I - Apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.
II - Não é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, sem prejuízo da possibilidade de verificação da existência (ou não) dos pressupostos para que se conclua pela existência de um concurso de crimes, relativamente ao crime de violação da integridade física (foi mantida a pena de 2 meses de prisão), ao crime de abuso sexual de criança (foi retirada a agravação, diminuída a pena para 2 anos e 3 meses), aos 4 crimes de atos sexuais com adolescentes, agravados (punidos com pena de prisão de 2 anos e 6 meses, cada um), aos 10 crimes agravados de atos sexuais com adolescente (punidos com pena de prisão 2 anos e 6 meses, cada um) e ao crime de pornografia de menores agravado (punido com pena de prisão de 4 anos de prisão; este crime resulta da requalificação em apenas um crime dos 17 crimes de pornografia de menores pelos quais o arguido tinha sido condenado em 1.ª instância).
III - Não é admissível o recurso, por verificação de “dupla conforme”, quanto ao crime de abuso sexual de criança agravado cuja condenação se manteve após a prolação do acórdão recorrido com pena de 7 anos de prisão (sem que tivesse havido alteração da matéria de facto), e ao crime de violação agravado cuja condenação se manteve em pena de prisão de 7 anos e 6 meses (sem que tivesse havido alteração da matéria de facto).
IV - Não é admissível o recurso dos crimes pelos quais o arguido foi absolvido.
V - É admissível o recurso de todas as questões relativas ao crime de abuso sexual de criança que havia sido punido, como agravado, com a pena de 5 anos e 6 meses, mas que foi requalificado pelo Tribunal da Relação sem agravação, e diminuída a pena para 5 anos e 3 meses.
VI - Ao abrigo do disposto no art. 380.º, do CPP, e porque se tratou de um mero lapso aquando da redação do dispositivo (tendo em conta a fundamentação apresentada) devemos corrigir o dispositivo no sentido de punir o arguido por um crime de abuso sexual de criança consumado, nos termos dos arts. 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP.
VII - A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei.
VIII - Em parte alguma o tipo legal de crime de abuso sexual de criança permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.
IX - A culpa do arguido é elevada, tendo em conta o período de tempo durante o qual decorreram os atos de abuso sexual, demonstrando persistência na sua realização, indiferente à ilicitude dos factos. E tendo em conta a natureza dos atos, lesivos de bens jurídicos pessoais, são fortes as exigências de prevenção geral, assim com as de prevenção especial. A pena a aplicar deveria ser uma pena muito próxima do meio da moldura penal, que se situa em 6 anos e 6 meses de prisão, mas atendendo ao princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no art. 409.º, n.º 1, do CPP, mantém-se a pena que lhe foi aplicada de 5 (cinco anos) e 3 (três) meses.
X - A moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 7 anos e 6 meses de prisão (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 25 anos (de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).
XI - Tem sido considerado que o crime de pornografia de menor, previsto no art. 176.º, n.º 1, al. b), do CP (e pelo qual o arguido vem condenado), constitui um crime que pressupõe “uma relação direta entre o agente da prática do crime e o menor, ofendendo a sua autodeterminação sexual”. E também tem sido entendido que o crime de ato sexual com adolescente protege “o livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente de 14 a 16 anos, de qualquer sexo, face a processos proibidos de sedução conducentes à prática de actos sexuais de relevo”.
XII - Todavia, o crime de pornografia de menores não pretende apenas proteger a autodeterminação sexual do menor; primariamente, este tipo legal de crime protege a exploração sexual do menor, quer se trate de uma exploração utilizando o menor em fotografia ou filmes, por exemplo, quer se trate de uma exploração do menor mediante a divulgação daquele material, em ordem à garantia de um bem jurídico coletivo de proibição e disseminação deste material, proteção esta antecipada pela simples utilização do menor, ainda que o material não tenha sido disseminado.
XIII - A autonomização do crime de pornografia de menor relativamente ao crime de ato sexual com adolescente visa punir sentidos sociais do ilícito distintos: se, por um lado, a análise global do ilícito subjacente ao ato sexual com adolescente permite-nos afirmar que se protege a autodeterminação e liberdade sexual dos adolescentes, por outro lado, a análise global do crime de pornografia de menores, em qualquer uma das modalidades das condutas previstas no tipo, mostra-nos um outro sentido social ilícito subjacente à incriminação — a ilicitude decorrente da exploração sexual do menor quando utilizado em fotografia ou vídeos, imortalizando os atos ou poses cristalizados nas fotografias ou nos vídeos, é uma outra (e acresce à) ilicitude subjacente à realização do ato sexual.
XIV - A punição como crime de ato sexual com adolescente constitui a punição da prática do ato sexual de relevo com o menor (entre os 14 e os 16 anos), e a punição como crime de pornografia de menores constitui a punição do ato de utilização do menor em filme ou fotografia, com perigo de disseminação do material pornográfico por um número (mais ou menos indiferenciado) de pessoas.
XV - A pena única de prisão de 14 anos de prisão é a necessária perante as exigências de prevenção geral e especial, e a adequada à culpa do arguido.
Não disponível.
Processo n.º 283/17.7JDLSB.L1.S1
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Relatório
1. Em primeira instância, o arguido AA, identificado nos autos, e julgado em tribunal coletivo, no Tribunal Judicial da Comarca de ... (Juízo Central Criminal de ..., Juiz 6), no âmbito do processo n.º 283/17.7JDLSB, foi julgado nos seguintes termos:
«a) Absolver o arguido AA da prática, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, n. 1º, 145º, ns. 1º, al. a) e 2º, por referência ao artigo l32°, n. 2°, al, c) todos do Código Penal;
b) Absolver o arguido AA da prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171º, n. 3º, al. b) e 177.º, n. 1.º, al. b) do Código Penal (respeitante à exibição de filmes pornográficos - facto não provado em 88.);
c) Absolver o arguido AA da prática, de dez crimes de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos artigos 26º, 172º, n.º 1, e 177.º, n.º 1, al. b), do Código Penal;
d)Absolver o arguido AA da prática, de um crime de abuso sexual de menores dependentes agravado, p. e p. pelos artigos 26º, 172º, n.º 1, e 177.º, n. 1º, al. b), do Código Penal;
e) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n. 1º, do Código Penal na pena de 2 (dois) meses de prisão;
f) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171º, n. º 1, 177.º, n. 1° al. b) do Código Penal na pena de 2 (dois anos) e 6 (seis) meses de prisão (referente às primeiras ocasiões onde apenas ocorreram actos sexuais de relevo, em n.º não apurado - facto provado sob 9);
g) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171°, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão (respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito oral, em n° não apurado — facto provado sob. 9 parte final);
h) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171°, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão (respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito anal, em n° não apurado — facto provado sob 10.);
l) Condenar o arguido AA pela prática, de dez crimes de actos sexuais com adolescentes agravado, p. e p. pelo artigo 173.°, n.° 1 e 2 e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal (após se proceder à convolação da qualificação jurídica feita na acusação), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes (as vezes em que a menor confirma a ocorrência de cópula e/coito anal - meses de Julho e Setembro de 2017— facto provado sob 11);
j) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de actos sexuais com adolescentes agravado, p. e p. pelo artigo 173.°, n.° 1 e 2 e 177.°, n.° 1°, al, b), do Código Penal (após se proceder à convolação da qualificação jurídica feita na acusação), na pena de 3 (três) anos de prisão (factos provados sob 35— vídeo “2017-08-28-457.rnp4");
k) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171°, n. 3°, al. b) e 177.°, n. 1°, al. b) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão (respeitante à exibição de filmes pornográficos - facto provado sob 13);
1) Condenar o arguido AA pela prática, de cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171°, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão por cada um dos crimes (factos provados sob 32, 33 e 37);
m) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de recurso à prostituição agravado, p. e p. pelos artigos 26°, 174°, ns. 1° e 2°, 177.°, ns. 1°, al. b), 6°, 7' e 8' do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão (facto provado sob 15);
n) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de coacção agravado, p. e p. pelo artigo 154°, n. 1°, 155°, n. 1°, ais. a) e b) do Código Penal, por referência ao artigo 131° do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão (facto provado sob 17);
o) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de pornografia de menores, p. e p. pelos artigos 26°, 176°, n. 50, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão (quanto à detenção de várias imagens de outros menores, que não a aqui ofendida — factos provados sob 21, 26, 27 e 28);
p) Condenar o arguido AA pela prática, de treze crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 26°, 176°, n. 1, al. b), 177.°, ns. 1, al. b), e 7 e 8, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão por cada um dos crimes (factos provados sob 22, 32, 34 ficheiros criados em 04.08.2012, 10.08.2012, 04.11.2012, 35 — 3 vídeos com 10 anos, 37);
q) Condenar o arguido AA pela prática, de quatro crimes de pornografia de menores agravado, p. e p. pelos artigos 26°, 176°, ri. 1°, al. b), 177.°, ns. 1°, al. b), e 6° e 8°, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) de prisão por cada um dos crimes (factos provados sob 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.09.2017; 35- vídeo 2017-08-28-457.rnp4);
r) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164°, n. 1°, al. a), 177.°, ns. 1°, al. b), 6° e 8°, do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados sob 29);
s) Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164°, ri. 1°, ai. a), 177.°, ns. 1°, al. b), 70 e 80, do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados sob 35 - vídeo 2012-11-06-418.mp4);
t) Condenar o arguido AA, operando o cúmulo jurídico das penas parcelares acima fixadas, na PENA ÚNICA DE 16 (DEZASSEIS) ANOS DE PRISÃO.
n) Condenar oficiosamente o arguido AA, nos termos do artigo 82°-A, do Código do Processo Penal, a pagar à ofendida BB, a título de indemnização pelos danos morais, a quantia de € 3.000,00 (três mil euros), acrescida de juros de mora vencidos desde a presente data e vincendos até integral pagamento.»
2. Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 27.06.2019, decidiu:
«4.1. Alterar a redacção do facto provado 11.º, a qual passará a ser a seguinte: "Em datas não concretamente apuradas, mas posteriores a Março de 2017 e até Setembro de 2017, pelo menos em dez ocasiões distintas, a última das quais em Setembro de 2017, o arguido introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da menor, ai tendo feito movimentos ascendentes e descendentes até ejacular, sendo que em algumas destas ocasiões o arguido também introduziu o seu pénis no interior do ânus da menor."
4.2. Alterar a redacção do facto provado 13.°, a qual passará a ser a seguinte: "Numa ocasião, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre Março e Setembro de 2017, o arguido colocou em exibição, no computador existente no quarto de casal, filmes pornográficos, exibindo homens e mulheres a praticarem actos sexuais entre Si, e mostrou-os à menor."
4.3. Julgar como não provado e seguinte: “Por referência ao facto provado 13.º BB não tinha atingido os 14 anos de idade."
4.4. Julgar como não provado os factos 15.º e 44.º.
4.5. Alterar a redacção do facto provado 17.º, a qual passará a ser a seguinte: "Acresce que, após ter praticado, pela primeira vez cópula com BB, e devido a esta não ter sangrado, o arguido acusou a menor de ter mantido relações sexuais com o pai biológico ou o seu irmão, o que muito a entristeceu, por não corresponder à realidade, tendo ainda dito que iria matar o pai da menor".
4.6. Julgar como não provado o seguinte: "Na sequência do facto provado 17.º, o arguido anunciou que mataria a família da menor acaso esta o denunciasse".
4.7. Alterar a redacção do facto provado 22.°, a qual passará a ser a seguinte: "Entre os referidos ficheiros do tipo imagens encontram-se dois, concretamente, "Carved [182] .jped." e "Carved [182] [953927]. jped", que o arguido produziu, onde se visualiza a menor, totalmente desnudada, com as pernas abertas exibindo a vagina e os seios, uma delas em cima de uma cama e outra em cima de um colchão com padrão de flores azuis."
4.8. Julgar como não provado o seguinte: "Por referência ao facto provado 22.º, a menor aparentava idade inferior a 14 anos".
4.9. Alterar a redacção do facto provado 27.º, a qual passará a ser a seguinte: "Em tais ficheiros de imagens visualizam-se pessoas do género feminino e masculino, de idade não determinada, nuas ou semi-nuas, em actos sexuais (sexo oral, anal ou copula), em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais".
4.10. Julgar como não provado o seguinte: "Nos ficheiros de imagens a que se refere o facto provado 27.º, visualizam-se, crianças do género feminino e masculino, aparentando ter idade inferior a 14 anos, em actos sexuais com adultos, menores em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais".
4.11. Alterar a redacção do facto provado 28.º, a qual passará a ser a seguinte: "Visualizam-se ainda nos referidos ficheiros de imagens pessoas do género feminino e masculino, de idade não determinada, nuas ou semi-nuas, em actos sexuais, em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais".
4.12. Julgar como não provado o seguinte: "Nos ficheiros de imagens a que se referem os factos provados 27.º e 28.º, visualizam-se ainda algumas crianças do género feminino e masculino, aparentando ter idade inferior a 16 anos em actos sexuais com adultos; crianças em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais".
