O controlo pelo Supremo Tribunal de Justiça da fixação equitativa da indemnização deve limitar-se a averiguar se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria, foram aplicados os critérios que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser aplicados.
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ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Em acção com processo declarativo e forma comum intentada por AA contra N Seguros, S.A., pediu o autor que a ré fosse condenada a pagar-lhe:
a) o montante de 109.549,54€, respeitante a danos patrimoniais e não patrimoniais liquidados;
b) todas as despesas médicas, medicamentosas, hospitalares, transportes e outras despesas, futuras, que fossem decorrentes das lesões sofridas no acidente ou do seu tratamento;
c) todos os danos patrimoniais e não patrimoniais futuros decorrentes do tratamento ou consequentes do agravamento daquelas lesões e sequelas, que se viessem a fixar de acordo com as circunstâncias que se apurassem, em sede de incidente de execução de sentença; e
d) juros de mora contados desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Na sentença proferida em 10.04.2019, o Tribunal de 1.º instância julgou a acção interposta pelo autor parcialmente procedente e, consequentemente, condenou a ré a pagar-lhe a quantia global de sessenta mil euros (€ 60.000,00) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (sendo € 20.000,00 a título de danos patrimoniais e € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais), quantia esta acrescida dos juros de mora legais vencidos e vincendos desde a citação e até pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado pelo autor.
Inconformados, interpuseram tanto a ré como o autor recursos de apelação (este último a título subordinado), pugnando, respectivamente, pela redução e pelo aumento de determinados valores integrantes da indemnização.
Em 8.10.2019, proferiram os Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto um Acórdão com o seguinte teor:
“Julga-se parcialmente procedente, por provado, o interposto recurso independente de apelação e procedente, por provado, o interposto recurso subordinado, e, em consequência, revoga-se em parte a douta sentença recorrida, fixando agora na quantia global de € 61.236,11 a quantia que a Ré vai condenada a pagar ao Autor, no mais se mantendo o conteúdo da douta sentença”.
Ainda inconformada, vem a ré N Seguros, S.A., interpor recurso de revista, contestando, por manifestamente exagerado e desproporcionado, “o valor fixado no douto acórdão recorrido para os danos corporais sofridos pelo Autor, em consequência do acidente de viação” e pugnando pela sua redução.
Conclui as suas alegações de revista da seguinte forma:
“1) A indemnização global atribuída ao Recorrido de € 61.236,11 é manifestamente exagerada e desproporcionada à gravidade dos danos que se pretende indemnizar.
2) Pelo que, as verbas fixadas para o dano moral e dano patrimonial futuro devem ser reduzidas.
3) Com efeito, as indemnizações fixadas devem acompanhar as decisões jurisprudenciais dos n/Tribunais Superiores o que, no caso em apreciação, não se verifica (cfr. entre outros os arestos atrás citados, que para casos mais graves fixaram indemnizações bastante mais baixas!)
4) A não ser assim, fica desde logo, irremediavelmente violado o princípio da igualdade e proporcionalidade no tratamento entre lesados!!
5) O Acórdão recorrido violou, assim, o disposto no art° 496° e seguintes do Código Civil e, nesta medida, deve ser revisto”.
O autor apresentou, por sua vez, contra-alegações, pugnando pela manutenção do quantum indemnizatório fixado.
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se deve alterar-se o valor fixado pelo Tribunal recorrido para a obrigação de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais a cargo da ré / ora recorrida.
