inicial).
- O 2.º réu declarou perante a GNR que confiava que as árvores caíssem “a favor do vento” (art. 25.º da petição inicial).
- Por não terem amarrado com cordas as árvores a abater, os réus não podiam controlar a orientação da sua queda (art. 26.º da petição inicial).
- O abate de árvores, mesmo previamente sustentadas por cordas, é susceptível de que elas, por acção do seu próprio peso, da sua altura e do vento, possam cair sem orientação previamente definida, ou ao contrário da orientação pretendida, atingindo pessoas e bens (art. 32.ºda petição inicial).
- O falecido [era] um homem saudável, forte e trabalhador, preenchendo o seu tempo com trabalhos domésticos e agrícolas (art. 46.º da petição inicial).
- O comprimento das árvores (eucaliptos) que estavam a ser cortadas (do pé ao extremo da copa) não excedia os 20 metros (art. 29.º da contestação do 1.º réu).
6. Como se enunciou supra, ponto 4 do acórdão, o objecto do presente recurso integra as seguintes questões:
7. Consideremos a questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por “incongruência” (ou ambiguidade) e obscuridade (art. 615º, nº 1, alínea c), segunda parte, do CPC).
De acordo com o entendimento comum, para efeitos do regime de nulidade por ininteligibilidade da decisão, previsto na referida norma, ambígua será a decisão à qual seja razoavelmente possível atribuírem-se, pelo menos, dois sentidos díspares sem que seja possível identificar o prevalente; obscura será a decisão cujo sentido seja impossível de ser apreendido por um destinatário medianamente esclarecido.
Compulsado o acórdão recorrido, constata-se que tanto a decisão com a respectiva fundamentação são claras, inequívocas e compreensíveis. Não pode confundir-se a nulidade devido às enunciadas causas de ininteligibilidade com a discordância relativamente ao conteúdo e sentido da decisão, a qual apenas pode ser apreciada em sede de erro de julgamento.
Conclui-se, assim, pela não verificação da nulidade prevista na segunda parte da alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC.
8. Quanto à questão da alegada nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre factos instrumentais (art. 615º, nº 1, alínea d), do CPC), assinale-se que o vício de omissão de pronúncia respeita a questões de direito e não ao juízo probatório sobre certos factos. O não conhecimento, total ou parcial, da impugnação da matéria de facto poderá integrar antes uma violação de norma processual imputada à Relação, sendo de apreciar infra, enquanto tal, e não enquanto causa de nulidade da decisão.
Deste modo, conclui-se não se verificar a invocada nulidade por omissão de pronúncia.
9. A alegada nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação (art. 615º, nº 1, alínea c), primeira parte, do CPC) é manifestamente improcedente. O acórdão recorrido encontra-se extensa e sustentadamente fundamentado, tanto no que se refere à decisão de facto como à decisão de direito.
Improcede igualmente a alegação de nulidade por falta de fundamentação.
10. Não padecendo o acórdão recorrido de vício gerador de nulidade, passa-se, em seguida, a apreciar as questões de mérito que são – recorde-se – as seguintes (pela ordem pela qual serão conhecidas):
11. Quanto à questão da alegada violação das regras de distribuição do ónus da prova (art. 342º, nº 1 do Código Civil), invocam os Recorrentes essencialmente o seguinte: que o acórdão recorrido – ao confirmar a prova do facto 32 (“Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos”) no qual as instâncias fundaram o juízo de ausência de culpa efectiva dos RR. – valorou as declarações prestadas pelo R. DD à autoridade policial, após o sinistro, com o alcance da prova por declaração de parte.
Antes de mais, impõe-se uma correcção: a questão concretamente formulada pelos Recorrentes não respeita a uma alegada violação do regime normativo de distribuição do ónus da prova, mas antes a uma alegada violação do regime de direito probatório, a qual, nos termos do disposto no art. 674º, nº 1, alínea b), do CPC, cabe a este Supremo Tribunal conhecer.
Devidamente qualificada verifica-se que, tanto por a alegada equiparação à prova por declaração de parte não ter ocorrido, como por, em qualquer caso, se encontrar o resultado de tal meio probatório sujeito ao princípio da livre apreciação (art. 466º, nº 3, do CPC), não sindicável por este Supremo Tribunal (primeira parte do referido nº 3 do art. 674º, do CPC), a pretensão dos Recorrentes é manifestamente infundada.
12. De acordo com o que se afirmou supra, ponto 7 do presente acórdão, ainda que expressa de forma imperfeita pelos Recorrentes, é possível identificar-se a sua pretensão em que seja declarado que a Relação desrespeitou norma processual relativa ao conhecimento da impugnação da matéria de facto apresentada pelos apelantes, na parte em que estes pretendiam que fossem aditados determinados factos instrumentais (mais concretamente, os enunciados nas conclusões 5ª a 17ª da apelação).
Consideremos o teor das conclusões da apelação, na parte relevante:
“I - FACTOS INSTRUMENTAIS A CONSIDERAR
1ª- O acidente ocorreu na presença apenas de três pessoas, das quais uma foi a vítima, que faleceu, a outra o Réu que não contestou, nem compareceu, e a outra o Réu que contestou e prestou declarações.
2ª- O Tribunal bastou-se com a declaração do Réu contestante, que afirmou que eles não viram a vítima aparecer, que apareceu de súbito.
3ª- Mas o Tribunal, prosseguindo o interesse público da boa administração da justiça, devia ter procurado saber se, nas concretas e objectivas circunstâncias de lugar, tempo e modo, a vítima seria visível, de tal forma que os RR não podiam deixar de a ver.
4ª- Da instrução da causa resultaram factos instrumentais que o Tribunal desconsiderou em absoluto, e que contribuem decisivamente para responder à questão de saber se a vítima, quando entrou no terreno, era a tal ponto visível, que os RR não podiam deixar de a ver. São eles (conclusões 5ª a 17ª):
5ª- No local o terreno é em declive, servido do seu lado mais elevado, a norte, por um caminho de terra batida, acabando mais inclinado a sul numa ribanceira ou cômoro com 2 a 3 metros, que entesta com o rio …, um espaço pantanoso de muito difícil acesso.
6ª - Na sua estrema poente, esquerda, o prédio tem taludes com diferentes níveis, um marco em granito, alguns troços com alinhamentos definidos entre árvores âncora através de uma série de pequenos valados que contribuem para uma delimitação reconhecível. E a estrema nascente está definida por um alinhamento de árvores não cortadas pertencentes ao prédio confinante.
7ª- O terreno em causa, com uma configuração sensivelmente rectangular, com uma largura média de 30 m e 96 m da estrema nascente, media cerca de 26/27,5m na estrema norte.
8ª- O caminho de cima, do norte, é o mais fácil para aceder ao terreno. O bom acesso ao terreno é sempre por norte e o caminho do sul, de baixo, é em pântano e de difícil acesso.
9ª- A vítima percorreu o caminho do norte, de cima, para aceder ao terreno.
10ª- A vítima saiu de casa cerca das 13h20m e o acidente ocorreu cerca das 14h30m.
11ª- No dia 2 de Junho, pelo menos entre as 13h e as 15h, o sol estava descoberto, em condições de qualquer pessoa, que chegasse pelo caminho do Cabeço, ver e ser vista.
12ª- A vítima vestia camisa azul, branca e bordeaux.