4.13. Alterar a redacção do facto provado 32.º, a qual passará a ser a seguinte: "No vídeo com a designação "724.3gp.3gpp", realizado em data não concretamente apurada, mas numa altura em que a menor contava 14 anos, com a duração de 04m54s, localizado no computador de torre, visualiza-se: a menor, sentada num colchão com padrão de flores azuis, a despir as calças e as cuecas; o arguido despido da cintura para baixo com a sua língua acaricia a vagina da menor e os seios; a menor a introduzir o pénis do arguido na boca; o arguido, por diversas vezes a tentar introduzir o seu pénis no ânus da menor, que se retrai, por diversas vezes, fecha com força os olhos e morde a sua mão direita, em notório sofrimento."
4.14. Julgar como não provado o seguinte: " No vídeo referido no facto provado 32.º, a menor aparentava idade inferior a 14 anos de idade."
4.15. Alterar a redacção do facto provado 37.º, a qual passará a ser a seguinte: "O arguido guardava ainda, no referido telemóvel da marca Wiko, na pasta Wiko Getaway_IMEI_356115064583467-13967_DVD_2 — Image-Arquivos-vídeos, 4 (quatro) vídeos que realizou em ocasiões distintas, respeitantes à menor, concretamente, os ficheiros:
- "417471690", com a duração de 00m08s e data de criação de 7 de Março de 2017, onde se visualiza: o arguido sobre a menor, a praticar com esta coito anal. - "444903157", com a duração de 00m08s e data de criação de 4 de Agosto de 2017 onde se visualiza: o arguido sobre a menor, a manter com esta coito anal. - "97136095", com a duração de 00m07s e data de criação de 22 de Janeiro de 2017, onde se visualiza: a menor, nua sobre o corpo do arguido nu, o qual Com a boca acaricia a zona da vagina e ânus da menor e esta introduz o pénis do arguido na boca, onde executa movimentos descendentes e ascendentes. - "1924732179", com a duração de 00m09s e data de criação de 11 de Janeiro de 2017, onde se visualiza: a menor, nua sobre o corpo do arguido nu, o qual com a boca acaricia a zona da vagina e ânus da menor e esta introduz o pénis do arguido na boca, onde executa movimentos descendentes e ascendentes."
4.16. Julgar como não provado o seguinte: "Nos vídeos referidos no facto provado 37.º, a menor aparentava idade inferior a 14 anos de idade."
4.17. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n. 1º, do Código Penal na pena de 2 (dois) meses de prisão.
4.18. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, consumado, previsto e punido pelos artigos 26.º, 171.º, n.º 1 Código Penal na pena de 2 (dois anos) e 3 (três) meses de prisão (referente às primeiras ocasiões onde apenas ocorreram actos sexuais de relevo, em n.º não apurado- facto provado sob 9).
4.19. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26.°, 171.°, nº.s. 1° e 2º do Código Penal, na pena de .5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão (respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito oral, em no não apurado — facto provado sob 9 parte final).
4.20. Condenar o arguido AA pela prática, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171º, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1º, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão (respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito anal, em n° não apurado — facto provado sob 10.).
4.21. Condenar o arguido AA pela prática de dez crimes de actos sexuais com adolescentes agravado, previsto e punido pelos artigos 173.°, n.° 1 e 2 e 177.°, n.º 1, al. b), do Código Penal (após se proceder à convolação da qualificação jurídica feita na acusação), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes (as vezes em que a menor confirma a ocorrência de cópula e/coito anal - meses de Julho e Setembro de 2017 - facto provado sob 11).
4.22. Absolver o arguido AA da prática de um crime de actos sexuais com adolescentes agravado, p. e p. pelo artigo 173.°, n.° 1 e 2 e 177.°, n.° 1°, al. b), do Código Penal (factos provados sob 35 — vídeo "2017-08-28-457.mp4").
4.23. Absolver o arguido AA da prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 260, 171º, n. 3°, al. b) e 177.°, n. 1°, al. b) do Código Penal (respeitante à exibição de filmes pornográficos - facto provado sob 13).
4.24. Absolver o arguido AA da prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171º, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal (factos provados sob 32, 33 e 37).
4.25. Condenar o arguido AA pela prática de quatro crimes de actos sexuais com adolescente agravado, previstos e punidos pelo disposto pelos artigos 173.º, n.ºs 1 e 2, 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, após se proceder à convolação da qualificação jurídica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada crime.
4.26. Absolver o arguido AA da prática de uni crime de recurso à prostituição agravado, previsto e punido pelo disposto nos artigos 26.°, 174.°, nºs. 1° e 2°, 177.°, ns. 1°, al. b), 6°, 7'º e 8º do Código Penal.
4.27. Absolver o arguido AA da prática de um crime de coacção agravado, previsto e punido pelo disposto nos artigos 154.°, n.º 1, 155.°, n.º 1, als. a) e b) do Código Penal, por referência ao artigo 131° do mesmo diploma legal (facto provado sob 17).
4.28. Absolver o arguido AA da prática de um crime de pornografia de menores, previsto e punido pelo disposto nos artigos 26.°, 176.°, n.º 5, do Código Penal (quanto à detenção de várias imagens de outros menores, que não a aqui ofendida — factos provados sob 21, 26, 27 e 28).
4.29. Absolver o arguido AA da prática de treze crimes de pornografia de menores agravado, previstos e punidos pelos artigos 26.°, n.º 1, al. b), 177.°, ns. 1, al. b), e 7 e 8, do Código Penal (factos provados sob 22, 32, 34 ficheiros criados em 04.08.2012, 10.08.2012,04,11,2012-, 35-3 vídeos com 10 anos, 37).
4.30. Absolver o arguido AA da prática de quatro crimes de pornografia de menores agravado, previstos e punidos pelos artigos 26.°, 176.°, n.º 1, al. b), 17.º nºs. 1°, al. b), e 6.° e 8.°, do Código Penal (factos provados sob 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.09.2017; 35- vídeo 2017-08-28-457.mp4);
4.31. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo disposto nos artigos 26.º, 176.°, n.° 1, b), 177.°, n.ºs 1, al. b), 6, 7 e 8 do Código Penal, após se proceder à convolação da qualificação jurídica, na pena de 4 (quatro) anos de prisão (factos provados sob 22, 32, 34 ficheiros criados em 04.08.2012, 10.0,8.2012, 04.11.2012-, 35 — 3 vídeos com 10 anos, 37 e factos provados sob 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.09.2017; 35- vídeo 2017-08-28-457.mp4).
4.32. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164.°, n.º1, al. a), 177.°, nº. 1°, al, b), 6º e 8°, do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados sob 29).
4.33. Absolver o arguido AA da prática, de uni crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164°, n. 1°, al. a), 177.°, ns. 1°, al. b), 7° e 8°, do Código Penal (factos provados sob 35 - vídeo 2012-11-06-418.mp4).
4.34. Condenar o arguido AA, operando o cúmulo jurídico das penas parcelares acima fixadas, na pena única de 14 (catorze) anos de prisão.
4.35. Negar provimento ao recurso quanto ao mais, confirmando a decisão recorrida.»
3. Ainda inconformado, o arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo nos seguintes termos:
«A
I
O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiu:
“Absolver o arguido AA da prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171º, n.º1 e 2º, e 177º, n.º1, al. b)do Código penal (factos provados sob 32, 33 e 37)”
e
“Condenar o arguido AA pela prática de quatro crimes de actos sexuais com adolescente agravado, previstos e punidos pelo disposto pelos artigos 173º, n.º1 e 2, 177º, n.º1, alínea b) do Código Penal, após se proceder á convolação da qualificação jurídica, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada crime.”
II
A alteração levada a cabo pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, configura, nos termos do artigo 359º do C.P.P. uma alteração substancial dos factos;
III
No caso sub judice para além de uma alteração na matéria de facto dada como provada, resultou, igualmente, a imputação de um crime diverso ao Arguido;
IV
O crime previsto no artigo 171º do Código Penal, pelo qual o Arguido foi condenado em 1ª instância, é diverso do crime previsto no artigo 173º do C.P.P., pelo qual foi condenado pelo Venerando Tribunal da Relação;
V
Pelo que, ao considerar a nova redação dada aos factos e procedendo a uma nova qualificação jurídica e consequente condenação do Arguido com base na nova qualificação jurídica dos mesmos o Tribunal “a quo” cometeu a Nulidade de excesso de pronúncia, nos termos dos artigos 379º, nº1, alínea b) e c) do C.P.P.
VI
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca então sempre teria que se considerar que estávamos perante uma alteração não substancial dos factos nos termos do artigo 358º do C.P.P.
VII
Confrontado com a nova qualificação jurídica dos factos deveria o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa remeter os autos á 1ª instância para ser dada a possibilidade ao Arguido de se defender.
VIII
O Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa padece de Nulidade nos termos dos Artigos 379º, n.º1, alíneas b) e c) do C.P.P.
B
IX
No ponto 3.3 do Acórdão, página 386 de 461 o Tribunal a quo pronuncia-se sobre a questão suscitada pelo Recorrente de que o mesmo não poderia, nomeadamente, com referência aos pontos 9 e 10 da matéria de facto dada como provada, ser condenado pela prática de crimes de abuso sexual de crianças agravado, nos termos do artigo 178º, n.º1, alínea b) do Código penal;
X
Assim, com referência ao ponto 9 da matéria de facto dado como provado considera o Venerando Tribunal da Relação que o Arguido não pode ser condenado pela prática de “um crime de abuso sexual de crianças agravado”, contudo posteriormente, vem a condená-lo precisamente pela prática desse crime, página 456 de 461.
Verifica-se, portanto uma situação de Nulidade do Acórdão, por contradição entre a fundamentação e a decisão.
C
XI
Defendeu o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, página 382 de 461:
“Admitir a figura do crime de trato sucessivo nos casos de crimes contra a autodeterminação sexual seria, de alguma forma, contornar a proibição constante do referido artigo 30º, n.º3 do Código penal, sendo patente que o legislador claramente quis afastar a possibilidade da existência de um só crime.”
XII
O Recorrente, sempre com o devido respeito não pode naturalmente concordar com a posição assumida pela 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, e isto porque a mesma 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, num Acórdão muito recente assumiu exatamente posição diversa daquela que assumiu para o aqui Recorrente (processo n.º 6/17.0JDLSB.L1, que foi julgado na mesma Secção, e em que foi Relator o Senhor Desembargador Dr. Almeida Cabral, Acórdão de 02/05/2019, disponível em www.dgsi.pt).
XIII
No caso sub judice há uma unidade de resolução criminosa em relação aos factos que, de um modo homogéneo, ocorreram desde os 9, 10 anos da menor e que apenas terminaram quando o próprio Arguido Recorrente contou o que se passava à mãe da menor.
XIV
Assim, no caso sub judice, deveria o Arguido ter sido condenado na prática de um único crime por trato sucessivo, quer quanto aos crimes de Abuso Sexual de Crianças quer Quanto aos Crimes de actos Sexuais com Adolescente, porque estamos, claramente perante uma única resolução criminosa;
D
XV
No ponto 10º da matéria de facto dado como provado a referência a “uma frequência quase diária” afigura-se à defesa matéria conclusiva.
XVI
Tendo sido dado como provado o referido facto foi o Recorrente condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171º, ns. 1º e 2º, e 177.º, n. 1º, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão.
XVII
A Lei n.º 103/2015 que procedeu à alteração do Artigo 177º, n.º1, alínea b), do Código Penal apenas entrou em vigor, nos termos do artigo 10º do mesmo diploma legal, em 24 de setembro de 2015.
XVIII
No caso sub judice o Recorrente nunca poderia ter sido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo artigo 171º, n.º1 e 177º, n.º1, alínea b), ambos do Código Penal porquanto à data da prática dos factos, a agravação da pena aplicada pelo Tribunal a quo não existia;
XIX
Assim, ao condenar o Recorrente pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo artigo 171º, n.º1 e 177º, n.º1, alínea b), ambos do Código Penal, com referência ao ponto 10 da matéria de facto dada como provada, o Tribunal a quo violou as referidas disposições legais e, ainda o artigo 2º do Código penal.
E
XX
Foi o Arguido condenado pelo Tribunal de 1ª Instância, e conformado pelo Tribunal da Relação:
pela prática, de um crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164º, n. 1º, al. a), 177.º, ns. 1º, al. b), 6º e 8º, do Código Penal, a pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados sob 29);
contudo, entende a defesa que não se encontram demonstrados os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de violação, p. e p. pelo artigo 164º do C. P.
XXI
Ora, salvo o devido respeito por opinião diversa, entende a defesa que não existe violência do Arguido com o intuito de “… se destinar a vencer a oposição da vítima…”
XXII
Conforme se decidiu no Acórdão acima citado, processo n.º 476/09.0PBBGC.P1, de 13/04/2011:
“O agente só comete o crime se, na concretização da execução do acto sexual, ainda que tentado, se debater com a pessoa da vítima, de forma a poder-se falar em “violência”.”
Contudo, mesmo que assim não se entenda, o que não se concede e por mero dever de patrocínio se coloca, ainda diremos o seguinte:
XXIII
O ponto 29 da matéria de facto tem como objeto um vídeo gravado em março de 2017, cujos factos se encontram, igualmente, considerados no ponto 11 e na condenação do arguido pela prática de dez crimes de actos sexuais com adolescentes.
XXIV
A considerar que se verificam os elementos objetivos e subjetivos do tipo do crime de violação, sempre estará o mesmo em concurso aparente com um dos crimes de ato sexual com adolescente, pelos quais o Arguido foi condenado;
F
XXV
Foi o Arguido condenado pelo venerando Tribunal da Relação de Lisboa pela prática de um crime de Pornografia de menores agravado (factos provados sob, 22, 32, 34 - ficheiros criados em 04.08.2012, 10.08.2012, 04.11.2012, 35 – 3 vídeos com 10 anos, 37 e factos provados sob 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.09.2017, 35 – vídeo 3017-08-28.457.mp4), numa pena de 4 (quatro) anos de prisão.