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OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:
1- No dia 26 de Março de 2016, pelas 00h40, ocorreu um atropelamento na rua do …, …, freguesia de …, concelho de …, em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de mercadorias com a matrícula ...-BM-..., conduzido pelo seu proprietário, e o autor, AA;
2- A ré N Seguros SA, por contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice nº 42…4, garantia a cobertura dos danos causados a terceiro e decorrentes da circulação do veículo automóvel ...-BM-...;
3- Naquele momento e lugar, o autor caminhava pela berma esquerda da via, atenta a sua direcção Alfena/Sobrado, virado de frente para os veículos que ali circulavam, ou seja, que circulavam no sentido Sobrado/Alfena;
4- Ainda naquele momento e local, inesperadamente, o BM invade a berma da estrada e junto ao muro ali existente, atropelou o autor, que ficou prostrado na via, junto ao muro que a ladeia e a cerca de 50 cm desta;
5- Era noite, o tempo apresentava-se com chuviscos e o local possui iluminação pública;
6 - A estrada, urbana, tem naquele local a largura de 5,15 metros e é uma recta descendente atenta a direcção que o autor seguia, cujo piso é em alcatrão em estado razoável de conservação;
7- Reconhecendo a responsabilidade do seu segurado na produção do acidente, a ré pagou já ao autor a quantia 8.821,45 euros, relativamente a período de ITA;
8- O autor, em consequência directa, imediata e necessária do acidente, sofreu lesões corporais que o obrigaram a receber assistência médica no local, com perda momentânea de consciência e, logo que oportuno, foi transferido, em ambulância do INEM, para os serviços hospitalares de …, …;
9- Ainda em consequência directa e necessária do referido acidente, o autor sofreu as lesões, dores, angústias, tratamentos e sequelas mais bem descritas no relatório de exame pericial do INML de fls. 96 a 100 (com a rectificação de fls. 145), que aqui se dá por integralmente reproduzido e considerando-se como parte integrante desta sentença;
10- Assim, como conclui aquele exame pericial, do acidente em causa resultaram para o autor as seguintes sequelas:
- A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 07.07.2017;
- Período de défice funcional temporário total sendo assim fixável num período de 37 dias;
- Período de défice funcional temporário parcial sendo assim fixável num período de 432 dias;
- Período de repercussão temporária na actividade profissional total sendo assim fixável num período total de 469 dias;
- Quantum Doloris fixável no grau 5/7;
- Défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 9 pontos;
- As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares, nomeadamente nas funções que exijam permanência durante longos períodos em ortostatismo ou sentado;
- Dano estético permanente fixável no grau 3/7;
- Repercussão Permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 2/7;
11- Deambulou com auxilio de bengalas canadianas durante cerca de 4 meses, tendo, durante todo esse período, carecido de apoio de terceira pessoa;
12- O autor, anteriormente ao acidente, não apresentava qualquer dano corporal nem apresentava qualquer causa estranha ao traumatismo decorrente do acidente de viação, gozando de saúde;
13- O autor nasceu em 03.06.1973 e, à data do acidente, tinha a profissão de … e trabalhava na firma Vitrosteel Indústria, Lda;
14- Como contrapartida da sua prestação de trabalho, auferia um vencimento mensal de cerca de 700,00€ x 14 meses e subsídio de alimentação mensal (22 dias);
15- Até à consolidação médico-legal das suas lesões, não pôde trabalhar, deixando de auferir a quantia de cerca de 14.000,00 euros, tendo recebido da ré a quantia acima referida de 8.821,45 euros e 442,44 euros da segurança social.
Foram ainda considerados como factos essenciais não provados:
- Que em consequência do acidente, as lesões sofridas pelo autor não se mostrem consolidadas e/ou que, em consequência do mesmo, possam ainda estas vir a agravar-se, obrigando a novos internamentos hospitalares, assistência médica, medicamentosa, apoio fisiátrico ou de assistência clínica que não possam ser ainda liquidados.
O DIREITO
A questão a apreciar nesta revista respeita ao valor da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de viação.
Como decorre do relatório que antecede, o Tribunal de 1.ª instância fixou o valor global da indemnização em € 60.000, sendo € 20.000 a título de danos patrimoniais e € 40.000 a título de danos não patrimoniais, e o Tribunal da Relação do Porto fixou o valor global de € 61.236,11, sendo € 28.736,11 a título de danos patrimoniais e € 32.500 a título de danos não patrimoniais
A ré viu, portanto, a sua posição globalmente desfavorecida, o que se deve ao aumento do valor fixado para os danos patrimoniais. Quanto aos danos não patrimoniais, foi o seu valor reduzido mas não tanto como a ré pretendia.
Há que ver, então, em que se fundou o Tribunal a quo para proceder à alteração do valor respeitante à indemnização de cada um dos grupos de danos, cumprindo a este Supremo Tribunal de Justiça averiguar se, na fixação do indemnização, o Tribunal a quo respeitou os ditames de origem legal e jurisprudencial relevantes para o caso concreto e arbitrou, portanto, a indemnização adequada ao caso em apreço.