13ª- Aquando da queda da árvore fatal, a vítima estava a 20 m do Réu DD e a 30 m do Réu CC; o Réu estava a 35/40 m do Réu DD, estando este para sul; o Réu CC estava a meio do terreno, a carregar a madeira (cortada); o Réu DDs estava a 60/70m do caminho, no limite de 2/3 do terreno já cortado.
14ª- No domingo anterior ao acidente, o Réu CC, o dono do terreno e a testemunha GG encontraram-se no caminho norte do terreno para falar sobre a localização de um bocado de terreno mais a norte.
15ª- Como o GG não o conhecia, foi-lhe pedido que falasse com a pessoa que sabia das estremas dos terrenos.
16ª- Na segunda feira seguinte, o Réu CC não foi ao terreno.
17ª- A vítima foi ao terreno depois de na véspera a testemunha GG lhe ter falado sobre se conhecia as estremas do terreno do Cabeço, onde decorria o corte.”
A Relação apreciou a pretensão dos apelantes nos seguintes termos:
“Alegaram, entre o mais, os autores na sua petição inicial que no dia e local nela identificados, estando o segundo réu a manusear uma motosserra, com a qual cortava eucaliptos existentes no terreno, enquanto o primeiro réu manobrava a grua de um camião, recolhendo e acondicionando os troncos das árvores já cortadas, a vítima, EE, dirigiu-se ao terreno onde decorriam aqueles trabalhos e nele se introduziu, afirmando que “O 1º e o 2º RR viram o EE quando este chegou ao terreno, vindo pelo caminho onde estava o camião, e também o viram quando ele se dirigiu para o ponto onde foi atingido” – artigo 20.º - e que “…apesar de o terem visto e de saberem da sua presença no local, ainda assim os 1º e 2º RR continuaram o corte das árvores” – artigo 21.º.
O tribunal recorrido julgou não provada a matéria alegada nos artigos 20.º e 21.º da petição inicial e, ao invés, considerou provado que “nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos” – ponto 32.º dos factos provados.
Em sede de recurso argumentam os recorrentes que do processo e da instrução do mesmo emergem factos objectivos, designadamente factos instrumentais, que o tribunal recorrido desvalorizou, e que podiam esclarecer se a vítima estava em condições objectivas de ser vista e se os réus estavam em condições objectivas de ver aquela.
Defendem que esses factos deviam ter sido atendidos para a boa solução da causa, convocando, para o efeito, o disposto nos artigos 5.º, n.º 2, a) e 607.º n.º 4, ambos do Código de Processo Civil.
Para indagar se a vítima era visível pelos réus e se estes antecipadamente não podiam [ter] deixado de a ter visto, enumeram as seguintes circunstâncias que, indagadas, deviam ter sido consideradas na decisão sobre a matéria de facto:
(i)- o local onde o acidente ocorreu;
(ii)- a natureza dos caminhos, para apurar por qual é que a vítima acedeu ao local;
(iii)- as condições naturais e objectivas de visibilidade;
(iv)- as posições relativas da vítima, do 1.º Réu e do 2.º Réu nos momentos que antecederam o acidente;
(v)- o motivo por que a vítima foi ao local.
E no desenvolvimento de tal raciocínio propõem os recorrentes que sejam adicionados aos factos provados os que indicam nos pontos 5.º a 17.º das suas conclusões recursivas.
O artigo 5.º da actual lei processual civil corresponde, ainda que com profundas alterações, ao que dispunha o anterior diploma no seu artigo 264º - que fazia recair sobre as partes os ónus de alegação –, e artigo 664º - que delimitava os poderes de cognição do tribunal.
O n.º 1 do artigo 5.º continua a impor às partes o ónus de alegação, quanto aos “factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas”.
Permite, todavia, o n.º 2 do mesmo normativo que, além dos factos articulados pelas partes, o juiz considere:
“a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar”.
Não podendo o juiz supor ou inventar factos que não hajam sido alegados, os factos que o n.º 2 do artigo 5.º lhe consente que atenda hão-de resultar da instrução da causa. Ou seja, trata[m]-se de factos que apesar de não haverem sido invocados pelas partes, a produção de prova lhes assegurou consistência suficiente para poderem ser ponderados.
E, ainda assim, não serão quais quaisquer factos os atendíveis nessas circunstâncias pelo juiz, que apenas poderá ter em conta os factos instrumentais e, quanto aos essenciais, os que constituam complemento ou concretização dos alegados pelas partes.
É que não, não obstante as profundas alterações introduzidas neste domínio pelo novo Código de Processo Civil, continua a haver vinculação temática à causa de pedir: esta continua a delimitar o objecto do processo, e não pode ser livremente alterada.
Lopes do Rego escreveu a propósito do pretérito artigo 264.º: “O regime vigente baseia-se numa fundamental distinção entre factos essenciais e factos instrumentais. Os factos essenciais são os que, concretizando, especificando e densificando os elementos da previsão normativa em que se funda a pretensão do autor ou do reconvinte, ou a excepção deduzida pelo réu como fundamento da sua defesa, se revelam decisivos para a viabilidade ou procedência da acção, da reconvenção ou da defesa por excepção, sendo absolutamente indispensáveis à identificação, preenchimento e substanciação das situações jurídicas afirmadas e feitas valer em juízo pelas partes.
Os factos instrumentais destinam-se a realizar prova indiciária dos factos essenciais, já que através deles se poderá chegar, mediante presunção judicial, à demonstração dos factos essenciais correspondentes – assumindo, pois, em exclusivo uma função probatória e não uma função de preenchimento e substanciação jurídico-material das pretensões da defesa”.
(…)
Acerca dos factos complementares ou concretizadores de factos essenciais alegados pelas partes, que se destinam a corrigir ou completar factos essenciais deficientemente alegados pela parte a quem os mesmos aproveitam, esclarece, na obra citada, Lopes do Rego que estes assumem relevância quando “...tendo a parte alegado satisfatoriamente o núcleo fáctico essencial, integrador da causa de pedir ou da excepção deduzida (…) omite a concretização ou densificação de um segmento ou circunstância que acaba por se revelar fundamental para a procedência da acção, da reconvenção ou da excepção”.
Se os factos instrumentais podem ser considerados oficiosamente pelo juiz, sem outras restrições que não sejam a sua pertinência para a decisão da causa, já quanto aos factos complementares ou concretizadores dos factos essenciais se exige o exercício do contraditório, no que respeita à sua consideração e aproveitamento, não carecendo de requerimento da parte interessada na sua atendibilidade, embora nada obste que ela formule pedido nesse sentido.
Em todo o caso, quanto a estes últimos, constituirá sempre pressuposto dessa atendibilidade o prévio exercício do contraditório. De forma a ser garantida a igualdade de armas e a assegura[r]-se um processo equitativo e equilibrado, decidindo o juiz atender a factos complementares ou concretizadores dos alegados, deve previamente anunciá-lo às partes, facultando-lhes mesmo a possibilidade de indicarem meios de prova sobre os mesmos, possibilitando-lhes a confirmação ou infirmação desses factos.
Como sublinha Fernando Pereira Rodrigues, “...a pessoa que recorre a juízo tem obrigação, antes de mais, de fazer a alegação dos factos. O “ónus allegandi” é o primeiro que a parte tem de ultrapassar quando se dirige, ou é chamada, a juízo. Efectivamente, cabe às partes alegar os factos que servem de fundamento à sua pretensão, sejam a procedência ou a improcedência da acção.