XXVI
Entende a defesa que entre este crime e o crime de abuso sexual de crianças, artigo 171º do C.P., ou acto sexual com adolescente, artigo 173º do C.P., existe um concurso aparente de normas, estão numa relação consunção (impura) com o crime de pornografia de menores;
XXVII
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código penal, Universidade Católica Editora, nota 7, pág.487 e 488:
“A utilização do menor de 14 anos em espetáculo pornográfico que envolve a prática pelo menor de actos sexuais de relevo é punível pelo n.º1 ou até pelo n.º2 do artigo 171º, consoante o tipo de acto sexual praticado durante o espetáculo pornográfico. Com efeito, não se compreenderia que o agente que leva o menor a praticar acto sexual de relevo em espetáculo pornográfico fosse beneficiado pela circunstância (agravante) de o acto ser presenciado por espectadores. Trata-se um caso de consunção (impura) do crime de abuso sexual de criança pelo crime de pornografia de menores, que deve ser punível pela moldura mais grave do crime de abuso sexual de criança.”
XXVIII
As fotografias e filmes apreendidos ao Arguido de onde resultam os actos de cariz sexual, serviram, inclusive, como resulta do Acórdão em crise, como prova dos crimes de abuso cometidos.
XXIX
Ao decidir como decidiu violou o Tribunal a quo os artigos 26º, 176º, n. 1, al. b), 177.º, ns. 1, al. b), e 7 e 8, do Código Penal, devendo, em consequência ser o Arguido absolvido
G
XXX
O Tribunal de primeira instância condenou o Recorrente: “pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n. 1º, do Código Penal a pena de 2 (dois) meses de prisão;”
XXXI
Deveria ter sido aplicada ao Recorrente uma pena de multa e não uma pena de dois meses de prisão, ao condenar o Arguido numa pena de prisão pela prática do crime de ofensas á integridade física simples violou o Tribunal a quo os artigos 143º, n.º1, 43º, n.º1, 47º e 70º do Código penal;
H
XXXII
O Tribunal a quo graduou as penas aplicadas ao Arguido inquinado pelo sentimento de repulsa pelos típicos de ilícito apreciados e não em função do grau da culpa do arguido na prática desses crimes.
XXXIII
Por outro lado, não analisou nem ponderou convenientemente, conforme estipula o artigo 71º do Código Penal todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente.
XXXIV
Como o próprio Tribunal de 1ª instância reconheceu o Arguido não via a jovem vítima como uma criança mas sim como se de uma verdadeira mulher se tratasse, acusando assim, uma distorção da realidade que não pode militar contra o mesmo, porquanto não depender da sua vontade/discernimento.
XXXV
Importa, ainda ter presente que o Arguido apenas praticou coito anal com a jovem vítima quando a mesma teria 12/13 Anos de idade e cópula a partir dos 14 anos.
XXXVI
Não existem quaisquer relatos ou factos de que o Arguido tenha tentado levar a cabo qualquer ato sexual com outra criança ou jovem, pelo que, não se poderá concluir que exista uma tendência do arguido para a prática dos crimes de natureza sexual;
XXXVII
As penas parcelares aplicadas são manifestamente excessivas, tendo sido violado o artigo 71º do Código Penal.
I
XXXVIII
Por tudo o que acima se encontra exposto, e tendo por pilares de decisão a prevenção geral e especial pretendidos com a aplicação das penas entende a defesa que deveria ser aplicada ao Recorrente, em cúmulo jurídico uma pena de prisão entre os 5 (cinco) e os 8 (oito) anos de prisão.»
4. Ao recurso interposto respondeu a Procuradora-Geral Adjunta da República nos seguintes termos:
« I - Suscita o Recorrente a nulidade do acórdão, quando alterou a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, nomeadamente no que respeita aos art.ºs 32.º e 37.º, já que em seu entender, tal consubstancia uma alteração substancial dos factos nos termos do art.º 359.º n.º 1 b) e c) do CPP e ao proceder à mesma o tribunal recorrido cometeu a nulidade por excesso de pronúncia nos termos do art.º 379.º n.º 1 b) e c) do CPP.
O Tribunal da Relação considerou que face à matéria de facto provada não poderia o recorrente ser condenado pela prática dos 5 crimes de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelos art.ºs 26, 171.º n.º 1 b) do C. Penal, na pena de 7 anos de prisão por cada um dos crimes e alterou a qualificação jurídica já que os factos ilícitos integram a previsão do art.º 173.º do CP ou seja crimes de acto sexual com adolescente.
Nesse desiderato, absolveu o arguido da prática de cinco crimes de abuso sexual de criança, agravado, p. e p. pelos art.ºs 26.º, 171.º n.º 1 e 2 e 177.º n.º 1 b) do C. Penal e condenou-o o arguido pela prática de 4 crimes de actos sexuais com adolescente agravado p e p. pelo disposto nos art.ºs 173.º n.º 1 e 2, 177.º n.º 1 b) do C.Penal, após proceder à convolação da qualificação jurídica na pena de 2 anos e 6 meses por cada crime.
Afigura-se que a imputação de crime diverso (e mais favorável ao arguido) decorrente apenas de um enquadramento temporal previsto no art.º 11 dos factos provados (factor que levou a que se procedesse à alteração da qualificação jurídica para 4 crimes sexuais com adolescentes agravado em vez de crimes de abuso sexual de crianças) não configura alteração substancial dos factos, não pondo em causa uma modificação da estratégia da defesa, não padecendo o douto acórdão recorrido de nulidade por excesso de pronúncia.
II - Sustenta também o Recorrente a nulidade do acórdão por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão a que alude o art.º 410.º n.º 2 b) do C.P. Penal.
Isto porque segundo o Recorrente, o Acórdão com referência ao ponto 9 da matéria de facto dada como provada, considera que o arguido não pode ser condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado e posteriormente vem a condená-lo precisamente pela prática desse crime.
Afigura-se que se patenteia no texto da decisão recorrida uma contradição, como refere o Recorrente.
Com efeito, no que concerne à parte final do facto provado em 9, atenta a data da sua prática - antes da entrada em vigor da Lei 103/2015 de 24/8, tal consubstancia um crime de abuso sexual de crianças consumado e não agravado p. e p pelos art.ºs 26.º, 171.º n.º 1 e 2 do C. Penal, como aliás expressamente refere o Acórdão recorrido a fls 1291: "todos os factos que integram o ponto 9.º (e que conduziram à condenação do arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado consumado previsto e punido pelos art.ºs 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º n.º 1 b) do C. Penal na pena de 5 anos e 6 meses de prisão) ocorreram antes da entrada em vigor desse diploma".
E mais adiante conclui o douto aresto recorrido: "Nestes termos e como resulta também da posição do Senhor procurador assiste razão ao recorrente no que se refere aos referidos dois crimes, devendo a punição ser efectuada por reporte à prática de um crime de abuso sexual de criança consumado, p. e p pelos art.ºs 26.º e 171.º, n.º 1 do C. Penal por referência às situações em que ocorreram actos sexuais de relevo, em concurso real com um crime de abuso sexual de criança consumado, p. e p. pelos art.ºs 26.º e 171.º n.ºs 1 e 2 do C. Penal…”.
III - Pugna ainda o Recorrente pela consubstanciação de um único crime por trato sucessivo, quer quanto aos crimes de abuso sexual de crianças quer quanto aos crimes de actos sexuais com adolescentes por se estar perante uma única relação criminosa.
O douto acórdão recorrido assim não entendeu, afigurando-se-nos que se está perante um concurso real de crimes e, como já se decidiu nestes autos é de afastar a figura do trato sucessivo porque o tribunal não sentiu dificuldade nem ela existe, em determinar o número de actos praticados pelo arguido, integradores dos ilícitos penais.
Como se refere no Acórdão do STJ de 6/4/2016 no processo n.º 19715.7JAPDL.S1 em que foi relator o Senhor Juiz Conselheiro Santos Cabral (disponível em www.dgsi.pt) cuja fundamentação jurídica o Ministério Público (na resposta ao recurso de apelação do arguido) subscreveu, refere que "(...mesmo existindo uma unidade de resolução, a mesma não concede automaticamente a configuração de crime de trato sucessivo, pressupondo a afinidade desta figura com a do crime habitual, pois que somente a estrutura do respectivo tipo incriminador há-se supor a reiteração. Consequentemente, em face de certos tipos de crime como os imputados no caso vertente não nos encontramos perante uma "multiplicidade de actos semelhantes" realizados de forma reiterada sob o denominador duma unidade resolutiva pois que cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo numa policromia de contextos separados por um hiato temporal e comandadas por uma diversa resoluções, traduzindo-se cada uma numa autónoma lesão do bem jurídico protegido".
E mais adiante o douto aresto refere: "Se o resultado prático pretendido pelo legislador foi a supressão da benesse do crime continuado em caso de condutas contra bens eminentemente pessoais, também "é inadmissível a punição dos crimes contra bens eminentemente pessoais como um único crime de trato sucessivo" ficcionando o julgador um dolo inicial que engloba todas as acções. Tal ficção constituiria uma fraude ao propósito do legislador".
IV - O recorrente põe também em causa a qualificação jurídica dos ilícitos, no que respeita à agravação dos crimes sexuais, alegando que a Lei n.º 103/2015 que procedeu à alteração do art.º 177.º n.º 1 b) do C. Penal apenas entrou em vigor em 24 de Setembro de 2015 e que a jovem ofendida nasceu em 00 de ... de 0000 pelo que completou os 13 anos em 29/1/2015 portanto em data anterior à entrada em vigor do normativo legal, pelo que atento o art.º 2.º do C.Penal nunca poderia ter sido condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelo art.º 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 b) ambos do C. Penal, porque à data da prática dos factos a agravação da pena aplicada pelo tribunal não existia.
Contudo, embora não conste específicamente da matéria provada que algum dos factos do ponto 10 ocorreu depois de 24 de Setembro de 2015 o tribunal concluiu que : "estes factos ocorreram em 2014 e 2015 "em número de vezes não concretamente aputado mas com uma frequência quase diária". daqui decorre que mesmo tendo alguns desses factos ocorrido antes da entrada em vigor da lei n.º 103/2015 de 24/8 é seguro dada a cadência quase diária que outros aconteceram após essa entrada em vigor".
Afigura-se deste modo que atenta a prova bastante da referida cadência, não se pode afirmar como refere o recorrente que o Tribunal assentou a convicção "na presunção da aparência" quando relativamente aos factos assentes no ponto 10 enquadrou os factos na prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado p. e p. pelo art.º 171.º n.º 1 e 177.º n.º 1 b) ambos do C.Penal.
V - Sustenta ainda o Recorrente que não se encontram demonstrados os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violação p. e p. pelo art.º 164.º do C. Penal, porquanto não se verifica violência do arguido com o intuito de “…se destinar a vencer oposição da vítima…” e, mesmo que assim se não entenda e se considere que se verificam os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violação, sempre estaria o mesmo em concurso aparente com um dos crimes de acto sexual com adolescente, pelos quais foi condenado (referentes à matéria de facto no ponto 29, que tem como objecto um vídeo gravado em Março de 2017, e no ponto 11 e na condenação do arguido pela prática de dez crimes de actos sexuais com adolescentes).
Nesta matéria, afigura-se que o Recorrente na realidade o que pretende é que o tribunal sindique a matéria de facto em que se alicerçaram as instâncias para a qualificação jurídica do crime de violação e determinação da medida concreta da pena.
Deste modo estando o recurso de revista restrito à matéria de direito, tal implica a rejeição do recurso quanto a esta matéria.
Assim não se entendendo, importa dizer que o douto Acórdão enquadrou adequadamente os factos, que fundamentou justamente na visualização do vídeo a que se refere o facto 29, cujos factos descreveu reveladores de que a menor se opôs, que o arguido usou a violência física (cfr. pág. 420, fls 1319, aqui dada por reproduzida para todos os efeitos).
Concluindo o Aresto que “mesmo tratando-se de adultos, o que não era o caso, este é um crime contra a liberdade sexual, o que pressupõe que cada pessoa (adulto) tem o direito de se determinar em matéria sexual” e que “dúvidas não subsistem de que com a sua conduta, o arguido preencheu o tipo legal previsto no n.º 1 do art.º 164.º do C. Penal, tal como conclui o tribunal recorrido”.
VI - Discorda ainda o recorrente da condenação em pena de prisão de dois meses pela prática do crime de ofensas à integridade física, pugnando pela aplicação de uma pena de multa.
Atenta a fundamentação do Acórdão recorrido a este respeito, afigura-se que o mesmo também quanto a este aspecto não merece censura.
VII - Refere ainda o Recorrente que entre o crime de pornografia de menores agravado a que foi condenado, na pena de 4 anos de prisão e o crime de abuso sexual de crianças previsto no art.º 171.º do C. Penal, ou acto sexual com adolescente previsto no art.º 173.º do C. Penal, existe um concurso aparente de normas, tratando-se de um caso de consumpção (impura) do crime de abuso sexual de criança pelo crime de pornografia de menores, que deve ser punido pela moldura mais grave do crime de abuso sexual de criança.