A) Dos danos patrimoniais
Para chegar ao valor dos danos patrimoniais ponderou o Tribunal da Relação do Porto vários factores, como resulta clara e desenvolvidamente do seu Acórdão:
“Como é sabido, a diminuição da capacidade laboral provocada pelas sequelas definitivas de uma lesão física vai causar, na mesma proporção, a diminuição da capacidade de ganho, e, mesmo que em termos práticos isso não se venha a verificar, caberá sempre indemnizar o acréscimo de esforço ou os sofrimentos suplementares que, para o lesado, resultem das mazelas físicas ou psicológicas de que passou a sofrer, para a aquisição desse ganho futuro.
Neste sentido, segundo a lei portuguesa, o dano patrimonial é representado pela diferença entre a situação real actual da vítima e a situação hipotética em que se encontraria, caso não houvesse sofrido o dano – artº 566º nº2 CCiv.
O dano patrimonial pode ser valorado em dinheiro, incluindo não apenas o dano emergente (o que compreende o dano provocado nos bens ou nos direitos da vítima já existentes previamente ao acidente), mas também o lucro cessante (o qual compreende as benefícios a que a vítima não pôde aceder, por causa do facto ilícito) – artº 564º nº1 C.Civ.
Também na fixação da indemnização pode o Tribunal atender aos danos futuros (como se constituem este tipo de danos afectando a capacidade de ganho – cf. o artº 564º nº2), desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (liquidação em execução de sentença).
Entre os danos futuros figuram os danos patrimoniais derivados da I.P.P. (incapacidade permanente e parcial para o trabalho) de que o Autor ficou a padecer por via do acidente (cujo ressarcimento em capital ou renda, mesmo na eventualidade de o lesado não ver diminuídos os seus rendimentos, já tinha sido objecto da Resolução do Comité de Ministros do Conselho da Europa nº75-7).
O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto no artº 566º nº3 CCiv.
Na ausência de uma definição legal, v.g. no ordenamento civilístico português, a ideia de equidade pode retirar-se da fórmula canonizada por Engisch, cit. in Prof. Alejandro Nieto, El Arbitrio Judicial, Barcelona, 2000, pg.233: “O método da equidade consiste em que, seja nas hipóteses normativas, seja nas suas consequências jurídicas, se insiram conceitos e formulações gerais e indeterminadas que ofereçam a quem aplica o direito uma orientação vinculativa para a decisão no caso concreto, a qual, por sua vez, deixe um campo de acção suficientemente amplo para levar em conta as peculiaridades do caso”.
O julgamento pela equidade “é sempre o produto de uma decisão humana que visará ordenar determinado problema perante um conjunto articulado de proposições objectivas; distingue-se do puro julgamento jurídico por apresentar menos preocupações sistemáticas e maiores empirismo e intuição” (Prof. Menezes Cordeiro, O Direito, 122º/272).
Em substância, os danos futuros decorrentes da perda de capacidade aquisitiva são danos equiparados a prejuízos não patrimoniais, mesmo que com base patrimonial, pois que o tratamento que lhes deverá ser dado corresponde às características de um julgamento de direito, elaborado a partir de conceitos de justiça e de equidade, e não de um julgamento meramente de facto, efectuado a partir de factos concretamente provados ou não provados (assim, S.T.J. 2/11/95 Bol.451/48, relator: Consº Sá Nogueira).
Para o cálculo dessa base patrimonial que guiará a avaliação do prejuízo, designadamente para a avaliação daquilo que a vítima poderia vencer antes da lesão sofrida, deve considerar-se que o Autor poderia auferir uma quantia rondando os € 10 833,34, levando em conta salários e subsídio de alimentação.
Ora, incidindo este dano sobre a capacidade geral de produção de rendimentos por parte do lesado, poderia ele ser ressarcido por duas formas equivalentes: atribuindo ao lesado uma indemnização em renda, que substituísse periodicamente os rendimentos perdidos (é a solução do artº 567º CCiv, prevista legalmente, mas a funcionar apenas a pedido do lesado); ou atribuindo ao lesado um capital a pagar de imediato e antecipadamente, mas que, por um lado, produza rendimentos, por outro se venha igualmente a esgotar no final da vida do lesado.