E este ónus não é de parco ou irrelevante resultado, porque a falta de alegação pode comportar consequências irreparáveis para a parte, na medida em que o juiz, por princípio, não pode tomar em consideração factos que a parte não alegou”.
É, com efeito, a factualidade invocada pelas partes que delimita o objecto da acção e baliza as fronteiras do conhecimento consentido ao julgador.
Se a parte não alega os factos estruturantes da pretensão que deduz, ou se os alega de modo insuficiente, terá de se conformar com as consequências dessa falta ou deficiente alegação.
Jamais poderá suprir a falta de cumprimento desse dever de alegação, reclamando que se tenham como provados factos que não foram alegados, ou a transmutação dos alegados, como pretendem os recorrentes, que ao serem confrontados com a comprovação do facto de que nenhum dos dois primeiros réus viu a vítima pretendem agora demonstrar através de factos instrumentais realidade distinta da alegada na petição inicial.
Acresce ainda que alguns dos factos que os recorrentes pretendem que por esta via sejam adquiridos para o acervo dos factos provados se revelam absolutamente inócuos e sem nenhum interesse para a solução do litígio, não encontrando suporte probatório alguns deles, e outros conflituam com matéria já fixada.
Por tais razões, não se vê fundamento para ampliar a matéria de facto, aditando à mesma qualquer dos factos indicados pelos recorrentes nas alíneas 5.ª a 17.ª das suas conclusões.” [negritos nossos]
Insurgem-se os Recorrentes contra esta decisão invocando, essencialmente, o seguinte:
“Os AA não pretendem alterar nem completar o que alegaram (na petição ou na apelação), mas exactamente o contrário: visam provar o que alegaram”; “Os AA alegaram, na petição inicial, a maior parte desses mesmos factos instrumentais (dia e hora do acidente, configuração do local e do caminho, motivos por que a vítima terá ido ao local, etc), só o não tendo feito de todos, porque alguns resultaram dos depoimentos de testemunhas e de um dos réus”; “Apesar de ter apreendido correctamente esta argumentação dos AA, o Tribunal da Relação não conheceu de tais factos, com o argumento de que os AA não os alegaram, e que pretendem “transmutar” factos alegados e demonstrar através de factos instrumentais realidade distinta da alegada na petição inicial”.
Quid iuris?
12.1. Independentemente de se comprovar se assiste ou não razão aos Recorrentes quando invocam que os factos instrumentais em causa foram oportunamente alegados ou resultaram da produção da prova, esclareça-se que, a final, a Relação tomou posição sumária sobre os mesmos, declarando:
“Acresce ainda que alguns dos factos que os recorrentes pretendem que por esta via sejam adquiridos para o acervo dos factos provados se revelam absolutamente inócuos e sem nenhum interesse para a solução do litígio, não encontrando suporte probatório alguns deles, e outros conflituam com matéria já fixada.”
Perante este juízo global, não discriminando cada um dos factos, há que fazer uma distinção.
No que se refere ao juízo probatório de tais factos (elencados nas conclusões 5ª a 17ª da apelação), estando em causa meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, não cabe a este Supremo Tribunal sindicar o juízo probatório (negativo) da Relação (art. 674º, nº 3, primeira parte, do CPC).
Quanto ao juízo da irrelevância de tais factos para a solução do litígio trata-se de questão de direito, sindicável por este Supremo Tribunal.
Teria sido mais rigoroso se o acórdão recorrido tivesse identificado quais os factos que entendeu não provados e quais aqueles que entendeu serem irrelevantes. Não o tendo feito, procederemos em seguida à reapreciação da questão – que, ainda que imperfeitamente expressa, é uma das questões essenciais da presente revista – de saber se os referidos factos, elencados nas conclusões 5ª a 17ª da apelação, são ou não relevantes para a solução do litígio. Sendo que, se a resposta for afirmativa, ao abrigo do nº 3 do art. 682º do CPC, os autos terão de baixar, de novo, à Relação, para esta proceder ao juízo probatório de cada um dos factos relevantes.
Vejamos então.
12.2. Recorde-se que os apelantes pretendiam que se aditassem os seguintes factos (por si elencados nas conclusões 5ª a 17ª da apelação):
5ª- No local o terreno é em declive, servido do seu lado mais elevado, a norte, por um caminho de terra batida, acabando mais inclinado a sul numa ribanceira ou cômoro com 2 a 3 metros, que entesta com o rio …, um espaço pantanoso de muito difícil acesso.
6ª - Na sua estrema poente, esquerda, o prédio tem taludes com diferentes níveis, um marco em granito, alguns troços com alinhamentos definidos entre árvores âncora através de uma série de pequenos valados que contribuem para uma delimitação reconhecível. E a estrema nascente está definida por um alinhamento de árvores não cortadas pertencentes ao prédio confinante.
7ª- O terreno em causa, com uma configuração sensivelmente rectangular, com uma largura média de 30 m e 96 m da estrema nascente, media cerca de 26/27,5m na estrema norte.
8ª- O caminho de cima, do norte, é o mais fácil para aceder ao terreno. O bom acesso ao terreno é sempre por norte e o caminho do sul, de baixo, é em pântano e de difícil acesso.
9ª- A vítima percorreu o caminho do norte, de cima, para aceder ao terreno.
10ª- A vítima saiu de casa cerca das 13h20m e o acidente ocorreu cerca das 14h30m.
11ª- No dia 2 de Junho, pelo menos entre as 13h e as 15h, o sol estava descoberto, em condições de qualquer pessoa, que chegasse pelo caminho do Cabeço, ver e ser vista.
12ª- A vítima vestia camisa azul, branca e bordeaux.
13ª- Aquando da queda da árvore fatal, a vítima estava a 20 m do Réu DD e a 30 m do Réu CC; o Réu estava a 35/40 m do Réu DD, estando este para sul; o Réu CC estava a meio do terreno, a carregar a madeira (cortada); o Réu DD estava a 60/70m do caminho, no limite de 2/3 do terreno já cortado.
14ª- No domingo anterior ao acidente, o Réu CC, o dono do terreno e a testemunha GG encontraram-se no caminho norte do terreno para falar sobre a localização de um bocado de terreno mais a norte.
15ª- Como o GG não o conhecia, foi-lhe pedido que falasse com a pessoa que sabia das estremas dos terrenos.
16ª- Na segunda feira seguinte, o Réu CC não foi ao terreno.
17ª- A vítima foi ao terreno depois de na véspera a testemunha GG lhe ter falado sobre se conhecia as estremas do terreno do Cabeço, onde decorria o corte.
Compulsado o acórdão recorrido, verifica-se que a Relação concluiu pela irrelevância dos factos instrumentais em função do entendimento de que a pretensão dos AA. só poderia proceder se ficasse provado que os RR. avistaram a pessoa da vítima antes do sinistro ocorrer. O que não sucedeu, uma vez que ficou provado que “Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos” (facto 32).
Ora, na perspectiva dos apelantes – retomada no presente recurso de revista – tais factos, a serem dados como provados, levariam a responsabilizar o 1º e 2º RR., não por terem avistado a vítima antes do sinistro, mas sim por, em tais circunstâncias, poderem e deverem tê-la avistado.