Salientamos aqui o que foi dito já pelo Ministério Público na 1.ª instância na douta resposta ao recurso do arguido: “embora esteja em causa a protecção do mesmo bem jurídico, existem duas condutas totalmente autónomas do agente, uma traduzida no abuso sexual da criança/acto sexual com adolescente; e outra na recolha de imagens da menor na prática desse acto em suporte próprio existindo claramente um “quid” do agente relativamente á prática do acto sexual.
Ou seja embora a prática de qualquer acto sexual esteja integrado no tipo de crime de pornografia de menores, este representa algo distinto daquele, podendo atingir a autodeterminação sexual dos menores de forma menos grave do que a obtida através da prática do acto sexual, necessariamente de carácter físico, o que se traduz na diferença da gravidade das respectivas molduras penais abstractas máximas.
Aliás a génese da protecção penal instituída no art.º 176.º do C. Penal tem como fundamento não só a protecção dos menores que são utilizados, mas igualmente a desmotivação dos consumidores de pornografia de índole pedófila.
Por essa via, entende-se que, pese embora se trate do mesmo bem jurídico, a diversidade de condutas, significando uma humilhação adicional para a menor na sua autodeterminação sexual, justifica a existência de um concurso efectivo de crimes nestas situações”.
VIII - Em conclusão:
- Afigura-se que quanto à matéria respeitante ao crime de violação (referida em V) não deve conhecer-se do recurso.
- A factualidade assente suporta de forma bastante a qualificação jurídica da conduta do recorrente efectuada pelo douto acórdão recorrido, à excepção da contradição entre os fundamentos e a decisão, assinalada em II, quanto ao crime respeitante ao ponto 9 da matéria de facto dada como provada, que é de abuso sexual consumado e não agravado.
- À excepção do referido crime relativamente ao qual se verifica haver contradição (v. VIII), o acórdão recorrido merece concordância quanto ao quantum das penas parcelares aplicadas e, quanto à medida da pena conjunta teve em consideração os critérios enunciados no art.º 71.º e 77.ºdo C. Penal, deverá no entanto reflectir a qualificação do referido crime de abuso sexual não agravado. (v. VIII).»
5. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta apresentou o seguinte Parecer:
«1. Nada obsta ao conhecimento do recurso interposto pelo arguido AA.
2. Acompanham-se genericamente os fundamentos aduzidos na resposta apresentada pela Magistrada do MºPº junto do TRL, a fls. 1408 dos autos, relativamente aos quais nada se tem a acrescentar.»
6. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo foi presente à conferência para decisão.
II
Fundamentação
A. Matéria de facto provada
Matéria de facto dada como provada e como não provada (com inclusão das alterações decorrentes do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa):
« II. 1.1. - Factos Provados:
- Da acusação:
1 - O arguido coabitou cerca de 10 anos, em condições análogas às dos cônjuges com CC, tendo o casal fixado o domicílio comum na Rua ..., n. 0, 0, em ..., área desta comarca.
2 - Com o casal sempre residiu a menor BB, nascida a 00.00.0000, fruto de um relacionamento anterior de CC.
3 - BB é uma criança frágil, padecendo de epilepsia e de um ligeiro défice cognitivo que lhe provoca dificuldades na aprendizagem e no modo de se exprimir verbalmente, tendo frequentado sempre o ensino especial, sendo seguida no Hospital ..., em consulta de desenvolvimento.
4 - A menor BB é uma jovem calada, reservada, tímida, dócil e submissa, com poucas capacidades de defesa e de resistência.
5 - No decurso do mês de Setembro de 2017, no decorrer de uma discussão, devido ao facto da menor BB ter facultado o seu horário escolar à sua madrinha, o arguido desferiu três "carolos" com força na cabeça da menor, causando-lhe dores na zona atingida.
6 - Nessa sequência, o arguido acusou a menor de já não ser virgem, pelo que esta disse ao arguido para contar à sua mãe o motivo pelo qual já não era virgem, sendo que nessa altura, o arguido acabou por revelar à progenitora da menor, sua companheira na altura, que já abusava sexualmente da BB desde os 9 anos de idade desta.
7 - O arguido, em número de vezes não concretamente apurado, em várias ocasiões e dias distintos, com uma regularidade quase diária, ao longo dos últimos 6/7 anos, pelo menos desde o ano de 2011, sujeitou a menor BB à prática de actos sexuais de revelo, concretamente, toque e apalpação dos seios e beijos na boca e em outras partes do corpo, manipulação vaginal, coito oral, coito anal e cópula.
8 - Tais actos sexuais ocorreram no domicílio comum, no quarto do casal, no quarto da menor, e no interior de uma arrecadação comum do prédio, onde se localiza a residência da família, aproveitando o arguido os muitos momentos em que se encontrava sozinho em casa com a menor, ou então durante a noite, quando a mãe de BB, sua companheira, dormia no quarto ao lado.
9 - Inicialmente, quando BB tinha 9/10/11 anos de idade, tais actos consistiram em toques e apalpação dos seios, beijos na boca e em outras partes do corpo, manipulação da vagina e ânus com os dedos e o pénis do arguido, e posteriormente evoluíram para sexo oral mútuo.
10 - Por volta dos 12/13 anos de idade de BB, o arguido, por diversas vezes, em número não concretamente apurado, com uma frequência quase diária, introduziu o seu pénis erecto no interior do ânus da menor, o que lhe provocou dor sempre que aconteceu.
11 - Em datas não concretamente apuradas, mas posteriores a Março de 2017 e até Setembro de 2017, pelo menos em dez ocasiões distintas, a última das quais em Setembro de 2017, o arguido introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da menor, aí tendo feito movimentos ascendentes e descendentes até ejacular, sendo que em algumas destas ocasiões o arguido também introduziu o seu pénis no interior do ânus da menor. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
12 - O arguido quase nunca usou preservativo aquando da prática de coito anal e cópula com a menor BB, o que é visível nos vídeos que foram localizados.
13 - Numa ocasião, em data não concretamente apurada, mas compreendida entre Março e Setembro de 2017, o arguido colocou em exibição, no computador existente no quarto de casal, filmes pornográficos, exibindo homens e mulheres a praticarem actos sexuais entre si, e mostrou-os à menor. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
14 - Em algumas das ocasiões em que o arguido manteve relações sexuais com BB filmou os actos sexuais praticados e fotografou a menor desnudada e em poses pornográficas, não ignorando que não o podia fazer, em circunstância alguma.
15 – [facto dado como não provado pelo acórdão recorrido]
16 - A menor BB nunca contou a ninguém o que o arguido lhe fazia, por sentir medo deste e por ter medo que a sua mãe não acreditasse em si.
17 - Acresce que, após ter praticado, pela primeira vez cópula com BB, e devido a esta não ter sangrado, o arguido acusou a menor de ter mantido relações sexuais com o pai biológico ou o seu irmão, o que muito a entristeceu, por não corresponder à realidade, tendo ainda dito que iria matar o pai da menor. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
18 - No dia 25 de Outubro de 2017, pelas 15h00m, o arguido detinha no interior da sua residência, sita na Rua …, n. 0, 0 em …, área desta comarca:
- Um computador de torre, linha branca (sem marca), com o disco rígido instalado da marca Western Digital Caviar Blue 320GB, com o número de série WCAV2CC47303; em razoável estado de conservação;
- Um computador portátil da marca TOSHIBA, Modelo Satellite A200-1C3, com o número de série 97356859K, sem bateria e com cabo de alimentação, em razoável estado de conservação;
- Um telemóvel da marca NOKIA N8-00, com o IMEI 357398047063604, sem cartão SIM associado ou cartão de memória, e;
- Um telemóvel da marca WIKO, modelo GETAWAY, com o IMEI356115064583467, e cartão SIM com o número 900000008, bem como com cartão microSD, onde foram encontradas várias fotografias da menor BB desnudada, em poses pornográficas, e vários filmes de natureza pornográfica, em que o arguido filmou algumas das práticas sexuais que mantinha com a menor.
19 - No interior do aludido computador de torre encontra-se alojado, no directório "C:\Windows", o sistema operativo "Windows 7 Ultimate" - instalado a 25/09/2016, e figura proprietário registado "…".
20 - O nome do referido computador é "SUPERCELL80", e o sistema operativo tem configurado e activo o utilizador identificado como "…", cujo perfil se encontra localizado no directório "C:\Users\Utilizador", detendo palavra-chave e último acesso a 25.10:2017.
21 - No interior deste computador de torre, o arguido guardava 23 (vinte e três) imagens, em formato "JPEG image" (.jpg), ficheiros do tipo imagens de teor de abuso sexual de menores, e 24 (vinte e quatro) imagens "thumbnails" (versão reduzida de imagem, utilizada para tornar mais fácil o procedimento de a procurar e reconhecer), bem como 1 (um) ficheiro de vídeo, de teor de abuso sexual de menores.
22 - Entre os referidos ficheiros do tipo imagens encontram-se dois, concretamente, "Carved [182].jped." e "Carved [182] [953927].jped", que o arguido produziu, onde se visualiza a menor, totalmente desnudada, com as pernas abertas exibindo a vagina e os seios, uma delas em cima de uma cama e outra em cima de um colchão com padrão de flores azuis. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
23 - Nestas duas imagens o arguido fotografou a menor, em datas não concretamente apuradas, em ocasiões e locais distintos.
24 - No computador portátil da marca TOSHIBA, encontra-se acomodado, no directório "C:\ Windows", o sistema operativo "Windows 7 Ultimate" -instalado a 21/08/2016, e figura proprietário registado "…".
25 - O nome do referido computador é "…-PC", e o sistema operativo tem configurado e activo o utilizador identificado como "…", cujo perfil se encontra localizado no directório "C:\Users\...", detendo palavra-chave e último acesso a 25.10.2017.
26 - No interior do computador portátil da marca TOSHIBA o arguido guardava 15 (quinze) imagens, em formato "JPEG image" (.jpg)/ ficheiros do tipo imagens de teor de abuso sexual de menores, e 15 (quinze) imagens "thumbnails" (versão reduzida de imagem, utilizada para tornar mais fácil o procedimento de a procurar e reconhecer), bem como 1 (um) ficheiro de vídeo, de teor de abuso sexual de menores.
27 - Em tais ficheiros de imagens visualizam-se pessoas do género feminino e masculino, de idade não determinada, nuas ou semi-nuas, em actos sexuais (sexo oral, anal ou cópula), em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
28 - Visualizam-se ainda nos referidos ficheiros de imagens pessoas género feminino e masculino, de idade não determinada, nuas ou semi-nuas, em actos sexuais, em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
29 - Num vídeo que o arguido gravou em Março de 2017, com a designação "VID_20170302_201212.3gp.3gpp", localizado no computador da marca TOSHIBA, com a duração de 10m50s, visualiza-se: o arguido a pôr o equipamento a gravar, a menor, na data com 15 anos de idade, desnudada em cima da cama existente no quarto de casal, o arguido com a boca a chupar os seis da menor, pedindo a menor que não o faça porque lhe dói; o arguido a acariciar com a língua a vagina da menor e a chupá-la, pedindo a menor ao arguido "não estiques isso"; o arguido, com a mão, a apertar com força os seios da menor, que lhe pede para não o fazer, por a magoar, e a introduzir o pénis erecto no interior do ânus da menor que se retrai por diversas vezes, e diz: "isso dói"; "ai … Pára, Pára, Pára,"; "ai o meu cu", suplicas que o arguido não atendeu aí tendo feito movimentos ascendentes e descentes até ejacular, em tudo valendo-se da sua força física para forçar a menor a suportar, contra a vontade desta, os descritos actos.
30 - Neste vídeo, visualiza-se ainda o arguido a fazer comentários para a menor e para a câmara sobre os actos sexuais em curso, nas quais não ignora o sofrimento que está a infligir na menor, tais como: - «Estás a deixar a grama crescer ou quê; Libera lá essa cona»; - «Vou pôr no Youtube e ponho "Cabra virgem não quer perder a virgindade"»; - «Para as tuas colegas verem que tu não tens essa cona liberada ainda»; - «Estou a ir ao cu, mas é cu só, esta gaja não quer cona»; «Já viste o sofrimento que tu levas neste cu? Se fosse na cona só te doía uma vez» «ele tá metido todo no teu cuzinho»; «bela foda aqui no cu, caralho» (sic).
31 - No mesmo vídeo, o arguido diz para a menor que ela é "parvinha", pois as amigas dela já não devem ser virgens, referindo-se ao facto de querer penetrá-la na vagina e a menor recusar. A menor diz-lhe que não e ele pergunta-lhe porque é que é só aos 18 anos, se é por ser a idade adulta, pedindo de seguida à menor "Vá lá, libera lá essa cona" (sic).
32 - No vídeo com a designação "724.3gp.3gpp", realizado em data não concretamente apurada, mas numa altura em que a menor contava 14 anos, com a duração de 04m54s, localizado no computador de torre, visualiza-se: a menor sentada num colchão com padrão de flores azuis, a despir as calças e as cuecas; o arguido despido da cintura para baixo com a sua língua acaricia a vagina da menor e os seios; a menor a introduzir o pénis do arguido na boca; o arguido, por diversas vezes a tentar introduzir o seu pénis no ânus da menor, que se retrai, por diversas vezes, fecha com força os olhos e morde a sua mão direita, em notório sofrimento. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido].
33 - Mais se visualiza neste vídeo, o arguido, após ver a descrita reacção da menor a dizer: "então?", não cessando o seu comportamento, tendo o arguido feito vários movimentos descendentes e ascendentes dentro do ânus da menor, até ejacular, e dito ainda "tá a levar no cu, caralho".