Mencionou-se a vida do lesado e não apenas a respectiva “vida activa” pois que se entende que há que prover ao sustento do lesado, mesmo após o termo da sua vida activa, desta forma substituindo os sistemas de segurança social, os quais não poderão naturalmente actuar após o termo da vida activa do lesado já que não tendo obtido uma prévia contrapartida a partir de rendimentos do trabalho – é o sentido da doutrina e da jurisprudência, designadamente S.T.J. 16/3/99 Col.I-167, Consº Sousa Dinis Col. S.T.J.97-II-15 ou Ac.R.G. 1/10/03, rec. nº640/2003, 2ª Secção, relator: Arnaldo Silva.
Desta forma, também porque a esperança média de vida para as pessoas do sexo masculino se situa já hoje nos 78 anos de idade (dados recolhidos em pordata.pt), e porque o Autor (que tinha 43 anos de idade, à data do acidente e 45 anos na data em que terminou o período de incapacidade total temporária), poderia fixar-se em 33 o número de anos em que deveria repetir-se a prestação pela capacidade laboral perdida pelo Autor.
Como vimos, na fixação da quantia devida a título da citada perda de capacidade laboral do Autor, o recurso à equidade constitui o único critério estabelecido pela lei civil. A ser de outro modo, tratar-se-ia no caso de um puro problema técnico-contabilístico que os tribunais não concorreriam para resolver.
Todavia, justifica-se que se parta de uma base técnico-contabilística, para após corrigir o capital obtido, fazendo apelo à fundamental equidade.
Com efeito, ao figurar-se a carreira profissional futura do Autor, não pode prescindir-se do id quod plerumque accidit – a duração normal previsível de vida, a progressão profissional de um trabalhador, a idade do Autor à data do acidente e a flutuação do valor do dinheiro, tendo em conta o tempo durante o qual o capital entregue deve ser despendido pelo Autor (até ao final da vida deste Autor) – ut S.T.J. 25/6/02 Col.II/128 e S.T.J. 23/10/03 Col.III/111; desta forma, as meras tabelas financeiras só por si não logram aproximar-se da realidade indemnizatória e necessitam de ser corrigidas, para mais ou para menos, em função de eventos que, sendo previsíveis, encontram nas fórmulas matemáticas uma tradução redutora (note-se que, sendo a equidade o critério legal, o Tribunal não está de todo reduzido à expressão indemnizatória das fórmulas matemáticas – S.T.J. 11/3/97 Bol.465-537 – mas pode recorrer a elas como fórmula de valor meramente auxiliar – S.T.J. 25/6/02 cit.; S.T.J. 8/5/03 Col.II/42).
Assim, nesta ordem de ideias, diversas decisões jurisprudenciais recorreram a fórmulas matemáticas que explicitaram no respectivo texto (ut S.T.J. 4/2/93 Col.I-128, S.T.J. 5/5/94 Col.II-86 ou Ac.R.C. 4/4/95 Col.II-23).
Olhemos à fórmula matemática sugerida pelo Ac.S.T.J. 5/5/94 Col. II-86.
A fórmula a utilizar como elemento de trabalho será:
N - N C = P x ((1/i-(1 + i)/((1 + i) x i)) + P x (1 + i)
onde C será o capital a depositar, P a prestação a pagar anualmente (considerando um vencimento anual de € 975,00, correspondente à percentagem do salário anual afectado pela incapacidade permanente de 0,09), i a taxa de juro e N o número de anos em que a prestação se manterá (33 anos).
Considerar-se-á a taxa de juro de 0,5%, num quadro de estabilidade da moeda e de inflação mínima, em que nos encontramos.
Pela aplicação da dita fórmula do S.T.J., chegaremos ao resultado global de € 29 911,93, quantia essa que supera até a que vem peticionada em recurso subordinado.
Justifica-se assim que ao peticionado valor de € 24 000 se possam somar as quantias referentes a perdas salariais não cobertas pelo sistema de Segurança Social - € 4 736,11, perfazendo o bem fundado do que, em resumo, vem a ser a pretensão de recurso subordinado – de que esta alínea indemnizatória ascenda a € 28 736,11”.