É esta diferença de posicionamento – o tribunal a quo atribuindo relevância tão só a factos que consubstanciam o que, afigura-se, seria uma situação de dolo eventual (ou de negligência grosseira) dos RR.; os Recorrentes considerando relevantes factos que, a seu ver, consubstanciam uma situação de culpa leve dos RR. – que explica e, até certo ponto, justifica, a falta de conformação dos Recorrentes com a decisão do acórdão recorrido.
Por outras palavras, a aferição da relevância de determinada factualidade tem de ser realizada em função das diversas soluções plausíveis de direito. Na medida em que, em regra, qualquer grau de culpa permite responsabilizar civilmente, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil, cumpre apreciar se com os factos em causa, a serem dados como provados, resultaria provada uma actuação dos RR. com culpa leve.
A resposta é negativa. Os factos que os apelantes pretendiam que fossem aditados respeitam à maior densificação das circunstâncias de espaço e de tempo em que o sinistro ocorreu (conclusões 5ª a 13ª) ou à prova de justificação para a presença da vítima no local (conclusões 14ª a 17ª). Quanto à primeira categoria, nenhum desses factos, a ser provado, permitiria, por si só, que se desse como provado que, nos momentos que antecederam o sinistro, o 1º e o 2º RR. podiam e deviam ter avistado a vítima. Dado o local ermo em que se encontravam, a falta de visibilidade inerente a um terreno arborizado e, sobretudo, a necessária concentração na actividade de “corte” de árvores em que se ocupavam, não seria a prova de qualquer dos referidos factos que levaria a concluir terem os RR. actuado com culpa leve. O mesmo se diga quanto à segunda categoria de factos porque a eventual prova de que a vítima se deslocara ao local do sinistro por um motivo justificado só poderia relevar, para efeitos de responsabilização do 1º e 2º RR., se fosse acompanhada da prova de factos que demonstrassem que estes sabiam da probabilidade de que tal deslocação tivesse lugar. Só assim se poderia concluir pela existência de culpa efectiva dos ditos RR. ao não tomarem medidas aptas a prevenir o sinistro.
Aqui chegados, concluindo-se pela irrelevância de todos os factos em causa para formular um juízo (pretendido pelos Recorrentes) de culpa leve (efectiva) dos RR., fica prejudicada – por ser acto inútil – a determinação da baixa dos autos a fim de a Relação identificar, entre os factos que os apelantes pretendiam aditar, quais aqueles que entendeu como não provados, quais aqueles que entendeu serem irrelevantes para a prova do dolo eventual (ou negligência grosseira) dos RR.; assim como para efectuar o correspondente juízo probatório sobre estes últimos.
13. Sendo improcedentes as pretensões dos Recorrentes relativamente à decisão da matéria de facto, cumpre reapreciar a questão da responsabilidade do 1º e 2º RR. pelo acidente que causou a morte do pai dos AA. sem, como se esclareceu supra, estar o Tribunal restringido à qualificação dos factos feita pelos Recorrentes.
Consideremos a factualidade provada relevante:
1 – No dia 2 de Junho de 2015, a partir pelo menos das 13 horas, o 1º e o 2º réu procederam, sozinhos, ao corte de eucaliptos num terreno situado no Cabeço, entre …. e …, freguesia de …/…, concelho de …, área da comarca de …
2 – Na ocasião, o 2.º réu trabalhava por conta e sob as ordens do 1.º réu, como seu assalariado
3 – O 2.º réu manuseava uma motosserra, com a qual cortava os eucaliptos que se encontravam no referido terreno
4 – As árvores caíam no solo sem protecção ou orientação de cordas
5 – No local, o terreno é em declive, servido no seu lado mais elevado por um caminho de terra batida
6 – O 1.º réu manobrava a grua de um camião com a qual retirava os troncos já cortados dos eucaliptos, a fim de os acomodar num veículo (camião) destinado a transportá-los
7 – Nesse dia 2 de Junho, EE saiu de casa, na Rua …, …, em …, com uma foice, dizendo ao genro, FF, que ia ao pinhal e que “não demorava”
8 – Por motivos não concretamente apurados, o EE dirigiu-se ao terreno onde estavam a ser cortados os eucaliptos, vindo a ser atingido por uma árvore cortada pelo 2º réu
10 – O falecido foi encontrado a cerca de 55 metros do caminho de terra batida referido em 5
12 – O Serviço de Patologia concluiu que a morte de EE foi devida às lesões traumáticas tóraco-abdomino-pélvicas e raqui-meningueas dorsais e lombares supra descritas, as quais constituíram causa adequada da morte
13 – Segundo o relatório, “tais lesões traumáticas denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter sido devidas à queda de uma árvore”
14 – As árvores que estavam a ser cortadas tinham mais de 20 metros de altura
17 – À data da morte, o falecido contava 77 anos, tendo nascido em 25 de Dezembro de 1937
23 – O terreno em causa está compreendido entre dois caminhos florestais, a Norte e a Sul
24 – Naquele dia 02/06/2017, o 1.º réu encontrava- sensivelmente a meio do terreno, naquela parte já sem árvores, com o camião e a grua a carregar madeira cortada
25 – O 2.º réu encontrava-se um pouco mais para Sul, a cortar o resto das árvores
26 – Orientando a sua queda de Poente para Nascente, caindo com a copa para este lado
27 – O 2.º réu é madeireiro experiente e as árvores estavam a cair nos termos e para o lado pretendido, ficando completamente dentro das estremas do terreno
28 – No local em causa, era perfeitamente audível o ruído da motosserra manobrada pelo 2.º réu, sendo ainda audível o ruído da grua em funcionamento e das árvores que iam caindo à medida que iam sendo cortadas
29 – Sendo que motosserra produz um som muito ruidoso que, ao cortar, se torna quase ensurdecedor
30 – O falecido EE entrou no terreno onde se estava a realizar o corte das árvores sem se fazer anunciar aos réus nem previamente avisar
31 – Sendo do perfeito conhecimento do falecido EE, atenta a factualidade descrita em 28 e 29, que no referido terreno estava a ser desenvolvida a actividade de corte (abate) de árvores
32 – Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos
33 – As árvores, uma vez cortadas, caíam inteiramente dentro do terreno, com a orientação pretendida, sem ultrapassarem qualquer das suas estremas
34 – Estando a sua queda voluntariamente orientada de Poente para Nascente
35 – A orientação da queda não se faz com cordas
36 – As cordas – ou cabos de aço – usam-se não para orientar as árvores, mas para evitar que atinjam bens em determinadas circunstâncias, designadamente, quando as árvores estão juntas a casas habitadas ou a estradas com trânsito
37 – A orientação da queda das árvores é feita com o corte, em duas fases, do seguinte modo:
a) Do lado para o qual se pretende que caia, fazem-se dois cortes: um, horizontal, até cerca de um terço do diâmetro do tronco (abertura da boca) e, seguidamente, um outro corte, acima desse, em diagonal descendente, num ângulo de 45 graus, até atingir o primeiro corte, assim se formando uma abertura no tronco a que, na gíria, chamam dente;
b) Após, e do lado contrário, faz-se um corte horizontal (ligeiramente acima do primeiro corte horizontal) na direcção do primeiro corte horizontal, e é com ele (corte de abate) que se vai provocar a queda do tronco para o lado pretendido, que é o oposto, por falta de apoio
38 – O local onde se processava o corte das árvores era uma zona erma, sem qualquer circulação de pessoas
39 – Sendo o terreno onde era efectuado o mencionado corte de árvores uma propriedade privada
40 – Os réus não combinaram nem lhe foi referido pelo proprietário do terreno (a quem o 1.º réu comprou os eucaliptos) a sua intenção de deslocação ao terreno, quer dele, quer de terceiros, naquele dia ou em qualquer outro enquanto durasse o corte (derrube)