34 - No telemóvel da marca NOKIA, o arguido guardava 44 (quarenta e quatro) imagens, em formato "JPEG image" (.jpg)/ respeitantes à menor em poses desnudadas, exibindo total ou parcialmente o corpo nu, entre elas:
- os ficheiros: "2012-08-04-408.jpg";
"2012-08-04-409.jpg";
"2012-08-04-410.jpg";
"2012-08-04-411.jpg";
"CarvedJRA W_0000000056E99276.JPG";
"CarvedJRAW_0000000057079276.JPG";
Q"Carved_RAW_0000000057251276.JPG", criados, pelo arguido, em 04-08-2012, tendo a menor 10 anos de idade;
- os ficheiros:
"2012-08-ll-412.jpg";
"2012-08-ll-413.jpg",
W2012-08-ll-414.jpg",
"Carved_RAW_00000000573D9276.JPG"; "Carved_RAW_0000000057571276.JPG";
"Carved_RAW_00000000576D9276.JPG", criados em 10-08-2012, onde se visualiza a menor nua, de pernas abertas, mostrando a vagina, na data com 10 anos de idade;
- os ficheiros:
"2012-ll-04-415.jpg"
"2012-11.04-416.jpg",
"Carved_RAW_0000000057871276.JPG";
"Carved_RAWJ)000000057A00000";
"Carved_RAW_0000000057â0128A.JPG";
"Carved_RAW_00000000715B142B.JPG", criados em 04.11.2012, onde se visualiza a menor nua a tomar banho, na data com 10 anos de idade;
- os ficheiros:
"2017-08-28-454.jpg"; "2017-08-28-455.jpg", "2017-08-28-456.jpg";
"Carved_RAW_0000000041EF9276.JPG", criados em 28.08.2017, onde se visualiza a menor nua deitada em cima da cama existente no quarto do casal, na data com 15 anos de idade.
- os ficheiros:
- "2017-09-05-458.jpg", "2017-09-05-459.jpg", "2017-09-05-460.jpg", "2017-09-05-461.jpg";"Carved_RAW_0000000043718786.JPG";"Carved_RAW_0000000043774AlB6.JPG"; "Carved_RAW_00000000465A1276.JPG"; "Carved_RAW_00000000468C9F54.JPG"; "Carved_RAW_O0000000468D000O.JPG";''Carved_RAW_00000000468D1276.JPG";"Carved_RAW_0000000046A31276.JPG"; "Carved_RAW_0000000046F6F61276.JPG", criados em 05.09.2017, onde se visualiza a menor nua deitada em cima da cama, de pernas abertas exibindo a vagina, na data com 15 anos de idade.
35 - Ainda no telemóvel da marca Nokia o arguido guardava 4 (quatro) vídeos que realizou, em ocasiões distintas, respeitantes à menor, concretamente, os ficheiros:
- "2012-07-28-440 .mp4", com a duração de 00m08s, onde se visualiza a menor desnudada, na data com 10 anos de idade;
- "2012-08-04-407.mp4", com a duração de 00m03s; onde se visualiza a menor desnudada; na data com 10 anos de idade;
- "2012-11-06-418.mp4", com a duração de 06m49s, datado de 06.11.2012, onde se visualiza: a menor nua, na altura com 10 anos de idade, aparentando ter lágrimas no rosto; o arguido a aproximar-se da menor a dizer "69"; "já sabes como é que é"; o arguido com um dedo a retirar uma lágrima do rosto da menor;
- Visualiza-se ainda no vídeo "2012-11-06-418.mp4", o arguido a lamber a zona do ânus e vagina da menor e a introduzir dedos no interior do ânus da menor; a menor a introduzir o pénis do arguido na boca; o arguido a introduzir o seu pénis no ânus da menor que diz, entre outras, em notório sofrimento, "Háa"; "Ai socorro", "isso faz-me doer"; "isso faz-me doer"; "está-me a doer pára"; "não quero mais" "pára", "pára", sem que o arguido cesse de introduzir o seu pénis no ânus da menor, que morde os cobertores e chora, dizendo o arguido para esta: "Não paro nada, agora que isto está mesmo bom é que eu vou parar"; "aguenta; agenta; agenta"; "se levasses na cona não te doía tanto"; "perde a virgindade"; "vá que é para eu me vir", após o que ejaculou para cima do corpo da menor que grita, e toma uma atitude de repulsa, e o questiona: "qué isso?".
- Ainda neste vídeo é perceptível, pelo atitude do arguido e da menor, que estará mais alguém casa, tendo o arguido forçado a menor a suportar o descrito comportamento, por saber que esta não iria denunciá-lo, por não pretender magoar a sua família.
-"2017-08-28-457.mp4", com a duração de 24m37s, datado de 28.08.2017, no qual visualiza-se: a menor, na data com 15 anos de idade, nua deitada em cima da cama do arguido, o arguido nu a aproximar-se, após ter colocado o equipamento a gravar; a acariciar com a boca a vagina da menor; a dar beijos no corpo da menor; a menor a introduzir o pénis do arguido na boca e a acariciá-lo; o arguido a introduzir o pénis na vagina e no ânus da menor, que morde uma mão, até ejacular para cima do corpo da menor; o arguido, com a boca, a chupar os mamilos da menor.
36 - No telemóvel da marca Wiko o arguido guardava, na Pasta "Wiko Getaway Memory Card_DVD_02 - Mass Storage DevicejVlemory Card - thumbnails", 7 (sete) imagens, em formato "JPEG image" (.jpg), "thumbnails" (versão reduzida de imagem, utilizada para tornar mais fácil o procedimento de a procurar e reconhecer), respeitantes à menor em poses desnudadas, exibindo o corpo nu ou partes deste desnudadas.
37 - O arguido guardava ainda, no referido telemóvel da marca Wiko, na pasta Wiko Getaway_IMEI_356115064583467-13967_DVD_2 - Image- Arquivos- vídeos, 4 (quatro) vídeos que realizou em ocasiões distintas, respeitantes à menor, concretamente, os ficheiros:
- "417471690", com a duração de 00m08s, e data de criação de 7 de Março de 2017, onde se visualiza: o arguido sobre a menor a praticar com esta coito anal.
- "444903157", com a duração de 00m08s e data de criação de 4 de Agosto de 2017 onde se visualiza: o arguido sobre a menor a manter com esta coito anal.
- "97136095", com a duração de 00m07s e data de criação de 22 de Janeiro de 2017 onde se visualiza: a menor, nua sobre o corpo do arguido nu, o qual com a boa acaricia a zona da vagina e ânus da menor e esta introduz o pénis do arguido na boca, onde executa movimentos descendentes e ascendentes.
- "1924732179", com a duração de 00m09s e data de criação de 11 de Janeiro de 2017, onde se visualiza: a menor nua sobre o corpo do arguido nu, o qual com a boa acaricia a zona da vagina e ânus da menor e esta introduz o pénis do arguido na boca, onde executa movimentos descendentes e ascendentes.
38 - Todas as imagens e vídeos localizados na posse do arguido não se encontram manipulados e representam menores reais e a menor BB. [esta última parte “e representam menores reais e a menor BB” por se ter considerado “meramente conclusivo” foi considerado, pelo acórdão recorrido, como devendo ser excluída, pese embora nada se refira quanto a isto no dispositivo][[1]]
39- O arguido conhecia os laços familiares de afinidade que o uniam a BB, sua enteada, filha da sua companheira, bem como a idade da mesma e doenças de que padece, factos que a tornavam particularmente indefesa.
40 - O arguido previu e quis agir do modo acima descrito para satisfazer os seus instintos sexuais, apesar de saber que a sua enteada ficava ao seu cuidado, na ausência da progenitora, e tinha inicialmente apenas 9/10 anos de idade, e que a sua conduta para com esta se foi agravando e perdurou pelo menos durante sete anos, não ignorando que atentava contra o desenvolvimento sexual desta, visto que a sua idade não lhe permitia avaliar o acto sexual, com o que se conformou.
41 - O arguido conhecia a idade da menor e a ascendência que tinha sobre ela, e quis e conseguiu, manter relações sexuais com esta, ciente de que ao actuar da forma supra descrita perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da sua personalidade, designadamente, na esfera sexual e punha em causa o normal e são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual da menor, e que o seu comportamento era contrário aos sentimentos gerais de moral sexual.
42- Acresce que, em pelo menos duas ocasiões, o arguido, forçou a menor a praticar consigo coito anal, contra a vontade desta, tendo BB suplicado ao arguido que parasse, e deu-lhe a conhecer que a estava a magoar, e, não obstante, o arguido agarrou-a e, valendo-se da sua força física e do controlo que sobre a menor tinha, forçou-a, contra a vontade desta, a suportar os supra descritos actos, não atendendo aos pedidos da menor, que lhe chegou a dizer que "não queria" praticar tais actos.
43 - Actuou sempre com intenção de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, pretendendo manter com a menor acto sexual de relevo, coito oral, coito anal e cópula, em algumas ocasiões, contra a vontade da menor.
44 - [facto dado como não provado pelo acórdão recorrido]
45 - Não ignorava o arguido que lhe estava legalmente vedada a possibilidade de fotografar o corpo da menor nua ou semi-nua, exibindo de modo lascivo os seus órgãos sexuais, e filmar a menor a manter consigo relações sexuais, criando deste modo vídeos pornográficos, envolvendo BB, tão só para satisfação dos seus instintos sexuais.
46 - Sabia ainda o arguido que ao mostrar a BB imagens de homens e mulheres a praticarem actos sexuais o fazia contra a vontade da menor, assim a importunando, tão só para satisfazer o seu desejo sexual.
47 - O arguido quis e conseguiu molestar fisicamente BB, bem sabendo que a conduta que levou a efeito contra a menor, atenta a sua idade, contexto habitacional, e enfermidades de que padece, epilepsia e défice cognitivo, era altamente censurável atendendo à idade e capacidade física da mesma e zona corporal que atingiu.
48 - Ao dirigir à menor as expressões acima mencionadas, alusivas a morte, pretendeu ainda o arguido inquietá-la e amedrontá-la para que BB não relatasse a ninguém a descrita conduta, como forma de a coberto do silêncio da mesma, não ser descoberto o seu comportamento, e desta forma a menor não vir a denunciar às autoridades policiais a sua conduta por forma a não ser criminalmente responsabilizado, o que conseguiu, dado que a menor apenas revelou à progenitora o que o arguido lhe fez, durante cerca de sete anos, após o próprio arguido ter dado a conhecer à sua companheira que mantinha relações sexuais com a menor, vindo a ser apresentada denúncia por familiares da menor.
49 - O arguido agiu, em tudo, de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que toda a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
- Provou-se ainda que:
- Dos antecedentes criminais do arguido:
50 - O arguido não tem antecedentes criminais.
- Das condições pessoais do arguido evidenciadas no relatório social:
51 - O arguido é o único filho de um casal de modesta condição socioeconómica, apesar de ter quatro irmãos uterinos.
52 - O seu processo de desenvolvimento decorreu no agregado da avó materna na sequência da separação dos pais quando contava três anos de idade.
53 - Com a sua inserção no agregado da avó na zona da ..., bairro do ..., o contacto com a mãe viria a ser marcado por algum distanciamento geográfico dado que a progenitora manteve residência em ... juntamente com os irmãos mais novos.
54 - A dinâmica relacional existente na altura entre o arguido e a avó materna terá sido marcado por alguma preocupação na transmissão de valores considerados normativos, acção pedagógica por vezes disfuncional com recurso a castigos corporais como forma de imposição de alguma autoridade especialmente em ocasiões de desobediência do arguido.
55 - O arguido ingressou no sistema educativo na idade normal, percurso que viria a interromper, desde logo, alegadamente por conflito físico com colega e consequente sentimento de medo, só retomando os estudos aos dez anos de idade, tendo então frequentado a escola ... na sua zona residencial onde permaneceu até aos dezasseis anos de idade, desistindo da escolaridade após retenção no 7º ano de escolaridade.
56 - Cerca dos dezasseis anos de idade do arguido, a sua avó materna viria a falecer tendo o arguido reintegrado o agregado materno, tendo tido uma adaptação complicada devido a ter estado habituado a uma vivência familiar apenas com a avó, contrariamente ao agregado materno onde também residiam os irmãos, com quem terá mantido pouco contacto ao longo da sua infância e adolescência.
57 - Nos dois primeiros anos de vivência familiar junto da progenitora e irmãos, o arguido terá permanecido inactivo, sem que tenha retomado os estudos, desenvolvendo laços de maior proximidade afectiva com os irmãos.
58 - A primeira experiência laboral do arguido terá sido por volta dos dezoito anos de idade, como auxiliar de armazém na empresa denominada ..., na zona do ..., permanência que viria a prolongar-se ao longo dos anos, tendo ascendido a cargo efectivo nessa empresa, onde se manteve até à data da sua detenção no âmbito dos presentes autos.
59 - No plano afectivo destaca-se em 2003 o falecimento do progenitor, tendo o arguido herdado a habitação, tendo assim abandonado o lar materno para passar a viver sozinho.
60 - O arguido afirma não ter hábitos aditivos, sendo que apenas consumiria, de forma responsável, algumas bebidas alcoólicas quando em contexto de convívio com amigos.
61 - Ocupa os seus tempos livres através do recurso à informática, com relevo para jogos.