Sintetizou-se a posição do Tribunal recorrido no sumário do Acórdão:
“Os danos futuros decorrentes da perda de capacidade aquisitiva são danos equiparados a prejuízos não patrimoniais, mesmo que com base patrimonial, pois que o tratamento que lhes deverá ser dado corresponde às características de um julgamento de direito, elaborado a partir de conceitos de justiça e de equidade, e não de um julgamento meramente de facto, efectuado a partir de factos concretamente provados ou não provados.
No caso do ressarcimento de dano patrimonial, enquanto dano futuro de perda de capacidade aquisitiva, considerando um esforço acrescido de 9 pontos percentuais, o período de incapacidade temporária total para o trabalho, 43 anos de idade do Autor, à data do acidente, e 45 anos à data em que findou a incapacidade temporária, acrescendo os habituais critérios jurisprudenciais, justifica-se o montante ressarcitório de € 28.736,11 (€ 24 000 mais € 4 736,11)”.
O procedimento adoptado para a avaliação dos danos patrimoniais do lesado corresponde ao que seria exigível nestas circunstâncias.
Começou o Tribunal recorrido por tentar delimitar a noção de danos patrimoniais e proceder ao seu enquadramento normativo, tendo em especial consideração a necessidade de fixação de uma indemnização em dinheiro (artigo 566.º, n.º 2, do CC).
Referiu-se, depois, às formas de dano ou de prejuízo legalmente previstas (artigo 564.º, n.º 1, do CC), ou seja, ao dano emergente e ao lucro cessante, e à conveniência de, no cálculo da indemnização, se atender aos danos futuros, desde que previsíveis (artigo 564.º, n.º 2, do CC), entre os quais avultam a incapacidade permanente e parcial para o trabalho.
Consciente de que, nestes casos, a equidade desempenha um papel fundamental (artigo 566.º, n.º 3, do CC), procurou o Tribunal recorrido fixar a respectiva noção, com apoio à doutrina estrangeira e nacional bem como à jurisprudência, concluindo que “os danos futuros decorrentes da perda de capacidade aquisitiva são danos equiparados a prejuízos não patrimoniais, mesmo que com base patrimonial, pois que o tratamento que lhes deverá ser dado corresponde às características de um julgamento de direito, elaborado a partir de conceitos de justiça e de equidade, e não de um julgamento meramente de facto, efectuado a partir de factos concretamente provados ou não provados”.
Convocou os factos provados relevantes (cfr., entre outros, factos sob os números 1, 10 e 13), designadamente, o esforço acrescido de 9 pontos percentuais, o período de incapacidade temporária total para o trabalho e que o autor tinha 43 anos à data do acidente e 45 anos à data em que cessou a incapacidade temporária, o que revela que nunca perdeu de vista que a equidade só pode funcionar dentro dos limites da factualidade provada – a equidade é a justiça do caso concreto[1].
Calculou a base patrimonial correspondente àquilo que a vítima poderia vencer antes da lesão sofrida e fixou em 33 o número de anos em que deveria repetir-se a prestação pela capacidade laboral perdida, destacando-se a preocupação em considerar, no seguimento de jurisprudência diversa, sempre não a “vida activa” mas a “vida” do lesado (pois há que prover ao sustento do lesado, mesmo após o termo da sua vida activa).
Teve, por fim, consciência de que ao valor assim obtido são aplicáveis, consoante as circunstâncias do caso, determinados factores de correcção (como a taxa de juro), que funcionam, no entanto, como meros elementos de referência, não podendo em caso algum substituir o juízo de equidade[2].
Seguindo o procedimento descrito, encontrou o Tribunal recorrido o valor final de € 28.736,11, valor este que, tendo em conta todos os elementos relevantes disponíveis para o cálculo da indemnização, não peca por exagero.
B) Dos danos não patrimoniais
No que toca ao valor dos danos não patrimoniais (também designados “danos morais”[3]), afirmou-se no Acórdão recorrido:
“O cálculo respectivo não pode dispensar o recurso à equidade, conforme disposto nos artºs 496º nº3 e 566º nº3 CCiv, e já atrás caracterizámos.
