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ECLI:PT:STJ:2020:2613.16.0T8MAI.A.P1.A.S1

Relator: Francisco Caetano

Descritores: Recurso para fixação de jurisprudência; Multa; Redução; Acto processual; Ato processual; Prazo

Processo: 2613.16.0T8MAI.A.P1.A.S1

Data do Acordão: 13/02/2020

Votação: Maioria com Voto Vencido

Referência de Publicação: https://data.dre.pt/eli/acstj/4/2020/05/18/p/dre

Texto Integral: S

Meio Processual: Recurso de Fixação de jurisprudência (Penal)

Decisão: Fixada a Jurisprudência

Indicações eventuais: Transitado em julgado

Área Temática: 5.ª Secção (Criminal)

Sumário

O n.º 8 do art. 139.º do CPC, no qual se estabelece a possibilidade excepcional de redução ou dispensa da multa pela prática de acto processual fora do prazo, é aplicável em processo penal.

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral


Processo n.º 2613/16.0T8MAI-A.P1-A.S1


(Fixação de jurisprudência)

 

Acordam no pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

 

I


1 – AA, na qualidade de arguido, veio, em 13 de Abril de 2018 e em tempo, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação do Porto proferido no Proc. n.º 2613/16.0T8MAI-A.P1 em 31 de Maio de 2017 e transitado em julgado em 8 de Março de 2018, com fundamento em que se encontra em oposição relativamente à mesma questão de direito, de dispensa do pagamento da multa devida pela interposição de recurso ao 3.º dia após termo do prazo, de acordo com o disposto no n.º 8 do art.º 139.º do Código de Processo Civil na actual redacção dada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho (anterior n.º 8 do art.º 145.º) e no domínio da mesma legislação, com o acórdão da mesma Relação proferido em 23 de Outubro de 2013 no Proc. n.º 401/07.3GBBAO-B.P1 (acórdão fundamento), publicado em www.dgsi.pt e transitado em julgado em 25 de Novembro de 2013.

Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a conferência da 5.ª secção julgou em acórdão verificada a oposição de julgados e determinou o seu prosseguimento.

Notificados os interessados, o Ministério Público apresentou alegações que rematou com as seguintes conclusões:

“1. O aditamento do art.º 107.º-A do CPP não altera a solução anteriormente plasmada na lei.

2. Na tarefa interpretativa deve atender-se ao elemento literal, averiguar-se quais os valores subjacentes à criação do preceito legal, qual o contexto histórico geral em que surgiu e qual a integração que o preceito tem no conjunto das normas onde se insere (elementos teleológico, histórico e sistemático).

3. Não está demonstrada uma intenção em diferenciar o regime do CPP e do CPC já que, embora o preâmbulo do DL 34/2008, de 26.02 nada adiante quanto ao sentido e alcance da norma, a Lei nº 26/2007, de 23.07, no art.º 2.º, n.º 3, refere que o sentido e a extensão da autorização legislativa, no que se refere à alteração do Código de Processo Penal, é, entre outros, o de “estabelecer um regime de multas processuais para a prática extemporânea de actos processuais, possibilitando a aplicação das regras constantes sobre a matéria do Código de Processo Civil”.

4. O art.º 107.º-A não deve ser lido isoladamente mas, antes, integrado no quadro normativo em que se insere.

5. O legislador pretendeu, pela prática extemporânea de actos processuais, estabelecer sanções pecuniárias inferiores ao CPC e, na parte em que remete para os números 5 a 7 do art.º 145.º do CPC, quis evidenciar que se manteria o regime da validade do acto, dos procedimentos de notificações e ainda dos prazos para pagamento.

6. O art.º 107.º-A ressalva que o regime nele estabelecido é aplicado “sem prejuízo no disposto do artigo anterior”, pelo que o n.º 5 continua a ter um campo de aplicação, neste particular, o número 8 do art.º 145.º do CPC [actual art.º 139.º, n.º 8].