E, com relevância para a questão em apreciação, foram dados como não provados os seguintes factos:
- O único acesso ao terreno do Cabeço era o caminho florestal aberto na parte mais elevada do terreno, onde estava o 1.º réu a carregar a madeira com uma grua do camião
- Foi por esse caminho que o EE acedeu ao terreno
- O 1.º e o 2.º réu viram o EE quando este chegou ao terreno, vindo pelo caminho onde estava o camião, e também o viram quando ele se dirigiu para o ponto onde foi atingido
- Apesar de o terem visto e de saberem da sua presença no local, ainda assim o 1.º e 2.º réu continuaram o corte das árvores
- Em virtude do terreno ser inclinado, era praticamente impossível assegurar para que lado é que as árvores cairiam
- O 2.º réu declarou perante a GNR que confiava que as árvores caíssem “a favor do vento”
- Por não terem amarrado com cordas as árvores a abater, os réus não podiam controlar a orientação da sua queda
- O abate de árvores, mesmo previamente sustentadas por cordas, é susceptível de que elas, por acção do seu próprio peso, da sua altura e do vento, possam cair sem orientação previamente definida, ou ao contrário da orientação pretendida, atingindo pessoas e bens
- O comprimento das árvores (eucaliptos) que estavam a ser cortadas (do pé ao extremo da copa) não excedia os 20 metros
13.1. Convém ter presente a orientação seguida pelas instâncias, que assim se pode sintetizar:
- Estando provado que a morte do pai dos AA. foi causada pela queda de árvore cortada pelo 2º R., assim como a existência de uma relação de dependência deste em relação ao 1º R., se aquele for pessoalmente responsável, sê-lo-á também o 2º R. por aplicação do regime do art. 500º do Código Civil;
- Tendo sido provado que “Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos”, não se encontra preenchido o pressuposto da culpa (efectiva) previsto no regime geral da responsabilidade civil por facto ilícito (arts. 483º, nº 1, e 487º do CC);
- Tampouco pode presumir-se a culpa dos RR. por aplicação da norma do nº 2 do art. 493º do CC, seja por não poder qualificar-se a actividade em causa como “actividade perigosa”, seja por ter ficado provado que o acidente se deveu a culpa da própria vítima, não sendo de exigir aos RR. a tomada de outras providências para além daquelas que foram adoptadas;
- Nas circunstâncias concretas em que os RR. realizavam a actividade de abate de árvores (num local ermo sem circulação de pessoas) não lhes era exigível que previssem a presença do pai dos AA., sendo o acidente de imputar à conduta imprevidente deste (ao introduzir-se, sem aviso, em propriedade que não lhe pertencia e ao não se proteger dos riscos inerentes ao abate de árvores de grande porte, riscos de que necessariamente se teria de aperceber dado o ruído ensurdecedor da moto-serra utilizada no dito abate).
Em sentido divergente, o voto de vencido ao acórdão recorrido considerou que, da aplicação do regime do nº 2 do art. 493º do CC ao caso dos autos, resulta não terem os RR. conseguido ilidir a presunção de culpa que sobre eles impende, verificando-se uma situação de concorrência entre a culpa provada do lesado (70%) e a culpa presumida dos lesantes (30%).
Quid iuris?
Perante a factualidade dada como provada, não oferece dúvidas que nem o 1º nem o 2º RR. podem ser responsabilizados ao abrigo do princípio geral da responsabilidade por facto ilícito e culposo, consagrado no nº 1 do art. 483º do CC. Por um lado, por ter sido provado que “Nenhum dos réus viu o falecido pai dos autores nem se apercebeu do acesso do mesmo ao terreno e ao local dos trabalhos”, o que leva – como se referiu supra – a excluir o dolo eventual (ou a negligência consciente); por outro lado, porque nem dos factos dados como provados nem dos factos que os apelantes pretendiam que fossem aditados à matéria de facto (cfr. supra, ponto 11) resultaria a culpa leve dos RR.
Também a culpa do lesado se encontra provada, conforme se exige no art. 572º do CC. Não por, segundo o juízo da 1ª instância, se ter a vítima introduzido no terreno de forma irregular ou ilegítima – uma vez que, salvo se a propriedade ou o acesso à mesma se encontrasse vedada/vedado, não existir norma que impeça a passagem a pé por terrenos privados, desde que sem causar danos – mas sim por a dita vítima se ter colocado, de forma imprudente, no local onde decorria o abate de árvores, actividade que, em razão do elevado ruído causado pela moto-serra utilizada para o efeito, não podia deixar de ter percepcionado.
Aqui chegados, porém, subsistem dúvidas sobre a aplicabilidade ao caso concreto do regime do nº 2 do art. 493º do CC, no qual se prescreve:
“Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Apurar se, com base neste regime legal, devem ou não o 1º e o 2º RR. ser responsabilizados pelo acidente dos autos, constitui a questão nuclear da presente lide, sendo que é, a seu respeito, que se situa a divergência do voto de vencido cujos termos aqui se transcrevem:
“Com todo o devido respeito pela opinião que fez vencimento, entendo que a matéria de facto provada não é suficiente para afastar a presunção de culpa prevista no nº 2 do artigo 493º do Código de Processo Civil [rectius: do Código Civil]. Tanto quanto creio, esta pode ser afastada demonstrando-se que foram adoptadas as providências adequadas para evitar o risco de danos a terceiros ou demonstrando-se nas circunstâncias concretas em que o dano ocorreu o cuidado inerente à perigosidade da actividade não exigia a adopção de qualquer providência para prevenir o dano. Segundo Mascarenhas Ataíde, in ‘Responsabilidade civil por violação de deveres de tráfego’, 2015, pág. 501, “a prova liberatória imposta ao exercente de actividades perigosas requer a demonstração de que foram adoptadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não se satisfazendo literalmente com a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que vinculavam o exercente”. O mesmo autor acrescenta, a pág. 515, que “a não ser que o réu prove não ser o exercente ou a falta de perigosidade da actividade, a prova liberatória tem por conteúdo a demonstração da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa”, isto é, “não sendo, assim, possível provar directamente a observância de ‘todas’ as cautelas necessárias, só por via indirecta se consegue satisfazer o ónus liberatório, comprovando positivamente que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da actividade perigosa.”
No caso, não se provou que os réus adoptaram qualquer previdência específica para evitar danos, embora o assegurar de que as árvores abatidas caíssem dentro do terreno intervencionado possa ser visto como uma providência para impedir danos aos proprietários confinantes.
Não estando demonstrado que os réus conheciam o local e o modo como o mesmo era acedido ou atravessado, o simples facto de a vítima não ser o proprietário do terreno onde as árvores estavam a ser cortadas não significa que estivesse totalmente vedado ao mesmo aceder ao local ou atravessá-lo.
A circunstância de nenhum dos réus ter visto a vítima ou se ter apercebido do seu acesso ao terreno e ao local dos trabalhos não é bastante para concluir que os réus não necessitavam de adoptar qualquer providência para evitar o dano. Para que tal sucedesse seria necessário, a nosso ver, que estivesse provado que antes de iniciar o corte da árvore o manobrador da moto-serra observou o local onde a árvore ia cair e não viu a vítima no local ou a aproximar-se do local já que apenas nessa circunstância deixava de lhe ser exigível um dever de cuidado acrescido, imposto pela perigosidade da actividade que se acentua pela altura das árvores e pela projecção à distância da sua queda para o solo.