62 - No plano afectivo destaca-se o relacionamento com a sua ex-companheira iniciado em 2007, sendo que em Fevereiro de 2008 optaram por viver em união de facto, tendo a companheira e dois filhos passado a residir na habitação do arguido.
63 - O filho mais velho da companheira, hoje com dezassete anos de idade terá residido na habitação durante cerca de nove anos, tendo há aproximadamente um ano reintegrado o agregado do pai.
64 - O arguido refere um relacionamento afectivo com a ex-companheira marcado por laços de coesão, mas com algumas desavenças rotineiras entre ambos, que justifica como comum numa vida em casal de vários anos.
65 - O arguido apresenta um discurso maioritariamente centrado na sua pessoa, destacando-se sentimentos de preocupação face às acusações no presente processo e suas implicações no seu futuro.
66 - No actual contexto prisional, o arguido tem evidenciado um comportamento adequado às normas vigentes não havendo registo de situação anómala, ocupando o tempo na sua cela ou no convívio com reclusos, não tendo até á data presente beneficiado de acompanhamento psicológico, beneficiando das visitas da irmã.
67 - O arguido é visto pelos seus familiares, amigas e colegas de trabalho como uma pessoa trabalhadora, que gosta de ajudar o amigo, protector, responsável no trabalho e excelente trabalhador, cumpridor e amigo.
- Dos factos resultantes da perícia médico-legal realizada ao arguido:
68 - O arguido a nível cognitivo-intelectual, evidencia um Quociente de Inteligência Médio Inferior, o que nos remete para suficiente capacidade de organização perceptiva e pensamento lógico-abstracto.
69 - Em relação às características de personalidade do arguido estamos perante um sujeito com necessidade de se apresentar de forma favorável.
70 - Revela baixa capacidade de insight em relação e si e ao nível das relações interpessoais, podendo recorrer à manipulação para satisfação das necessidades pessoais.
71 - O arguido mostra-se insatisfeito, desanimado, pessimista, impulsivo, autocentrado, tenso, hiper vigilante e preocupado.
72 - Sente-se incompreendido e isolado, com medo da rejeição e do futuro, revelando níveis moderados de ansiedade e depressão, com possível ideação suicida.
73 - Com susceptibilidade às exigências e críticas, tende a ser disciplinado e evitante.
74 - Revela baixa auto-estima, insegurança e tende a ver os outros como mais capazes.
75 - Tende a esconder os seus verdadeiros sentimentos, sobretudo os de natureza mais agressiva ou que possam ser abjectos para os outros, pelo que as relações sociais tendem a ser evitadas, sobretudo as de maior profundidade.
76 - Não revela grande preocupação pelas consequências dos seus actos.
77 - Apurou-se a existência de atitudes e crenças disfuncionais, que visam legitimar a violência sexual, atribuindo-o ao comportamento sexual prévio da mulher, bem como atitudes e crenças associadas à legitimação do abuso sexual, que é atribuído à conduta da criança, nomeadamente à sedução infantil.
78 - A vida sexual do arguido tem início num contexto não afectivo, de prostituição, depois manteve relações efémeras, motivadas pelo contacto sexual.
79 - As crenças ou distorções cognitivas aparecem de forma abundante no discurso do arguido.
80 - O arguido recorre sistematicamente à atribuição externa da responsabilidade, atribuindo aos outros a responsabilidade pelos seus comportamentos, pelo que esta situação remete-nos para a não percepção das motivações internas, o que constitui um factor de risco de reincidência.
81 - Revela uma postura autocentrada, bem como uma instrumentalização das relações.
82 - O arguido não apresenta características de psicopatia ou outra perturbação de personalidade, ausência de perturbação mental grave e de problemas associados ao uso de substâncias.
II. 1.2. - Factos Não Provados:
II. 1.2. - Factos Não Provados:
- Da Acusação:
13 – BB não tinha atingido os 14 anos. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
15 - Em números de vezes não concretamente apurado, o arguido entregou a BB a quantia de 5,00 Euros, em troca das relações sexuais que com ela mantinha, no intuito, alcançado, de a aliciar e de a recompensar pelas práticas sexuais a que a sujeitava, conseguindo deste modo, que o seu comportamento se repetisse por inúmeras vezes, devido ao silêncio da ofendida. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
17 – O arguido anunciou que mataria a família da menor acaso esta o denunciasse. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
22 – A menor aparentava idade inferior a 14 anos. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
27 – Nos ficheiros a que se refere o facto provado 27.º visualizam-se crianças do género feminino ou masculino, aparentando ter idade inferior a 14 anos, em actos sexuais com adultos, menores em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
28 – Nos ficheiros e imagens a que se referem os factos 27.º e 28.º, visualizam-se ainda algumas crianças do género feminino e masculino, aparentando ter idade inferior a 16 anos em actos sexuais com adultos, crianças em poses eróticas ou exibição lasciva dos órgãos genitais. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
32 — No vídeo referido no facto provado 32.º, a menor aparentava idade inferior a 14 anos de idade. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
37 – Nos vídeos referidos no facto provado 37.º, a menor aparentava idade inferior a 14 anos de idade. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
44 - Em algumas dessas ocasiões o arguido actuou sobre a menor, a troco de contrapartidas monetárias, indiferente à idade da ofendida, do que estava ciente, e às consequências da sua actuação em relação à menor. [de acordo com a alteração decidida pelo acórdão recorrido]
83- A discussão referida em 5) foi desencadeada pelo arguido.
34- Foi a menor BB que revelou à sua mãe que era vítima de abusos sexuais por parte do arguido.
85 - O arguido desferiu diversas chapadas no rosto e cabeça de BB, causando-lhe dores nas zonas corporais atingidas e apenas cessou com a sua conduta com a intervenção da mãe da menor.
86 - Os factos referidos em 10) ocorreram quando a menor tinha 11 anos.
87 - A -última das ocasiões mencionada em 11. ocorreu especificamente no dia 11 de Setembro de 2017.
88 - Os factos mencionados em 13. ocorreram em duas ocasiões distintas.
89 - Nas circunstâncias mencionadas em 15. o arguido também ofereceu à menor diversos presentes.
90 - A menor BB nunca contou a ninguém o que o arguido lhe fazia por ver que a sua mãe era feliz com o arguido, e por não querer ser ela a causar-lhe um desgosto.»
B. Matéria de direito
1.1. O arguido interpôs o recurso motivando com diversas questões:
a) considera existir nulidade do acórdão recorrido, nos termos do art. 359.º, do Código de Processo Penal (CPP), tendo em conta a alteração substancial dos factos provados 32 e 37 por imputação de crime diverso [pois o crime pelo qual foi condenado em 1.ª instância, nos termos do art. 171.º, do Código Penal (CP), é diverso do crime pelo qual foi condenado no Tribunal da Relação por referência ao art. 173.º, do CP — cf. al. l) do dispositivo do acórdão de 1.ª instância e ponto 4.25 do dispositivo do acórdão recorrido]; conclui que se trata de uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP; mas, mesmo que se entenda tratar-se de uma alteração não substancial dos factos, nos termos do art. 358.º, do CPP, existe, igualmente, uma nulidade, com base no disposto no art. 379.º, n.º 1, als. b) e c), do CPP, referindo que o arguido não foi notificado da alteração da qualificação jurídica;
b) considera existir nulidade do acórdão recorrido por contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP — o acórdão recorrido, relativamente ao facto provado 9 entendeu não estar preenchido o crime de abuso sexual de criança agravado (cf. p. 394 do ac. recorrido), porém no dispositivo (ponto 4.19) condenou por “crime de abuso sexual de crianças agravado”
c) considera que deveria ter sido punido apenas por um crime de abuso sexual de criança de “trato sucessivo” e um crime de ato sexual com adolescente de “trato sucessivo”, uma vez que “há uma unidade de resolução criminosa em relação aos factos”;
d) considera que houve uma agravação errada dos crimes sexuais [pelos quais foi condenado de acordo com o ponto 4.20 do dispositivo do acórdão recorrido, e al. h) do dispositivo de 1.ª instância] uma vez que a Lei n.º 103/2015, que alterou o art. 177.º, do CP, apenas entrou em vigor a 24.09.2015, tendo a menor atingido os 13 anos de idade em 20.01.2015, ou seja, em data anterior à entrada em vigor da nova redação, além de que não terá ficado provado que alguns dos factos tenham ocorrido após 24.09.2015, concluindo que à data dos factos a agravação não existia; e entende que referindo-se na matéria de facto provada (10) a uma “frequência quase diária” se trata de uma “matéria conclusiva”.
e) considera que devia ter sido absolvido do crime de violação (por referência ao facto provado 29 — cf. al. r) e ponto 4.32 dos dispositivos) por considerar que não estão preenchidos os elementos objetivos e os elementos subjetivos do tipo, não só porque o arguido não terá usado de violência com intuito de vencer a oposição da vítima, como não terá proferido ameaça grave, nem terá colocado a vítima inconsciente ou na impossibilidade de resistir; caso assim se não entenda, haverá um concurso aparente de crimes entre este e o crime de ato sexual com adolescente, uma vez que a matéria do facto provado 29 tem por base um vídeo gravado em março de 2017, e os factos de março de 2017 já se encontram considerados no facto provado 11, e na condenação dos 19 crimes de atos sexuais com adolescentes;
f) considera que devia ter sido absolvido do crime de pornografia de menores (cf. ponto 4.31 do dispositivo do ac. recorrido), agravado (por referência aos factos provados 22, 32, 34, ficheiros criados em 04.08.2012, 10.08.2012, 04.11.2012, 35 – 3 vídeos com 10 anos, 37 e factos provados 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.089.2017, 35 – vídeo 3017-08-28.457.mp4), pois “tendo as condutas constantes dos vídeos e fotografias sido já punidas criminalmente, nomeadamente, através da condenação pela prática dos crimes de abuso sexual de crianças e atos sexuais com adolescentes, não pode o arguido ser novamente condenado pela prática de pornografia de menores” (art. 85.º da motivação); alega ainda que o mesmo facto provado 29 foi punido 3 vezes, enquanto crime de abuso sexual de adolescente (nos termos do art. 173.º, do CP), enquanto crime de pornografia de menores (nos termos do art. 176.º, do CP, e enquanto crime de violação agravado (nos termos do art. 1164.º, do CP);
g) entende que a medida da pena concreta aplicada ao crime de violação da integridade física simples devia ter sido uma pena de multa (ponto 4.17. do dispositivo);
h) entende que a medida das penas parcelares foi excessiva, desde logo porque o arguido mostrou arrependimento, e porque não se pode concluir que o arguido tenha uma tendência para a prática de crimes de natureza sexual;
i) e entende que a pena única a aplicar ao arguido devia ser entre os 5 e os 8 anos de prisão.
1.2. Comecemos por analisar em que medida pode haver recurso para este Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação que condenou o arguido por diversos crimes em penas de prisão inferiores a 5 anos de prisão, pese embora tenha modificado a matéria de facto, e tenha alterado a qualificação jurídica de alguns factos, aplicando a final uma pena única superior a 8 anos de prisão.
O arguido foi condenado pela prática de
- um crime de violação da integridade física na pena de prisão de 2 meses, em 1.ª instância [al. e) do dispositivo], tendo sido a pena confirmada no Tribunal da Relação [ponto 4.17 do dispositivo) e sem que tivesse havido alteração da matéria de facto;
- por oito crimes de abuso sexual de crianças agravado nas penas de prisão de 2 anos e 6 meses, 5 anos e 6 meses, e 1 ano de prisão, e três penas de prisão de 7 anos, respetivamente, em 1.ª instância [als. f), g), k) e l) do dispositivo], e no Tribunal da Relação foi mantida a punição como crime de abuso sexual de crianças, mas sem agravação, tendo, pois, diminuído a pena para 2 anos e 3 meses e 5 anos e 3 meses [ponto 4.18 e 4.19 do dispositivo, correspondendo às alíneas f) e g) do dispositivo de 1.ª instância, respetivamente]; foi ainda, no Tribunal da Relação, absolvido de um crime de abuso sexual agravado [o referido na al. k) do dispositivo da decisão de 1.ª instância; ponto 4.23. do dispositivo do acórdão recorrido], e alterada a qualificação de 4 crimes de abuso sexual de crianças agravado [correspondentes à condenação no ponto l) do dispositivo do acórdão de 1.ª instância] para 4 crimes de atos sexuais com adolescente agravados, e punido com pena de prisão de 2 anos e 6 meses (ponto 4.25 do dispositivo do ac. recorrido), não se tendo punido um daqueles cinco crimes de abuso sexual de criança agravado (correspondentes à al. l) do dispositivo de 1.ª instância) por já estar integrado na punição determinada no ponto. 4.21. do dispositivo do acórdão recorrido (correspondente à al. i), da 1.ª instância)
- e ainda por um crime de abuso sexual de criança agravado na pena de prisão de 7 anos, em 1.ª instância [al. h) do dispositivo], e que se manteve na decisão do Tribunal da Relação, sem que tivesse sido alterada a pena (cf. ponto 4.20 do dispositivo);
- por 10 crimes agravados de atos sexuais com adolescente na pena de prisão de 2 anos e 6 meses, por cada um, [al. i) do dispositivo] — o que se manteve no acórdão recorrido (cf. ponto 4.21. do dispositivo do ac. recorrido) — e 1 outro com a pena de 3 anos de prisão [al. j) do dispositivo] e pelo qual foi absolvido pelo Tribunal da Relação (cf. ponto 4.22. do dispositivo);
- por um crime de recurso à prostituição agravado na pena de prisão de 2 anos, em 1.ª instância [al. m) do dispositivo], e pelo qual foi absolvido pelo Tribunal da Relação (cf. ponto 4.26 do dispositivo);
- por um crime de coação agravado, na pena de prisão de 1 ano e oito meses, em 1.ª instância [al. n) do dispositivo], e pelo qual foi absolvido pelo Tribunal da Relação (cf. ponto 4.27 do dispositivo);
- por um crime de pornografia de menores, na pena de prisão de 1 ano, em 1.ª instância [al. o) do dispositivo], e pelo qual foi absolvido pelo Tribunal da Relação (cf. ponto 4.28 do dispositivo); e
- por 17 crimes de pornografia de menores agravado, tendo sido aplicada a pena de prisão de 2 anos e 3 meses, por cada um, a 13 deles, e os restantes 4 crimes foram punidos com a pena de prisão de 1 ano e 6 meses, em 1.ª instância [al. p) e q) do dispositivo], tendo sido requalificados juridicamente num único crime de pornografia de menores agravado, e punido com a pena de 4 anos de prisão (cf. ponto 4.31 do dispositivo do acórdão do Tribunal da Relação)
- e por 2 crimes de violação agravados, um na pena de prisão de 7 anos e 6 meses e outro na pena de prisão de 8 anos e 6 meses, em 1.ª instância [al. r) e s) do dispositivo], tendo sido mantida a condenação pelo crime de violação agravada na pena de prisão de 7 anos e 6 meses, quanto à condenação referida na al. r) do dispositivo do acórdão de 1.ª instância (cf. ponto 4.32 do dispositivo do acórdão recorrido), e tendo sido absolvido do outro crime de violação referido na al. s) do dispositivo do acórdão de 1.ª instância (cf. ponto 4.33. do acórdão recorrido).