7. Se o legislador pretendeu estabelecer valores inferiores para as sanções em processo penal, não faria sentido considerar que o mesmo pudesse ser insensível a situações em que, por manifesta insuficiência económica ou quando o respectivo montante se revelasse manifestamente desproporcionado, se justificasse que o juiz excepcionalmente determinasse a redução ou, até mesmo, a dispensa da multa.

8. Embora a questão se venha colocando desde o aditamento do art.º 107.º-A, tanto este preceito como o art.º 107.º nº 5, mantiveram-se intactos não obstante as alterações ulteriormente introduzidas ao Código de Processo Penal.

9. Uma correcta interpretação da lei leva a que se conclua que continua a estar expressamente plasmada a solução de que o n.º 8 do actual art.º 139.º do CPC se aplica ao Processo Penal

10. Em conclusão, se um acto processual é praticado fora do prazo, independentemente de justo impedimento, nos termos do art.º 107.º n.º 5 do CPP, é aplicável o disposto no art.º 145.º n.º 8 do CPC Velho [actual n.º 8 do art.º 139.º do CPC].

Propõe-se, pois, que o conflito de jurisprudência existente entre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no processo nº 2613/16.0 T8MAI-A.P1-A.S1 e o acórdão proferido por esse mesmo tribunal no processo 401/07.3 GBBAO-B.P1 seja resolvido nos seguintes termos:

No processo penal, o juiz pode, excepcionalmente, determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, nos termos do artigo 139.º n.º 8 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.º 107.º n.º 5 do CPP”.

Também o recorrente alegou, finalizando as alegações com as seguintes conclusões:

“1. A oposição de julgados centra-se na questão da aplicabilidade do art.º 139.° n.º 8 do Código de Processo Civil ao domínio do direito processual penal.

2. Não há qualquer dúvida de que o legislador estabeleceu diferentes penalidades para a prática de actos processuais, de forma extemporânea, nos Códigos de Processo Civil (art.º 139.° n.º 5) e Processo Penal (art.º107.º-A).

3. Assumiu de forma expressa a possibilidade de dispensa da multa na legislação processual civil (art.°139.º n.º 8).

4. Resta saber se não o pretendeu fazer no domínio da legislação processual penal ou se, pelo contrário, considerou que a legislação existente já consagra essa possibilidade.

5. Conforme se antevê, optamos pela última hipótese, por uma dupla razão.

6. Logo em primeira linha, pelo estabelecido no art.º 4.º do Código de Processo Penal, que manda aplicar as normas do processo civil que sejam harmonizáveis com o processo penal.

7. Depois, e de forma mais expressa, o disposto no n.º 5 do art.º 107.° do mesmo diploma, que estatui que "independentemente do justo impedimento pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações."

8. Ora, se uma das consequências da prática do acto processual num dos três dias subsequentes à verificação do prazo normal, no âmbito do processo civil, é o pagamento de multa, mas também o poder reduzir ou dispensar o seu pagamento a quem o praticou, não vemos como conciliar a sua não aplicação ao processo penal com o teor daquele normativo, tendo o art.º 139.º n.º 8 do Código de Processo Civil aplicação no processo penal.

9. Seria insustentável, no quadro constitucional vigente, que só em processo civil pudessem os interessados ver reduzido ou dispensado o pagamento de multa, por apresentação tardia em juízo de peças processuais.

10. Nessa medida, com o devido respeito, somos a considerar que o sentido em que se deverá fixar jurisprudência será o seguinte: “O art.º 139.º n.º 8 do Código de Processo Civil tem aplicação no domínio do direito processual penal, em virtude do disposto nos art.ºs 4.º e 107.º n.º 5 do Código de Processo Penal”.

2 – Colhidos os vistos, o processo foi à conferência do pleno das secções criminais, cumprindo decidir.

3 – Antes, porém, porque o pleno pode decidir em sentido contrário ao da conferência da secção (art.ºs 692.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 4.º do CPP), importa reapreciar a questão da oposição de julgados.