Por isso, a meu ver, de acordo com os factos provados, existiu uma situação de concorrência de culpas entre a vítima (culpa efectiva) e os réus (culpa presumida não afastada), o que me levaria a atribuir à vítima 70% da culpa (é um adulto, morador na zona, que tinha a obrigação de conhecer os perigos inerentes à actividade que estava a ser realizada) e aos réus 30% da culpa, proporção em que os condenaria a suportar os danos provados.” [negritos nossos]
A cabal resolução da questão da aplicabilidade do regime do nº 2 do art. 493º do CC ao caso sub judice implica elucidar a questão da qualificação (ou não) da actividade em causa como actividade perigosa e, em seguida, implica aferir da natureza, do conteúdo e do destinatário da presunção normativa, assim como das exigências para a sua elisão.
13.2. Nas palavras de Mafalda Miranda Barbosa (Lições de Responsabilidade Civil, Princípia, Cascais, 2017, pág. 243), “A definição de actividade perigosa, para efeitos do nº 2 do artigo 493º, não é oferecida pelo legislador, cabendo ao julgador concretizar o conceito em face dos casos decidendi. A perigosidade de uma actividade deve aferir-se segundo as regras da experiência. É perigosa uma actividade que, segundo aquelas regras, envolve uma grande propensão para ocorrência de danos.” Como se refere no acórdão recorrido, a maior propensão pode resultar da elevada intensidade dos potenciais danos (critério qualitativo) ou da elevada probabilidade da sua verificação (critério quantitativo).
A actividade de abate ou derrube de árvores não será sempre e em absoluto uma actividade perigosa, sendo que, como é por demais evidente, a diferenciação se há-de fazer em razão do porte das árvores em causa. No caso dos autos, em que “As árvores que estavam a ser cortadas tinham mais de 20 metros de altura” (facto 14) – o que corresponderá à altura de um prédio de cerca de seis ou sete andares – estão em causa árvores de grande porte, não oferecendo dúvidas de que, pelo menos segundo o critério da elevada intensidade dos potenciais danos, a actividade desenvolvida integra o conceito de actividade perigosa.
A problemática da natureza e conteúdo da presunção normativa tem vindo a ser tratada na jurisprudência deste Supremo Tribunal, tendo em atenção os desenvolvimentos doutrinais mais recentes. Consideremos a síntese realizada no acórdão de 7 de Abril de 2016 (proc. nº 7895/05.0TBSTB.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt, relatado pela aqui relatora:
No nº 2 do art. 493º do CC “Trata-se de uma das situações, em conjugação com as dos regimes dos arts. 491º, 492º, e 493º, nº 1, do CC, de consagração dos denominados deveres de segurança no tráfego (Verkehrssicherungspflicten) ou deveres de prevenção do perigo, que permitem concretizar a responsabilidade civil por omissões, na medida em que neles se consubstancia a exigência do art. 486º do CC, no sentido de que, para além dos requisitos gerais da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, exista o dever de praticar o acto omitido.
A responsabilidade civil por violação dos deveres de tráfego em geral, e a responsabilidade civil por actividades perigosas em particular, têm conhecido um enorme desenvolvimento dogmático no direito português (cfr., em especial, a recente obra de Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres de tráfego, 2015).
Tradicionalmente, tanto a doutrina (cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, I, 2000, págs. 594 e seg.; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, pág. 588) como a jurisprudência nacionais (cfr., por exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05/07/2012 (proc. nº 1451/07.5TBGRD.C1.S1), de 28/10/2014 (proc. nº 1593/07.7TBPVZ.P1.S1) e de 09/07/2015 (proc. nº 385/2002.E1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt) entendem que o regime do art. 493º, nº 2, do CC, consagra uma presunção de culpa do titular da actividade, sendo que se vem também afirmando (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs Responsabilidade: A precaução como fundamento da interpretação delitual?, 2006, pág. 377; Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, Vol. VIII – Direito das Obrigações, 2014, pág. 589) que essa presunção é, simultaneamente, uma presunção de ilicitude (da conduta). Neste sentido se pronunciou igualmente o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/03/2007 (proc. nº 07A96).
Independentemente da qualificação da presunção, exige a lei que o exercente da actividade faça prova de que “empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim” de prevenir os danos. Sabe-se que o regime do art. 493º, nº 2, do CC, é mais gravoso para o lesante do que o das previsões dos arts. 491º, 492º e 493º, nº 1, do CC, na medida em que, por um lado, não prevê a possibilidade de desoneração pela prova de que os danos se teriam produzido ainda que não houvesse culpa sua; e, por outro lado, “a prova liberatória imposta ao exercente de actividades perigosas requer a demonstração de que foram adotadas todas as providências exigidas pelas circunstâncias a fim de prevenir os danos, não se satisfazendo literalmente com a prova de terem sido cumpridos os comuns deveres de cuidado que vinculavam o exercente” (Mascarenhas Ataíde, cit., pág. 501).
Compreende-se, por isso, que se declare que o regime da responsabilidade pelo exercício de actividades perigosas se situa num ponto intermédio entre a responsabilidade civil por facto ilícito e culposo e a responsabilidade pelo risco (cfr. Pinto Oliveira, “Responsabilidade objectiva”, in Cadernos de Direito Privado, Dez. 2012, págs. 109 e segs.). Esta percepção revela-se precisamente no plano das exigências probatórias julgadas necessárias para que o exercente da actividade se exonere de responsabilidade.
A orientação tradicional da jurisprudência deste Supremo Tribunal é no sentido de exigir a prova da conduta diligente por parte do exercente da actividade perigosa (cfr. os acórdãos de 25/03/2010 (proc. nº 428/1999.P1.S1), de 30/11/2010 (proc. nº 1166/04.6TBLSD.P1.S1), de 28/06/2012 (proc. nº 1894/06.1TBOVR.C1.S1), de 18/09/2012 (proc. nº 498/08.9TBSTS.P1.S), de 13/02/2014 (proc. nº 131/10.9TBPTB.G1.E1), de 17/06/2014 (proc. nº 112/07.0TBCMN.G1.S1) e de 09/0//2015 (cit.), consultáveis em www.dgsi.pt).
Considera-se habitualmente que esta especial exigência “não parece significar que não se trate, afinal, da diligência do bom pai de família [do art. 487º, nº 2, do CC], adaptada ao caso da actividade perigosa, já que, sendo perigosa essa actividade, um bom pai de família deve adoptar medidas ou providências especialmente adequadas a prevenir os danos”(Vaz Serra, Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26 de Julho de 1968, in RLJ, Ano 102º, pág. 304). Mas há também uma orientação segundo a qual o regime do art. 493º, nº 2, do CC, “parece apontar para um critério mais rigoroso de apreciação da culpa, ou seja, para o critério da culpa levíssima” (Menezes Leitão, Direito das Obrigações, I, 2014, pág. 293).