O artº 496º nº3 CCiv manda fixar o montante da indemnização pelo dano não patrimonial por forma equitativa, tendo em conta as circunstâncias referidas no artº 494º CCiv, ou seja, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, entre as quais se contam as lesões sofridas e os correspondentes sofrimentos, mais levando em conta, em todo o caso, quer os padrões geralmente adoptados na jurisprudência, quer as flutuações do valor da moeda (por todos, S.T.J. 25/6/02 Col.II/128, relatado pelo Consº Garcia Marques).
Poderemos dizer de outro modo que, ao liquidar o dano não patrimonial, o juiz deve levar em conta os sofrimentos efectivamente padecidos pelo lesado, a gravidade do ilícito e os demais elementos do “fattispecie”, de modo a achar uma soma adequada ao caso concreto, a qual, em qualquer caso, deve evitar parecer mero simulacro de ressarcimento.
Os critérios jurisprudenciais constituem importante baliza para o raciocínio, posto que aplicáveis, ainda que por semelhança, ao caso concreto.
Não poderão todavia deixar de ser equacionados os factores de ponderação do dano levados em conta na sentença em crise, designadamente os demais factos apurados nos autos, pela gravidade que assumiram.
Ou seja, seguindo uma classificação doutrinal, meramente auxiliar de um raciocínio sobre os padecimentos morais, os autos patenteiam um dano já significativo, na vertente do “dano moral”, propriamente dito, mesmo com base na incapacidade permanente (9% de incapacidade geral), mas também na vertente do “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 5, em 7) e na vertente do dano existencial e psíquico - o dano da vida de relação e o dano da dificuldade de “coping”, ou seja, da dificuldade em lidar com a sua actual incapacidade em actos da vida diária – cansaço – não suportar pesos, ter abandonado actividades sociais e de prática desportiva (grau 2 em 7), havendo que atentar também na incapacidade temporária geral e profissional, bem como nas pronunciadas dores sofridas no momento do acidente e nos dias que se lhe seguiram. O prejuízo estético permanente é de grau 3 em 7.
Tais danos consubstanciam-se numa considerável lesão sofrida pelo Autor na sua integridade física (as dores físicas e as lesões determinantes da referida incapacidade) e psíquica (os sofrimentos e abalos psicológicos).
No Ac.S.T.J. 11/12/2012, pº 991/08.3TJVNF.P1.S1, relatado pelo Consº Azevedo Ramos, discorreu-se que “considerando que a autora foi submetida a duas intervenções cirúrgicas, ficando com cicatrizes operatórias e na zona craniana, esteve sujeita a um longo período de incapacidade, e de tratamentos que durou cerca de 11 meses, apresenta atrofia de 1 cm da perna esquerda, amiotrofia do braço direito de 1,5 cm, insuficiência de ligamentos e edema crónico do tornozelo esquerdo, claudicando da perna esquerda quando há mudanças de tempo, terá de continuar a usar pé elástico e não pode usar calçado de salto alto, sofreu e sofre intensas dores, que se vão manter durante toda a vida, estando afectada esteticamente e a nível psicológico, e está afectada da IPG de 8%, passível de majoração futura em 5%, mostra-se conforme à equidade fixar em € 40 000 a compensação pelos danos não patrimoniais”.
“Não é excessiva uma indemnização de € 45 000, arbitrada como compensação de danos não patrimoniais, para uma IPG de 17%, e decorrentes de lesões ortopédicas dolorosas, que implicaram várias intervenções cirúrgicas, internamento por tempo considerável, dano estético e ditaram sequelas negativas para o padrão e a qualidade de vida do lesado” – Ac. S.T.J. 10/10/2012, pº 632/2001.G1.S1, relatado pelo Consº Lopes do Rego.
“Se o autor sofreu, ainda, traumatismo crânio-facial grave, episódios de internamento; contusões cerebrais de grau 12; traumatismo da coluna cervical, tornozelo e pé direito; sofreu intervenções cirúrgicas; sofreu muitas dores – avaliadas no grau 5 em 7 e alterações e deformações da sua imagem física – e dano estético avaliado no grau 4 em 7, é equitativa a quantia de € 45 000, arbitrada pelas instâncias, a título de dano não patrimonial” Ac.S.T.J. 19-01-2012, revista n.º 817/07.5TBVVD.G1.S1 - 7.ª Secção – relatado pelo Consº Gonçalves Poças.