O circunstancialismo factual retratado nos autos é o seguinte:

a) – No Proc. n.º 2613/16.0T8MAI-A.P1, de natureza contra-ordenacional, onde foi proferido o acórdão recorrido, o arguido, ora recorrente, havia interposto recurso para a Relação da sentença proferida pelo Juiz 2 da Secção Criminal da Instância Local da …, Comarca do …, o que fez ao 3.º dia após decurso do respectivo prazo e invocando “não ter qualquer possibilidade monetária de poder efectuar o pagamento da (…) multa, resultante dos seus parcos rendimentos e consequente precariedade económica”;

b) – A Exma. Juíza indeferiu o requerido sem proceder à análise da situação económica exposta e, na sequência de recurso interposto pelo arguido, o Tribunal da Relação do Porto, pelo acórdão recorrido, negou provimento ao recurso, decidindo que o arguido deveria “efectuar o pagamento da multa devida pela interposição do recurso ao 3.º dia do prazo legalmente fixado”;

c) – Nesse recurso entendeu a Relação que “a única questão que nos convoca o conhecimento é a de saber se deveria ou não ter sido dispensado do pagamento da multa prevista no artigo 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, uma vez que foi apresentado o requerimento de interposição de recurso no terceiro dia útil ao termo do prazo legalmente estabelecido e alegada a carência económica por parte do recorrente”;

d) – E que “a simples leitura de ambos os preceitos [art.ºs 107.º, n.º 5 e 107.º-A, do CPP] inculca-nos a ideia de que o estabelecido no n.º 8 do art.º 139.º do Código de Processo Civil (…) não tem aplicação ao processo penal, uma vez que o art.º 107.º-A do Código de Processo Penal refere expressamente que se aplica à prática extemporânea de actos processuais penais o disposto nos n.ºs 5 a 7 do art.º 145.º do Código de Processo Civil”, sem que remeta, também, para o seu n.º 8;

e) – E que “existe quem sufrague o entendimento de que o n.º 8 do art.º 145.º do Código de Processo Civil (agora art.º 139.º) se aplica ao processo penal [remetendo para nota de rodapé a indicação do Ac. do STJ de 21.12.2011, pub. na CJ/ASTJ, 2011, III, 235] e a não alusão ao número 8 se fica a dever a uma falha de harmonização legislativa e não a uma intensão clara do legislador em afastar a aplicabilidade dessa possibilidade quando nos movemos no âmbito penal. Mas, salvo o devido respeito, não encontramos arrimo para tal entendimento”;

f) – No Proc. n.º 401/07.3GBBAO-B.P1, onde foi proferido o acórdão fundamento, o arguido havia interposto recurso de acórdão em que fora condenado, no 3.º dia após decurso do respectivo prazo e pedido dispensa do pagamento da respectiva multa, invocando “não ter qualquer possibilidade monetária de poder efectuar o pagamento da (…) multa resultante do longo período de reclusão já sofrido”;

g) – A 1.ª instância, entendendo serem aplicáveis em processo penal apenas as normas dos n.ºs 5 a 7 do art.º 145.º do CPC “e não a norma do n.º 8”, indeferiu o requerido e, “para tornar válido o requerimento apresentado”, notificou o arguido para proceder, de imediato, ao pagamento da multa aludida no art.º 107.º-A, alín. c), do CPP;

h) – A Relação do Porto, pelo acórdão fundamento, delimitou o objecto do recurso nestes termos: “ (…) diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes: 1.ª – O art.º 145.º, n.º 8, do Código de Processo Civil tem aplicação no processo penal); 2.ª – Tendo, devia o recorrente ser isento do pagamento de multa por ter interposto recurso do acórdão cumulatório no terceiro dias subsequente à verificação do prazo normal?”;

i) – E, após análise dos preceitos dos art.ºs 107.º, n.º 5 e 107.º- A, do CPP e 145.ºs n.º 5 a 7 e 8 do CPC e das sucessivas reformas, dispôs que “[a]assim e concluindo a apreciação desta 1.ª questão, diremos que o art.º 145.º n.º 8 do CPC tem aplicação no processo penal”;

j) – Já quanto à 2.ª questão (hic et nunc irrelevante) considerou que “se encontra na situação de manifesta carência económica para pagar a multa quem se encontra preso e não dispuser de rendimentos para isso”;

l) – Concedeu, assim, provimento ao recurso e revogou o despacho recorrido determinando que fosse substituído por outro que “pressuponha a aplicação do art.º 145.º, n.º 8, do CPC na decisão a proferir (…) ”.