Contudo – e com particular incidência no caso dos autos –, vai fazendo caminho o entendimento de que, tendo-se verificado o dano, “a não ser que o réu prove não ser o exercente ou a falta de perigosidade da atividade, a prova liberatória tem por conteúdo a demonstração da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa.” Quer dizer que, “Não sendo, assim, possível, provar directamente a observância de “todas” as cautelas necessárias, só por via indirecta se consegue satisfazer o ónus liberatório, comprovando positivamente que a causa real do evento lesivo se reportou a um facto alheio ao complexo de meios que consubstancia o exercício da actividade perigosa” (Mascarenhas Ataíde, cit., pág. 515).
É este o enquadramento teórico a que importa subsumir o caso dos autos.” [negritos nossos]
Aplicando esta orientação ao caso dos autos, há, desde logo, uma importante conclusão a tirar: o regime especial em causa não tem como destinatário quem executa a actividade perigosa, mas quem é, por assim dizer, o titular dessa actividade ou, na expressão de Rui Mascarenhas Ataíde, o “exercente” da mesma. Titular ou “exercente” que, no caso concreto, é a pessoa do 1º R., mas não a do 2º R., assalariado e subordinado do primeiro (cfr. facto 2).
Não se encontrando abrangido pelo âmbito de aplicação do art. 493º, nº 2, do CC, o 2º R. apenas poderia ser responsabilizado por facto ilícito e culposo mediante a prova efectiva da culpa, nos termos gerais do art. 487º do CC. O que não foi feito, pelo que não tem também aplicação o regime do duplo nexo de imputação do art. 500º do mesmo Código, no qual, para se responsabilizar o comitente, se exige que o comissário seja ele próprio responsável.
Deste modo, apenas se encontra em aberto a possibilidade de responsabilização do 1º R. à luz do regime de violação dos deveres de segurança no tráfego, concretamente do regime do nº 2 do art. 493º do CC, sendo que, de acordo com a orientação tradicional, cabe ao presumido culpado fazer prova de factos que demonstrem uma conduta diligente da sua parte; e, de acordo com a posição que mais recentemente se vem afirmando na doutrina e na jurisprudência, lhe cabe fazer prova “da causa estranha à esfera do vinculado que, interferindo com o curso normal das coisas, desencadeou o processo causal conducente à lesão danosa”.
Entenderam as instâncias que os factos provados demonstram uma actuação diligente do 1º e 2º RR. e que a causa do sinistro consistiu na conduta culposa da própria vítima. Assim, por uma via ou por outra, a presunção normativa estaria ilidida.
Impõe-se, porém, uma consideração mais atenta do problema. Com efeito, se é indubitável que o lesado actuou de forma culposa ao introduzir-se no perímetro em que as árvores caíam no solo, não é líquido que o 1º R. tenha provado ter adoptado “todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim” de prevenir os danos.
Vejamos. Relevam os seguintes factos provados:
- O local onde se processava o corte das árvores era uma zona erma, sem qualquer circulação de pessoas
- A orientação da queda não se faz com cordas
- As árvores, uma vez cortadas, caíam inteiramente dentro do terreno, com a orientação pretendida, sem ultrapassarem qualquer das suas estremas
Temos assim que as providências adoptadas consistiram, apenas e tão só, em orientar a queda das árvores, de forma a caírem dentro da área do terreno em causa, o que, como se assinalou no voto de vencido, se afigura ter em vista prevenir danos (pessoais ou materiais) causados aos e nos terrenos vizinhos. Mas que, efectivamente, não bastará para dar como provada uma conduta diligente do “exercente”, no sentido de prevenir que a queda das árvores causasse danos a quem, porventura, se encontrasse dentro do perímetro da dita queda. Ainda que pouco provável, dado o isolamento do local, a presença de pessoas no terreno era possível, e não ilegítima, uma vez que o mesmo terreno não se encontrava vedado ou interdito. Assim, caberia ao 1º R. a prova de outras medidas – como seria, porventura, a definição de uma zona interdita, ou a presença de vigilantes, ou outras – o que não foi alegado nem provado.
Pode assim formular-se uma conclusão intercalar: estamos perante uma situação em que ocorreu culpa do lesado, mas em que, simultaneamente, não foi feita prova de diligência bastante do lesante para afastar a presunção do art. 493º, nº 2, do CC. Foi esta circunstância que levou o autor do voto de vencido a pugnar pela concorrência de culpas.
Porém, não pode ignorar-se que, como alega o Recorrido em sede de contra-alegações, nos termos do nº 2 do art. 570º do CC, se prevê que o concurso da culpa do lesado com a culpa presumida do lesante exclua a responsabilidade. Prescreve a referida norma:
“Se a responsabilidade se basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de disposição em contrário, exclui o dever de indemnizar”
Importa esclarecer que só aparentemente se pode considerar resolvida por esta norma a situação concursal identificada nos autos, uma vez que, nesta hipótese, confluem uma dimensão de culpa e uma dimensão de causalidade, sendo que o regime legal em causa regula apenas o concurso de culpas.
13.3. O problema encontra-se claramente identificado na obra de referência de Brandão Proença (A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 465), ao formular as seguintes interrogações a respeito da interpretação conjugada do regime do art. 570º, nº 2, do CC com o regime dos arts. 491º, 492º e 493º do mesmo Código:
“[É] bastante a prova de que o presumível culpado não teve culpa? Ou (também) é necessário demonstrar a «culpa» do lesado como evento alheio preclusivo? E não será preciso provar a ‘exclusividade concursal’ dessa conduta «culposa»? Poderá funcionar uma hipótese ‘concursal’ para a situação plausível de o lesante não conseguir afastar a presunção de culpa nem conseguir demonstrar a exclusividade causal da conduta do lesado? Ou é suficiente, para afastar automaticamente a presunção de culpa, a prova da «culpa» e de qualquer culpa do lesado?”
O mesmo autor, procurando dar resposta a tais interrogações, escreve, a respeito da presunção de culpa do nº 2 do art. 493º, o seguinte:
“O agente de actividades perigosas pode, naturalmente, demonstrar a ocorrência de condutas do lesado com idoneidade bastante para se poder concluir pela atribuição do dano à esfera do prejudicado. A não observância, pelos potenciais lesados, de instruções e avisos dados dados por altura da explosão numa pedreira, o desrespeito de sinais de perigo colocados ou a imprudência cometida, apesar da proibição de se penetrar numa zona onde se trabalha com explosivos ou radiações, o colocar-se na curva perigosa de uma competição automóvel não respeitando as indicações da organização, são alguns exemplos de comportamentos do lesado susceptíveis de conduzirem a uma isenção, total ou parcial, de responsabilidade. Neste âmbito poderá ser tida em conta a «assunção do risco» pelo lesado, revelada, por ex., na indiferença perante um perigo conhecido (como no caso, relatado pela imprensa, da exposição de banhistas o sol numa praia situada na direcção de fogo de uma carreira de tiro) ou curiosidade em assistir de perto a uma actividade desportiva perigosa. Diga-se ainda e é importante acentuá-lo, que, mais do que noutro qualquer campo de presunção de culpa, não é suficiente alegar-se que se «confiou» na não interferência do lesado, mas que esta conduta se verificou apesar de o responsável ter adoptado medidas protectoras razoáveis impeditivas da colocação em perigo, e de ter advertido as pessoas para o perigo efectivo que corriam. É claro que no processo de repartição do dano a «balança» perde o equilíbrio em desfavor daquele que não «quis» evitar o evento lesivo, pese o cumprimento do conteúdo de protecção.” (ob. cit., págs. 483-484).