No Ac.S.T.J. 7/10/2010 in www.dgsi.pt, pº nº 2171/07.6TBCBR.C1.S1, “considerando o período de incapacidade temporária, geral e profissional, total e parcial, fixável em 382 dias, o «quantum doloris», fixável no grau 4, os internamentos, intervenção cirúrgica, consultas e sessões de recuperação, o prejuízo estético de grau 2, e a incapacidade parcial permanente de 8%, elevável para 13%, sofridos pelo autor, que em nada contribuiu para o acidente, à data do qual tinha 45 anos de idade, percebendo o ordenado mensal ilíquido de € 972,00, em comparação com o estatuto de solidez económica da ré seguradora, mostra-se equitativa a fixação da correspondente compensação, por danos de natureza não patrimonial, no montante de € 35.000,00”.
No Ac.S.T.J. 9/9/2010, in www.dgsi.pt, pº nº 2572/07.0TBTVD.L1, considerou-se que, em caso de incapacidade permanente parcial de 10%, com que ficou um sinistrado em acidente de viação, de 22 anos, deve ser majorado para € 30.000,00 o montante compensatório, relativamente aos danos não patrimoniais do mesmo sinistrado que, em virtude do acidente, foi sujeito a internamentos hospitalares com intervenções cirúrgicas, teve de estar acamado com imobilização e dependência de terceira pessoa em casa durante cerca de 3 meses, teve enjoos e dores (estas em grau 3 numa escala de 7), esteve longo período sem poder, em absoluto, trabalhar (este na sua vertente não patrimonial) e que, como sequelas permanentes, ficou com uma cicatriz na região dorso lombar de 14 cm e a sofrer de lombalgias que se agravam no final do dia de trabalho.
Os critérios usados para a perda do direito à vida não são utilizados pela jurisprudência dos tribunais superiores para aferir eventuais parcelas de dano – antes os danos são considerados de forma absolutamente independente, relevando “a gravidade dos padecimentos físicos e morais suportados em consequência do evento, protraídos no tempo, aferida essa gravidade por padrões de carácter objectivo” – veja-se Ac.S.T.J. 13/5/04, revista 1185/04, 2ª Secção, relatada pelo Consº Ferreira de Almeida.
Os exemplos doutrinários e jurisprudenciais supra, acrescendo as circunstâncias do caso concreto, mostram que a indemnização pelo dano não patrimonial do Autor, que foi fixado, na sentença recorrida, globalmente, seja pelas específicas sequelas da incapacidade permanente, seja pelas dores e pelo dano estético sofrido, em € 40 000 achar-se-ia mais próxima dos parâmetros habituais da jurisprudência acaso tivesse sido fixada em € 32 500 – montante em que se decide se deva fixar a indemnização devida por este item”.
Mais uma vez, o raciocínio do Tribunal recorrido relativamente aos danos não patrimoniais resulta claro do sumário do Acórdão:
“Quanto aos padecimentos morais, vista a incapacidade permanente geral de 9% e o “pretium doloris” (ressarcimento da dor física sofrida – grau 5, em 7), acrescendo um dano da vida de relação e prejuízo de afirmação pessoal, justifica-se a atribuição ao Autor de um montante de € 32.500,00”.
E, mais uma vez aqui, o procedimento adoptado pelo Tribunal recorrido é insusceptível de reparo.
Salientando, desde logo, o papel indispensável da equidade, que perpassa do disposto nos artigos 496.º, n.º 3, e 566.º, n.º 3, do CC, bem como, tendo em vista o respeito pelo princípio da igualdade, a importância das decisões proferidas em casos idênticos, o Tribunal a quo referiu-se a (e reproduziu) numerosos exemplos jurisprudenciais e doutrinais.