Do exposto resulta manifesta a verificação dos requisitos de ordem formal, desde logo a legitimidade do requerente (art.º 437.º, n.º 5, do CPP), o mesmo acontecendo quanto aos requisitos substanciais.

Não obstante diversa a natureza dos processos em confronto (processo comum e processo especial de contra-ordenação), tal não releva na economia dos preceitos legais acima assinalados dada, por um lado, a aplicação subsidiária das normas do processo penal ao processo contra-ordenacional (art.º 41.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27.10 – RGCO) e, por outro, a remissão, para a tramitação do recurso em processo penal, do recurso para a Relação da matéria contra-ordenacional da impugnação judicial (art.º 74.º do RGCO).

Relevante é que a situação de facto subjacente a ambos os acórdãos, recorrido e fundamento, seja, como é, essencialmente idêntica: prática de um acto processual traduzido na interposição de recurso, ao 3.º dia útil do prazo, com pedido de dispensa do pagamento da respectiva multa.

Também a legislação em cujo domínio os acórdãos foram proferidos é a mesma, reconduzindo-se aos art.ºs 107.º, n.º 5 e 107.º-A, do CPP e 139.º, n.º 8, do CPC.

Embora o acórdão fundamento se reporte ao art.º 145.º, n.º 8, do CPC, então vigente e na redacção do DL n.º 34/2008, de 26.02, esse preceito legal corresponde sem qualquer alteração à redacção do actual art.º 139.º, n.º 8, do mesmo diploma, tratando-se de mera renumeração operada pela reforma processual civil de 2013 (Lei n.º 41/2013, de 26.06).

Ambos os acórdãos adoptaram soluções opostas sobre a mesma questão de direito, ou seja, o acórdão recorrido entendeu não ser aplicável, em processo penal, o disposto no n.º 8 do art.º 139.º do CPC e obrigou, em conformidade, ao pagamento da multa pela interposição de recurso ao 3.º dia do prazo legalmente fixado e o acórdão fundamento entendeu o contrário e decidiu, também em conformidade, fosse considerada a dispensa do pagamento da multa por prática de idêntico acto processual.

E, sendo essa a questão de direito em oposição, não importa atender às particularidades da questão (secundária) da situação económica dos respectivos requerentes, cujo conhecimento só se coloca a jusante da admissibilidade da aplicação da norma processual civil em causa em processo penal.

4 – Assim sendo e sem necessidade de outras considerações, porque o recorrente dispõe de legitimidade, o recurso foi interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão recorrido, foi indicada a publicação do acórdão fundamento, que transitou em julgado, a questão de direito apreciada é a mesma em ambos os acórdãos, cuja prolação ocorreu no domínio da mesma legislação, assentando, por outro lado, em expressas soluções opostas, quando, por fim, os factos são em tudo idênticos do ponto de vista dos seus efeitos jurídicos, nada obsta a que seja fixada a pertinente jurisprudência.


II


1 – A questão a que cumpre dar resposta é saber se o disposto no n.º 8 do art.º 139.º do Código de Processo Civil (CPC), que prevê a possibilidade de excepcionalmente o juiz poder reduzir ou dispensar a multa devida pela prática de acto processual fora do prazo legalmente estabelecido, tem aplicação no processo penal, uma vez que o art.º 107.º-A do Código de Processo Penal (CPP), introduzido pelo DL n.º 34/2008, de 26.02 (diploma que aprovou o Regulamento das Custas Processuais - RCP), passou a prever a aplicação dos n.ºs 5 a 7 e não, também, do n.º 8 do art.º 145.º do CPC (cuja redacção é igual à do art.º 139.º do actual CPC).