Ora, tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que confirmando decisão anterior apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações, relativas a cada crime do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.
Dito de outro modo: apenas é admissível o recurso de uma decisão do Tribunal da Relação relativamente aos crimes aos quais se tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos e não superior a 8 anos quando não haja “dupla conforme”, e de uma decisão da Relação relativamente a todos os crimes cuja pena seja superior 8 anos, ainda que haja “dupla conforme”.
Ora, o arguido foi condenado em diversos crimes com pena de prisão inferior a 5 anos de prisão, pelo que relativamente a estes, por força do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, e ainda que tenha havido alteração da qualificação jurídica, não é admissível o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça.
Ou seja, não é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, sem prejuízo da possibilidade de verificação da existência (ou não) dos pressupostos para que se conclua pela existência de um concurso de crimes, relativamente
- ao crime de violação da integridade física: al. e) e ponto 4.17 dos dispositivos (foi mantida a pena de 2 meses de prisão)
- ao crime de abuso sexual de criança: al. f) e 4.18, dos dispositivos (foi retirada a agravação, diminuída a pena para 2 anos e 3 meses),
- aos 4 crimes de atos sexuais com adolescentes, agravados: al. l) e ponto 4.25 (punidos com pena de prisão de 2 anos e 6 meses, cada um),
- aos 10 crimes agravados de atos sexuais com adolescente: al. i) e ponto 4.21 dos dispositivos (punidos com pena de prisão 2 anos e 6 meses, cada um)
- ao crime de pornografia de menores agravado: als. p) e q) e ponto 4.31 dos dispositivos (punido com pena de prisão de 4 anos de prisão; este crime resulta da requalificação em apenas um crime dos 17 crimes de pornografia de menores pelos quais o arguido tinha sido condenado em 1.ª instância).
O arguido foi ainda condenado em outros dois crimes com uma pena de prisão superior a 5 anos, mas inferiores a 8 anos, mas constituindo uma confirmação da condenação em 1.ª instância, pelo que não é admissível o recurso à luz do disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP.
Ou seja, não é admissível o recurso, por verificação de “dupla conforme”, quanto
- ao crime de abuso sexual de criança agravado cuja condenação se manteve após a prolação do acórdão recorrido com pena de 7 anos de prisão: al. h) e ponto 4.20 dos dispositivos, sem que tivesse havido alteração da matéria de facto (facto provado 10), e
- ao crime de violação agravado cuja condenação se manteve em pena de prisão de 7 anos e 6 meses: al. r) e ponto 4.32 dos dispositivos, sem que tivesse havido alteração da matéria de facto (facto provado 29).
Deve ainda referir-se que não é admissível o recurso dos crimes pelos quais o arguido foi absolvido, isto é, als. j), k), m), n), o) e s) e pontos 4.22., 4.23, 4.26., 4.27, 4.28. e 4.33 dos dispositivos, respetivamente, bem como um dos crimes de abuso sexual punido no âmbito da al. l) do dispositivo da 1.ª instância e que foi integrado na punição referida no ponto 4.21. do dispositivo (que manteve a punição, de pena de prisão de 2 anos e 6 meses, constante da alínea i) do dispositivo).
Assim sendo, e tendo em conta o disposto nos arts. 432.º, nº 1, al. b), 400.º, n.º 1, als. e) f) do CPP, não é admissível o recurso relativamente:
- ao crime de violação da integridade física: ponto 4.17 dos dispositivo,
- ao crime de abuso sexual de criança: ponto 4.18 do dispositivo,
- aos 4 crimes de atos sexuais com adolescentes, agravados: ponto 4.25 dispositivo,
- aos 10 crimes agravados de atos sexuais com adolescente: ponto 4.21 dispositivo,
- ao crime de pornografia de menores agravado: ponto 4.31 dos dispositivo,
- ao crime de abuso sexual de criança agravado: ponto 4.20 do dispositivo, e
- ao crime de violação agravado: ponto 4.32 do dispositivo.
Pelo que, quaisquer questões a estes relativas, bem como quaisquer nulidades arguidas, não serão conhecidas, pois, não sendo admissível o recurso, as nulidades deveriam ter sido invocadas perante o Tribunal que proferiu a decisão, o Tribunal da Relação, nos termos do art. 615.º, n.º 4, do CPC, ex vi art. 4.º, do CPP, e no prazo prazo estabelecido no art. 105.º, n.º 1, do CPP (note-se que o recurso foi interposto a 05.08.2019, tendo o acórdão sido prolatado a 27.07.2019).
De tudo o exposto, é admissível o recurso de todas as questões relativas ao crime de abuso sexual de criança que havia sido punido, como agravado, com a pena de 5 anos e 6 meses, mas que foi requalificado pelo Tribunal da Relação sem agravação, e diminuída a pena para 5 anos e 3 meses (cf. al. g) e ponto 4.19 dos dispositivos), e que corresponde ao facto provado 9, parte final, relativo às primeiras ocasiões, em número não apurado, em que ocorreu coito oral; resta salientar que o facto provado 9 não sofreu qualquer alteração pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Assim sendo, e por referência às questões elencadas no ponto B. 1 deste acórdão (cf. supra), não será conhecida
- a questão a) — por referência ao crime punido com pena de prisão de 2 anos e 6 meses (ponto 4.25 do dispositivo) —,
- a questão d) — por referência ao crime punido com pena de prisão de 7 anos, mantendo integralmente a decisão de 1.ª instância [ponto 4.20 e al. h) do dispositivo] —,
- a questão e) — por referência ao crime punido com pena de prisão de 7 anos e 6 meses, mantendo integralmente a decisão de 1.ª instância [ponto 4.32 e al. r) dos dispositivos], a questão f) — por referência ao crime punido com pena de prisão de 4 anos (ponto 4.31 do dispositivo) —,
- a questão g) — por referência ao crime punido com pena de 2 meses de prisão (ponto 4.17 do dispositivo) —, e
- a questão h) na parte respeitante a todos os crimes,
com exceção daquele por que o arguido foi condenado no ponto 4.19, que será analisada, pelas razões explicada supra.
Será igualmente analisada a questão b) — com referência ao crime por que o arguido é punido nos termos do ponto 4.19 do dispositivo —, bem como a questão i), relativa à medida da pena única a aplicar ao arguido, e consequentemente avaliados os pressupostos de aplicação desta pena única, maxime a ocorrência ou não de um concurso de crimes, pelo que será analisada a questão c), bem como a problemática relativa ao concurso de crimes entre o crime de violação e o crime de ato sexual com adolescente [referido na questão e)], e entre o crime de abuso sexual de adolescente, o de pornografia de menores e o de violação [referido na questão f)].
Apreciemos.
2.1. Relativamente ao crime passível de análise (por admissibilidade de recurso) — isto é, o crime de abuso sexual de criança que segundo o elemento literal do ponto 4.19. do dispositivo do acórdão recorrido, trata-se de um crime agravado — o arguido no seu recurso apenas alega uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP, por o Tribunal da Relação de Lisboa, na fundamentação, ter começado por referir não haver lugar à agravação, mas, contraditoriamente, no dispositivo, refere-se a um crime agravado, pese embora apenas refira as previsões legais dos arts. 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2, todos do CP, sem que tenha feito qualquer referência ao art. 177.º, n.º 1, al. b), do CP [tal como ocorria no dispositivo da al. h) no acórdão de 1.ª instância]. Na verdade, a partir dos arts. 22.º a 26.º da motivação e das conclusões apresentadas — cf. B-IX e X— nada mais refere quanto a este crime por que foi condenado.
De referir que na conclusão B-IX e no art. 26.º da motivação faz ainda alusão ao facto provado 10, punido como crime de abuso sexual agravado (cf. al.h) e ponto 4.20 dos dispositivos), todavia apenas tendo transcrito o dispositivo 4.19 do acórdão recorrido (art. 25.º, da motivação) e tendo apenas referido o facto provado 9 na conclusão B-X, o que se compreende, pois, no acórdão recorrido, apesar de ter ido analisada a questão relativa à agravação (ou não) do crime de abuso sexual de criança agravado refletido no facto provado 10, concluiu-se pela agravação, tal como tinha sido qualificado pela 1.ª instância (cf. p. 395-396 do ac. recorrido).
Ainda que este Supremo Tribunal de Justiça tenha entendido que os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, sejam de conhecimento oficioso e não possam ser alegados em recurso pelo recorrente, cumpre a este Supremo Tribunal de Justiça analisar se, na verdade, existe alguma contradição entre a decisão e a fundamentação.
Vejamos o que fundamentou acórdão recorrido quanto à qualificação do facto provado 9 como crime de abuso sexual de criança agravado, nos termos dos arts. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP:
«O arguido foi condenado, entre outros, pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171.º, n. n. 1, al. b) do Código Penal na pena de 2 (dois anos) e 6 (seis) meses de prisão [referente às primeiras ocasiões onde apenas ocorreram actos sexuais de relevo, em número não apurado- facto provado sob 9].
Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171°, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão [respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito oral, em n° não apurado — facto provado sob 9 parte final].
Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26°, 171°, ns. 1° e 2°, e 177.°, n. 1°, al. b), do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos de prisão [respeitante às primeiras ocasiões em que ocorreu coito anal, em n° não apurado — facto provado sob 10].
Os factos que levaram à condenação foram, pois, os seguintes: (...) [Transcrição dos factos provados 9 e 10]
Pode ler-se no texto do acórdão:
"Provou-se igualmente que o arguido conhecia os laços familiares de afinidade que o uniam a BB, sua enteada, filha da sua companheira, bem como a idade da mesma e doenças de que padece, factos que a tornavam particularmente indefesa.
(...)
Resulta, ainda, demonstrada a relação familiar e de coabitação existente entre o arguido e a menor (o arguido era padrasto da menor e residia na mesma casa com a menor), relação familiar de coabitação que obviamente o arguido não desconhecia, razão pela qual a situação dos autos se integra plenamente na previsão normativa do artigo 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal."
O outro passo do acórdão, a propósito de um alegado "direito de correcção/castigo dos pais ou de quem tenha ao seu cuidado a responsabilidade da direcção e educação dos menores", afirmou-se: "In casu, o arguido não é o pai da menor, nem tão pouco resultou provado que este tenha ao seu cuidado a responsabilidade da direcção e educação da menor BB. Não há qualquer dúvida de que a menor estava confiada para assistência e educação à sua mãe, que era a detentora das responsabilidades parentais.
Na verdade, o arguido apenas partilha a mesma casa com a mãe da menor, com quem vive em união de facto, contudo, não tem qualquer responsabilidade sobre a menor BB."
A menor nasceu em 00 de ... de 0000 [facto provado 2.º e o arguido coabitou com a mãe da menor, com quem esta vivia, em condições análogas às dos cônjuges, cerca de 10 anos [factos provados 1.º e 2.º].
Da articulação da data de nascimento com a idade que tinha na altura da prática dos factos descritos em 9.º e 10.º, decorre que os mesmos aconteceram entre os anos de 2011 a 2013 [facto 9.º] e 2014 a 2015 [facto 10.º].
Invoca o Recorrente que, a Lei n.º 103/2015, de 24.08, entrado em vigor em 24 de Setembro de 2015, procedendo à alteração da redacção da al. b), do n.º 1 do art.° 177.°, do Código Penal, os factos provados 9 e 10 ocorreram em momento anterior à entrada em vigor da referida legislação, pelo que o recorrente nunca poderia ter sido condenado pela prática deste tipo de crime na forma agravada. Veiamos.
Dispõe o art.° 177.°, n.º 1, al. b), do Código Penal, após as alterações introduzidas pela Lei n.º 103/2015, de 24.08, que "As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.".