Ponderando, depois, os factos provados relevantes, nomeadamente os resultantes do exame pericial (cfr. facto sob o número 10), ou seja, entre outros, o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica (9%), o “quantum doloris” (grau 5/7), a repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer (grau 2/7) e o prejuízo estético permanente (grau 3/7), considerou adequado aumentar o valor atingido pelo Tribunal de 1.ª instância para os danos não patrimoniais, fixando-o em € 32.500,00.
Ora, quanto aos danos não patrimoniais, é sabido que a única condição de compensabilidade é a sua gravidade, o que lhe confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação. Seria, por isso, debalde a tentativa de apurar o respectivo quantum compensatório com base em factores aparentemente objectivos, devendo reconhecer-se ao julgador margem para valorar segundo critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] [a] doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais”[4]. A equidade é aqui, em rigor, o único recurso do julgador[5], ainda que não descurando as circunstâncias que a lei manda considerar (cfr. artigo 496.º, n.º 4, do CC).
É, em síntese, incontestável que o Tribunal recorrido não procedeu em nenhum momento discricionária ou acriteriosamente. Observou as regras de Direito aplicáveis e, tornando-se necessário o recurso à equidade, alicerçou a sua decisão em critérios razoáveis, tendo ainda em consideração elementos de referência coligidos na jurisprudência.
Esta última é, aliás, uma preocupação que deve ser partilhada por todos os tribunais, que serve o propósito plasmado no artigo 8.º, n.º 3, do CC, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito.
Verificada a ponderação que o Tribunal fez de todos os elementos disponíveis (o disposto na lei e as orientações da jurisprudências, as circunstâncias relevantes do caso, perspectivado na sua globalidade, e as decisões jurisprudenciais em casos semelhantes), conclui-se que o valor encontrado para a indemnização a ambos os títulos não é, de todo, desproporcionado ou exagerado e, portanto, não existem razões para o alterar.
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Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.
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Custas pela recorrente.
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LISBOA, 6 de Fevereiro de 2020
Catarina Serra (Relatora)
Bernardo Domingos
João Bernardo
[1] Segundo A. Castanheira Neves (Curso de Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, 1971-1972, p. 244), “[a] 'equidade sempre pretendeu traduzir um juízo normativo de referência individual-concreta – que atenda às 'circunstâncias do caso' (…), é, sim, instrumento da concreta realização do direito”.
[2] Veja-se, desde logo, neste Supremo Tribunal, o Acórdão de 7.02.2002, Proc. 3985/01 (disponível em http://www.dgsi.pt.), em que se sustenta que “[o] recurso às fórmulas matemáticas ou de cálculo financeiro para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros/lucros cessantes não pode substituir o prudente arbítrio do julgador, ou seja, a utilização de sãos critérios de equidade”. Veja-se ainda o Acórdão de 25.06.2002, Proc. 02A1321 (disponível em http://www.dgsi.pt.), em que se diz que “[a] utilização de tais tabelas financeiras, como qualquer outro que seja expressão de um critério abstracto, constitui, porém, sublinhe-se, um método de cálculo de valor meramente auxiliar (…), Na verdade, sendo vários os critérios que vêm sendo propostos para determinar a indemnização devida pela diminuição da capacidade de ganho, e nenhum deles se revelando infalível, devem eles ser tratados como meros instrumentos de trabalho com vista à obtenção da justa indemnização, pelo que o seu uso deve ser temperado por um juízo de equidade, nos termos do n.º 3 do artigo 566º”. Outros Acórdãos, mais recentes, confirmam o carácter auxiliar destes factores e tentam sintetizar o procedimento a seguir pelo julgador para o cálculo do valor da indemnização pelos danos patrimoniais futuros, salientando o papel fundamental da equidade. Veja-se, por exemplo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.06.2012, Proc. n.º 49/07.2TBFLG.G1.S1, e de 1.010.2012, Proc. 338/08.9TCGMR.G1.S1 (disponíveis em http://www.dgsi.pt).
[3] A designação “danos não patrimoniais” é, segundo Maria Manuel Veloso (“Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 498), mais rigorosa do que a de “danos morais”, que inclui os danos morais propriamente ditos bem como os danos estéticos, os sofrimentos físicos, etc.
[4] Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, cit., p. 506.
[5] Sobre o que é a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece poder dizer-se “que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676 (interpolação nossa).