 A omissão à referência desse preceito, bem como a convicção de que foi pretensão do legislador constituir regimes diferenciados para um e para outro direito adjectivo quanto à prática de actos processuais fora do prazo legal normal, constitui o fundamento do acórdão recorrido para a recusa da aplicação em processo penal da norma do n.º 8 do art.º 139.º do CPC, que, todavia, não pode aceitar-se.

Vejamos.

O art.º 139.º do CPC, decorrente da reforma processual civil de 2013, operada pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, mais não é que a renumeração do art.º 145.º da versão anterior do CPC.

O seu n.º 8 tem a seguinte redacção:

- “O juiz pode excepcionalmente determinar a redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou quando o respectivo montante se revele manifestamente desproporcionado, designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido praticado directamente pela parte”.

Corresponde ipsis verbis ao n.º 8 do anterior art.º 145.º, à luz do qual foi proferido o acórdão fundamento[1].

Por sua vez o art.º 107.º-A do CPP[2], sob a epígrafe “[s]anção pela prática extemporânea de actos processuais”, dispõe o seguinte:

- “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais aplica-se o disposto nos n.ºs 5 a 7 do art.º 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações:

a) – Se o acto for praticado no 1.º dia, a multa é equivalente a 0,5 UC;

b) – Se o acto for praticado no 2.º dia, a multa é equivalente a 1 UC;

c) - Se o acto for praticado no 3.º dia, a multa é equivalente a 2 UC.”

Já o artigo anterior, ou seja, o 107.º do CPP, sob a epígrafe de “[r]enúncia ao decurso e prática de acto fora do prazo”, dispõe no seu n.º 5[3] que, “[i]ndependentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações” [realce nosso].

2 – Sobre os critérios de interpretação da lei, em geral, dispõe o n.º 1 do art.º 9.º do Código Civil que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada” e, o n.º 2, que “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”.

Já o n.º 3 estabelece que, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”. 

Na lição de Baptista Machado[4], tradicionalmente são dois os factores interpretativos: o elemento gramatical, ou seja, o texto, a “letra da lei”, e o elemento lógico que, por sua vez, se subdivide no elemento racional ou teleológico, elemento sistemático e histórico.

A letra da lei é o ponto de partida da interpretação, desde logo lhe cabendo uma função negativa – a de eliminar aqueles sentidos que não tenham qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei – cabendo-lhe também uma função positiva, isto é, se o texto comportar apenas um sentido é esse o sentido da norma, sem prejuízo de se poder concluir, com base noutras normas, que a redacção do texto atraiçoou o pensamento do legislador.

De acordo com esse autor, “quando, como é de regra, as normas (fórmulas legislativas) comportam mais que um significado, então a função positiva do texto traduz-se em dar mais forte apoio a, ou sugerir mais fortemente, um dos sentidos possíveis. É que, de entre os sentidos possíveis, uns corresponderão ao significado mais natural e directo das expressões usadas, ao passo que outros só caberão no quadro verbal da norma de uma maneira forçada, contrafeita. Ora, na falta de outros elementos que induzam à eleição do sentido menos imediato do texto, o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento”.

Também Karl Larenz[5] destaca que, a par da interpretação gramatical surge, completando-a, a interpretação lógica e sistemática, a este propósito chamando a atenção para que não deva sobrevalorizar-se a importância da sistemática externa da lei, mais importante sendo o contexto significativo interno, “a harmonia” dos preceitos numa regulamentação que faz pleno sentido em si mesma”.

Por sua vez, Karl Engish[6], a propósito do que considera ser um texto modelar do tratado de Direito Civil de Enneccerus, salienta que “a interpretação tem de partir do teor verbal da lei, o qual há-de ser posto a claro «tendo em conta as regras da gramática e designadamente o uso corrente da linguagem», tomando, porém, em particular consideração também os “modos de expressão técnico-jurídicos»: «a coerência interna do preceito, o lugar em que se encontra e as suas relações com outros preceitos» (ou seja, a interpretação lógico-sistemática), assim como «a situação que se verifica anteriormente à lei e toda a evolução histórica», bem assim «a história da génese do preceito», que resulta particularmente dos trabalhos preparatórios, e finalmente o «fim particular da lei ou do preceito em singular» (ou seja, a interpretação teleológica) ”.