Mais à frente: no “que toca à questão do sentido e da interpretação do preceito do artigo 570º, 2”, “[a] leitura mais imediata da norma parece afastar, como já dissemos, a possibilidade de uma coexistência entre a presunção de culpa e a «culpa» do lesado, dada a aparente natureza antitética desses termos. Na lógica subjectivista e interindividual do Código, extensível ao problema da tensão entre o risco e a culpa do lesado, a prova do «pólo» mais forte afasta automaticamente o «pólo» mais fraco e ao rejeitar o concurso dos «desiguais» o legislador protege o responsável presumido, alijando o dano sobre o lesado «culpado», certamente como «preço» que este paga pelo «beneficio» da prestação.
Não nos parece, contudo, que o «purismo» possa prevalecer, dada a injustiça patente nesse automatismo, ao possibilitar-se ao lesante a prova de qualquer «culpa» do lesado, mesmo que essa demonstração não permita concluir pelo afastamento da presunção. Afirmada a primazia da posição do lesante, não resultaria outra conclusão que não fosse a de que o legislador estaria a estigmatizar a conduta do lesado, enfraquecendo, afinal, a responsabilidade do lesante, dada a «facilidade» exoneratória. Uma solução que não exija ao presuntivo culpado a prova (pela positiva) de que o dano foi exclusivamente à conduta do lesado só pode conceber-se na perspectiva de que uma concepção rígida, demasiado voltada para o lesante e indiferente à sua real co-participação no dano. Como compreender, a não ser partindo desse hermetismo, que uma pequena «culpa» do lesado possa afastar, de pano, uma culpa presumida, cujo valor não é igual a zero e que o legislador até fez incindir sobre os agentes de actividades perigosas?
A colocação sistemática do nº 2 do artigo 570º, a ratio da presunção de culpa e a necessidade, sempre reafirmada, de uma adequada tutela dos lesados, conduzem-nos a pensar que a norma só ganha verdadeiro sentido útil desde que se exija ao presumível culpado a prova, mais ou menos qualificada, da exclusividade causal do comportamento «culposo» do lesado. Na realidade, e segundo o nosso ponto de vista, a maior perigosidade da actividade lesiva (maxime no círculo de aplicação dos artigos 493º, 2, e 503º, 3 [presunção de culpa do condutor comissário]) parece incompatível com o efeito exoneratório de uma culpa leve e exclusiva do lesado.” (págs. 490-491) [negritos nossos]
Do mesmo autor, cfr. também a anotação ao artigo 570º, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2019, pág. 580.
Em sentido idêntico se pronuncia Mascarenhas Ataíde (ob. cit., pág. 515):
"Quanto ao facto do terceiro ou do lesado que concorrem para a produção do dano, não se considera igualmente suficiente para impedir a responsabilidade que o prejuízo seja ocasionado por intromissões não consentidas na esfera do agente, sendo indispensável a prova de se ter adotado todas as medidas oportunas e suficientes para evitar essa interferência ou, pelo menos, para avisar terceiros sobre a existência do perigo, de modo que o efeito liberatório só é admitido quando o facto de terceiro ou do lesado excluem com segurança a ligação causal entre o exercício da actividade perigosa e os danos". [negritos nossos]
Esta orientação – interpretando a conjugação da norma do nº 2 do art. 570º do CC com a norma do nº 2 do art. 493º do mesmo Código, no sentido de que aquele que exerce a actividade perigosa só pode beneficiar da exclusão da obrigação de indemnizar prevista na primeira norma se provar que a conduta culposa do lesado foi causa exclusiva do dano é aquela que permite resolver, de forma coerente e articulada, as múltiplas hipóteses de concurso causal, em consonância com o princípio normativo consagrado no art. 563º do CC.
Afigura-se que se trata de solução correspondente à que foi seguida nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31/10/2006 (proc. nº 06A2388) e de 22/05/2018 (proc. nº 1646/11.7TBTNV.E1.S1), in www.dgsi.pt, nos quais (sem se considerar a norma do nº 2 do art. 570º do CC) se entendeu verificar-se concausalidade entre a conduta culposa do lesado e a culpa presumida do lesante pelo exercício de actividade perigosa, reduzindo-se proporcionalmente a indemnização por aplicação da regra do nº 1 do art. 570 do CC, que prescreve:
“Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Sendo que, como é comumente entendido, este regime pressupõe a concausalidade da conduta do lesante e da conduta do lesado. Na doutrina ver, por todos, Brandão Proença, anotação ao artigo 570º, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em geral, ob. cit., pág. 579; na jurisprudência deste Supremo Tribunal, além dos referidos acórdãos de 31/10/2006 e de 22/05/2018, cfr. também, mais recentemente, o acórdão de 24/10/2019 (proc. nº 128/11.1TBMMN.E1.S1), in www.dgsi.pt.
13.4. Aplicando estes ensinamentos ao caso dos autos, temos que, para afastar a presunção do nº 2 do art. 493º do CC, o 1º R., enquanto “exercente” da actividade perigosa de abate de árvores de grande porte, para além da prova da conduta culposa da vítima (pai dos AA.), teria ademais de ter feito – e não fez – prova de que essa conduta foi a causa exclusiva do acidente e das suas consequências danosas (como sucedeu nos casos decididos pelos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10/07/2012, proc. nº 1400/04.2TBAMT.P1.S1, e de 12/09/2013, proc. nº 308/09.0TBCTB.C1.S1,ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
No caso sub judice, o 1º R. não alegou nem provou factos que consubstanciem a adopção, nos termos legais, de “todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim” de prevenir os danos. Não obstante o local do abate das árvores ser um local ermo, não se encontrando o terreno vedado (ou interditado de qualquer outra forma), considera-se que, nas palavras de Brandão Proença, “não é suficiente alegar-se que se «confiou» na não interferência do lesado”, antes seria forçoso provar-se – o que não sucedeu – “que esta conduta se verificou apesar de o responsável ter adoptado medidas protectoras razoáveis impeditivas da colocação em perigo”. Não tendo sido feita prova de que a conduta culposa do lesado foi a causa exclusiva do dano, conclui-se pela verificação de uma situação de concausalidade, que – por aplicação do nº 1 do art. 570º do CC, e em conformidade com o princípio ínsito no art. 563º do mesmo Código – não exclui automaticamente a obrigação de indemnizar, antes conduz à realização de um juízo de proporcionalidade. Assim sendo, e ponderados os dados relevantes, tal como apreciados ao longo do ponto 13 do presente acórdão, considera-se que a contribuição para o acidente dos autos e para a lesão fatal dele resultante, se deveu, em igual medida, à vítima e ao 1º R.
14. Nos termos do art. 679º do CPC, que, mandando aplicar ao recurso de revista o regime do recurso de apelação, excepciona dessa aplicação a regra da substituição ao tribunal a quo, prevista no art. 665º do mesmo Código, devem os autos baixar à Relação a fim ser fixado o montante indemnizatório.
15. Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e decidindo-se:
Custas de recurso pelo Recorrente e pelo Recorrido, na proporção de 2/3 e de 1/3, respectivamente.
Custas na acção ficarão 1/3 a cargo do A. e, no restante, ficarão a cargo do A. e do 1º R., na proporção do respectivo decaimento.
Lisboa, 23 de Abril de 2020
Maria da Graça Trigo (Relatora)
Maria Rosa Tching
Catarina Serra