3 – Voltando aos preceitos legais assinalados, dir-se-á, antes de mais, que o facto de o art.º 107.º-A mandar aplicar o disposto nos n.ºs 5 a 7 do art.º (hoje) 139.º do CPC não significa que exclua o n.º 8 desse preceito do seu campo de aplicação próprio.

Ao contrário, não haveria que fazer-lhe referência expressa porque aqueles e este número têm alcance diferente. Visam aqueles a validade dos actos, os procedimentos de notificação e prazo de pagamento das multas e, o n.º 8, a redução ou dispensa da multa pela prática do acto com atraso.

A pretensão da norma do art.º 107.º-A era ser especificamente sancionatória para a prática extemporânea de actos processuais, como resulta da própria epígrafe, assim indo ao encontro da intenção do legislador expressa na alín. c) do n.º 3 do art.º 2.º da Lei de autorização legislativa n.º 26/2007, de 23.07, ao abrigo da qual haveria de ser aprovado o RCP e alterado o CPP através do cit. DL n.º 34/2008 que a introduziu, como vimos, norma aquela que fez questão de ressalvar a possibilidade de aplicação das regras constantes sobre a matéria do Código de Processo Civil (elemento histórico), onde se inclui a norma do n.º 8 do que é hoje o art.º 139.º.

Acresce ainda que esse preceito estabeleceu para os actos praticados em processo penal quantitativos de multa inferiores aos praticados em processo civil.

Se assim é, se é menos onerosa a prática de actos em processo penal que em processo civil, num critério interpretativo lógico-racional há-de concluir-se que seria falho de sentido um regime de redução ou dispensa de multa mais favorável em processo civil, que em processo penal.

Ainda assim, o que é sempre decisivo em termos de “letra da lei”, enquanto critério interpretativo, aquele preceito começou por ressalvar o disposto no artigo anterior (“sem prejuízo do artigo anterior…”), ou seja, o art.º 107.º, em cujo n.º 5 claramente se dispõe que “independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as consequências que em processos civil…”, o que vale por dizer que, em processo penal, praticado o acto fora do prazo normal, o mesmo está subordinado a iguais termos e consequências que o acto praticado fora do prazo em processo civil, desde logo, por força do n.º 8 do art.º 139.º, à possibilidade excepcional de redução ou dispensa da multa nos casos de manifesta carência económica ou desproporcionalidade do seu montante.

Em suma, não só o n.º 5 do art.º 107.º do CPP remete para o disposto no n.º 8 do art.º 139.º do CPC (e antes 145.º), como o próprio art.º 107.º-A do CPP ressalvou a sua aplicação.

4 – É essa a interpretação que tem colhido o apoio maioritário da jurisprudência, a começar pelo Supremo Tribunal de Justiça, que no acórdão de 21.12.2011 concluiu pela aplicabilidade, em processo penal, do disposto no n.º 8 do hoje art.º 139.º do CPC[7], seguindo-se as Relações[8].

É, de resto, a que melhor se articula com a arquitectura constitucional portuguesa quando, no seu art.º 13.º, a Constituição da República proclama, como princípio estruturante do Estado de direito democrático e princípio geral dos direitos e deveres fundamentais, o princípio da igualdade.


III


Face ao exposto, os juízes que constituem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decidem:


a) – Fixar a seguinte jurisprudência;


- O n.º 8 do art.º 139.º do Código de Processo Civil, no qual se estabelece a possibilidade excepcional da redução ou dispensa da multa pela prática de acto processual fora do prazo, é aplicável em processo penal;


b) – Reenviar o processo à Relação do Porto para revisão da decisão recorrida em conformidade com a jurisprudência ora fixada.


Sem custas.


Cumpra-se o disposto no n.º 1 do art.º 444.º do CPP.



*


Lisboa, 13 de Fevereiro de 2020



Francisco Manuel Caetano (Relator)


Manuel Pereira Augusto de Matos


Carlos Manuel Rodrigues de Almeida


José Luís Lopes da Mota


Maria da Conceição Simão Gomes


Júlio Alberto Carneiro Pereira


António Manuel Clemente Lima


Maria Margarida Blasco Martins Augusto


Paulo Jorge Fonseca Ferreira da Cunha


Maria Teresa Féria Gonçalves de Almeida


José António Henrique dos Santos Cabral


António Pires Henriques da Graça


Raul Eduardo do Vale Raposo Borges


Manuel Joaquim Braz


Helena Isabel Gonçalves Moniz Falcão de Oliveira


Nuno de Melo Gomes da Silva


Nuno António Gonçalves (Vencido conforme voto que junto)


António Joaquim Piçarra (Presidente)


 

_________________
 

 

[1] Redacção dada pelo cit. DL n.º 34/2008, cuja redacção repristinou a expressão “excepcionalmente” (que fora eliminada pelo DL n.º 180/1996, de 25 de Setembro e que constava sob n.º 7 da versão originária do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro) e acrescentou a parte final “designadamente nas acções que não importem a constituição de mandatário e o acto tenha sido praticado directamente pela parte”.


[2] Aditado pelo cit. DL n.º 34/2008.


[3] Aditado pela reforma processual de 1995 – DL n.º 317/95, de 28 de Novembro.


[4] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 1983, pp. 181 e ss.


[5] Metodologia da Ciência do Direito, Gulbenkian, 2.ª ed., pp. 366 e ss.


[6] Introdução ao Pensamento Jurídico, Gulbenkian, 6.ª ed., p. 137.


[7] CJ/STJ, III, p. 235.


[8] Ac. RC de 23.032011, Proc. 1691/07.PBAVR-B.C1, RL de 23.10.2012, Proc. 4837/11.7TDLSB.L1-5, RL de 16.01.2014, Proc. 415/12.1SILSB-A.L1-9, RG de 30.11.2015, Proc. 87/13.6GAMGD.G1 e RL de 07.01.2017, Proc. 5688/15.5TAMD-A.L1-9.

 


-*-

 

Voto vencido

 

Discordo da interpretação que fez vencimento porque a texto do corpo do artigo 107º-A é bem claro, restringindo a remição o n.º 8 do artigo 145º do Código de Processo Civil anterior, atual artigo 139º n.º 8 do vigente CPC,

A norma em apreço estabelece:

“Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, à prática extemporânea de actos processuais penais aplica-se o disposto nos n.os 5 a 7 do artigo 145.º do Código de Processo Civil, com as seguintes alterações” (,,,)

Na fundamentação do Acórdão que faz vencimento refere-se que a letra da lei – o elemento gramatical – é o ponto de partida da interpretação.

O texto da norma legal é também um limite intransponível na medida em que o interprete deve presumir que o legislador soube exprimir-se adequadamente, não podendo ser considerado como seu, pensamento que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Através da interpretação das normas legais não alterar-se a letra da lei.” O intérprete deve atender, preferindo o sentido que mais e melhor corresponde ao significado normal das expressões verbais nele utilizadas, designadamente sob o ponto de vista técnico-jurídico”.

O artigo 107-A foi aditado no Código de Processo Penal pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que aprovou o Regulamento das Custas Processuais e alterou também o Código de Processo Civil.

De entre os propósitos que o motivaram, incluía-se o de “estabelecer um regime de multas processuais para a prática extemporânea de actos processuais, possibilitando a aplicação das regras constantes sobre a matéria do Código de Processo Civil”.

Se o legislador criou uma norma especifica para o processo penal que textualmente, circunscreve a remição para os n.ºs 5 a 7 do art.º 145º do CPC, não pode o interprete ler que também remete para o n.º 8 do mesmo dispositivo processual civil.

O Código de Processo Penal foi alterado depois e também assim o CPC e, não obstante, o legislador não ampliou a aludida remição.

 

Nuno A. Gonçalves

 

 

Descritores:
 Recurso para fixação de jurisprudência; Multa; Redução; Acto processual; Ato processual; Prazo