Antes das referidas alterações, vigorava a redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, a qual estabelecia que "As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 367.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação".
Cotejando as referidas alterações, resulta que a Lei n.º 103/2015, de 24.08 ampliou o âmbito de aplicação da norma, designadamente abrangendo situações, como a dos autos, de coabitação, assim indo ao encontro de novas organizações familiares, as quais passam pela vivência em comum mas já não pelo estabelecimento de vínculos conjugais.
Como se viu, o arguido coabitou com a menor e sua mãe durante 10 anos — até 2017 —, mas nunca casou.
O que vale dizer que não se mostraram estabelecidas relações jurídicas familiares, as quais, como decorre do disposto no artigo 1576.° do Código Civil, sob epígrafe "fontes das relações jurídicas familiares", apenas se constituem através do "casamento, parentesco, afinidade e adopção."
No caso dos autos nenhuma dessas relações se mostrava estabelecida, como resulta do disposto nos artigos 1578.º e 1584.° do Código Civil e também da Lei n.° 7/2001, de 11.05, que adoptou medidas de protecção da união de facto, e na qual nada se regulou a propósito do que ora nos interessa.
Designadamente, não existia urna relação de afinidade, como afirmado no acórdão, uma vez que a afinidade "é o vínculo que liga cada um dos cônjuges aos parentes do outro." - vd. artigo 1584.º do Código Civil.
Tendo estabelecido que a relação entre o arguido e a menor era de coabitação, que não uma relação familiar, mostra-se relevante, para o devido enquadramento jurídico-penal, a alteração operada pela Lei n.º 103/2015, de 24.08.
Na verdade, apenas após a entrada em vigor da nova redacção (...) o crime de abuso sexual de criança consumado passou a ser punível como um crime de abuso sexual de criança agravado. Todos os factos que integram o ponto 9.º [e que conduziram à condenação do arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26º, 171.º, n.º 1, 177.º, n. 1, al. b) do Código Penal na pena de 2 (dois anos) e 6 (seis) meses de prisão e de um crime de abuso sexual de crianças agravado, consumado, previsto e punido pelos artigos 26.º, 171°, ns. 1° e 2º, e 177.°, n. 1º, al. b), do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão] ocorreram antes da entrada em vigor desse diploma.
Dispõe o artigo 2.°, n.º 4, 1.ª parte, do Código Penal que "quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente."
O regime mais favorável ao arguido é, claramente, o existente antes da entrada em vigor da Lei n.º 103/2015, de 24.08 uma vez que, na data da prática dos factos descritos no ponto 9.º, estes eram puníveis como um crime de abuso sexual de criança consumado, previsto e punido pelos artigos 26.° e 171.°, n.° 1, do Código Penal, sendo que, após a entrada em vigor daquele diploma, passaram a ser puníveis como um crime de abuso sexual de criança agravado consumado, previsto e punido pelos artigos 26.°, 171.°, n.° 1, 177.°, n.° 1, al. b) do Código Penal.
Nestes termos, e como resulta também da posição do Senhor Procurador, assiste razão ao Recorrente no que se refere aos referidos dois crimes, devendo a punição ser efectuada por reporte à prática de um crime de abuso sexual de criança consumado, previsto e punido pelos artigos 26.° e 171.°, n.° 1, do Código Penal por referência às situações em que ocorreram actos sexuais de relevo, em concurso real com um crime de abuso sexual de criança consumado, previsto e punido pelos artigos 26.° e 171.°, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, por referência às primeiras ocasiões em que ocorreu coito oral.» (p. 386-394 do ac. recorrido).
Ora, é clara a fundamentação no sentido de o facto provado 9 ser qualificado como crime de abuso sexual de criança sem agravação decorrente da coabitação do agressor e da vítima, porquanto esta agravação apenas foi introduzida no art. 177.º, pela Lei n.º 103/2015, de 24.08, que entrou em vigor a 24.09.2015, e os factos ocorreram em momento anterior: 2011, 2012, 2013 (quando a ofendida tinha 9, 10, 11 anos de idade, sendo que nasceu a 00.00.0000 — cf. facto provado 2). Assim sendo, ao abrigo do disposto no art. 380.º, do CPP, e porque se tratou de um mero lapso aquando da redação do dispositivo (tendo em conta a fundamentação apresentada) devemos corrigir o dispositivo no sentido de punir o arguido por um crime de abuso sexual de criança consumado, nos termos dos arts. 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2 do CP. Na verdade, no presente caso, é clara não só a fundamentação no sentido da não agravação do crime praticado, como não se vislumbra como poderia ser agravado aquele crime com base numa agravação não prevista na lei ao tempo da prática dos factos.
Assim sendo, determina-se que o dispositivo 4.19 seja alterado e passe a ter a seguinte redação: ”4.19 Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de crianças consumado, previsto e punido pelos artigos 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena...” que se vier a aplicar infra.
Para além disto, compulsado o acórdão recorrido, considera-se que inexiste qualquer um dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.
2.2. O recorrente refere ainda que deveria apenas ser punido por um crime de “trato sucessivo” de abuso sexual de menor ou um crime de “trato sucessivo de ato sexual com adolescente. Porque poderia ser relevante para a parte do recurso que é admissível para este Supremo Tribunal de Justiça, cumpre analisar.
Mas, desde logo se deve salientar que alegação idêntica o arguido apresentou no recurso para o Tribunal da Relação, ao que expressamente este Tribunal se referiu no acórdão recorrido (cf. p. 376 e ss). E esclarecemos desde já que consideramos que o Tribunal da Relação tem razão.
Na verdade, não podem todos aqueles atos que autonomamente integram um crime de abuso sexual de criança ser unificados sob aquela outra designação de “crime de trato sucessivo”. É com base na ideia de sucessão de crimes idênticos contra a mesma vítima, e num certo e delimitado período temporal, que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que estamos perante o que vem designando de “crime de trato sucessivo”.
Na realidade, alguma jurisprudência deste Supremo Tribunal partiu da ideia de que, quando ocorresse uma execução repetida ao longo de um período de tempo, se tornava “arbitrária qualquer contagem”, tendo considerado estarmos perante “crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime — apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime — tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido”. E nestes “crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta”.
Para que este “crime prolongado ou de trato sucessivo” existisse, exigia a jurisprudência “uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução»” — “deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma” (transcrições do acórdão do STJ, de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, relator: Cons. Santos Carvalho).
Ou seja, a jurisprudência portuguesa, seguindo as pisadas da jurisprudência alemã que construiu o crime continuado por dificuldade de prova, acabou por unificar, à margem da lei, várias condutas numa única, considerando existir uma “unidade resolutiva” (que abarcaria todas as resoluções parcelares que ocorreram aquando da prática de cada sucessivo ato integrador de um tipo legal de crime), sem que, todavia, houvesse uma diminuição da culpa, mas antes uma agravação da culpa do agente à medida (e na medida em) que a conduta se prolonga no tempo.
Foi esta conduta prolongada, protraída no tempo, que levou à sua designação como crime prolongado, embora a caracterização do crime como prolongado dependa de a conduta legal e tipicamente descrita se poder considerar como sendo uma conduta prolongada — ora, a conduta, por exemplo, do crime de abuso sexual de criança, ainda que este seja repetido inúmeras vezes, está limitada temporalmente; os atos consubstanciadores daquele abuso, isto é, a prática de “acto sexual de relevo” (cf. arts. 171.º e 172.º, ambos do CP) ocorrem num certo período e quando sucessivamente repetidos não constituem um mesmo crime de abuso sexual.
Porém, a ideia de sucessão de condutas que parece querer-se atingir com a designação de “trato sucessivo” implica necessariamente que haja uma sucessão de tipos legais de crime preenchidos e, portanto, segundo a lei, uma punição em sede de concurso de crimes. A unificação de todos os crimes praticados em apenas um crime, quando o tipo legal de crime impõe a punição pela prática de cada ato sexual de relevo, e sem que legalmente esteja prevista qualquer figura legal que permita agregar todos estes crimes, constitui uma punição contra a lei, desde logo por não aplicação do regime do concurso de crimes. Isto é, não podendo unificar-se a prática de todos aqueles atos no crime continuado, previsto no art. 30.º, n.º 2, do CP, por força do disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP, então apenas nos resta aplicar o disposto no art. 30.º, n.º 1, do CP, segundo o qual “[o] número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.” Entender que, tendo sido o mesmo tipo legal de crime preenchido diversas vezes pela conduta do arguido, ainda assim devemos entender como estando apenas perante um único crime sexual, será decidir contra legem.
Além do mais, a designação de “trato sucessivo” constitui uma designação com um significado juridicamente muito preciso e decorrente do Código de Registo Predial (cf. art. 34.º) pretendendo-se documentar o nexo ininterrupto dos titulares da coisa, documentando-se consequentemente a traditio da coisa. Ora, nada disto ocorre no crime sexual, ainda mesmo que executado sucessivamente.
E crime “exaurido” ou “consumido” dá a ideia de que logo no primeiro ato se consuma, tornando irrelevantes os atos sucessivos. Ora, o exaurimento do crime assume importância em todos aqueles casos em que, após a consumação, ocorre a terminação do crime, sendo relevante a desistência da tentativa entre um e outro momento. Mas a prática de um crime sexual seguida da de outros crimes sexuais não impede a consumação de um crime sexual em cada um dos atos.
Porém, o que se pretendeu — tal como se afirma no voto de vencido do Cons. Manuel Braz ao acórdão supra citado, e seguindo Lobo Moutinho[2] —, foi acentuar a reiteração da conduta criminosa — o “crime de trato sucessivo” assim caracterizado corresponde ao crime habitual, ou seja, “aqueles em que a realização do tipo incriminador supõe que o agente pratique determinado comportamento de uma forma reiterada, até ao ponto de ela poder dizer-se habitual”[3].
No entanto, o entendimento de um crime como sendo crime habitual tem necessariamente que decorrer, atento o princípio constitucional da legalidade criminal (art. 29.º, n.º 1, da CRP), do tipo legal de crime previsto na legislação.
E nenhum crime sexual é previsto na legislação como crime habitual (é exemplo de um crime habitual expressamente previsto no CP o crime de lenocínio).
Unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade. Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas decorre da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade, e, portanto, uma interpretação inconstitucional do disposto nos arts. 171.º e 172.º, ambos do CP.
Em parte alguma o tipo legal de crime de abuso sexual de criança permite que se possa entender apenas como um único crime a prática repetida em diversos dias, ao longo de vários anos, em momentos temporalmente distintos, e fundada em sucessivas resoluções criminosas, de diversos atos sexuais de relevo.
Poder-se-á ainda assim perguntar: e se for um abuso sexual de manhã e outro à noite, estamos perante dois crimes de abuso sexual?
Estaremos sempre perante um crime de abuso sexual sempre que se ofenda o bem jurídico da autodeterminação sexual, sempre que o novo ato constitua um novo constrangimento da vítima, sempre que a vítima tenha sido novamente obrigada, novamente abusada.
Alguma vez a jurisprudência veio dizer que uma facada de manhã e uma facada à tarde constituía o mesmo crime de violação da integridade física? Ou que uma facada hoje e outra amanhã, e outra na semana passada... se tratava de um mesmo crime de "trato sucessivo"(?), prolongado, exaurido, considerando que o agente tinha tido uma “unidade resolutiva”?
A jurisprudência, ao subsumir num único comportamento global, baseado numa “unidade resolutiva”, as diversas ações integradoras — cada uma individualmente — de um crime de abuso sexual, viola claramente o tipo legal de crime, unificando num único crime aquilo que consubstancia a prática de diversos crimes.
Porém, casos há em que não é possível apurar o número exato de condutas praticadas pelo arguido. Ou seja, sobra a pergunta: tendo conseguido a prova dos atos de abuso sexual, mas sem prova precisa do número de vezes e do momento temporal, o arguido deve ser absolvido dos crimes que praticou? Ou quantos crimes devem ser-lhe imputados?
Tantos quantos se consiga averiguar.
De outra forma estaremos também aqui a dispensar a investigação de determinar o número exato de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, e impedindo a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido. Pode sempre argumentar-se com a necessidade de encontrar uma solução que permita ultrapassar a dificuldade de prova do exato número de factos ilícitos praticados. Consideramos, no entanto, que a solução para este problema se deve encontrar no direito a constituir, não estando prevista na lei existente, pelo que qualquer solução que nesta não esteja prevista não cumpre o princípio nuclear em matéria de direito penal — o princípio da legalidade.
Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura[4].
Além disto, pode sempre dizer-se, tal como a jurisprudência alemã argumenta contra a figura do crime continuado (sem expressão legal no Código Penal alemão), que a unificação das várias condutas numa análise global prejudica o arguido — «Ainda que cada facto individual deva ser constatado e provado, a circunstância de as numerosas realizações dos crimes ficarem “fundidas” em um facto total e sem que se imponham penas individuais para cada um deles, conduz frequentemente apenas a um exame superficial dos factos. “(...) [T]em induzido também em não poucas ocasiões a “comprovações” demasiado globais, que têm impedido um exame da realização do tipo e do grau de culpa pelo tribunal de revista, dando lugar a consideráveis restrições das possibilidades de defesa do acusado e têm suscitado a preocupação de que o juiz se deixou levar por uma impressão de conjunto, confusa nos seus limites, e não pela convicção da realização do tipo em cada caso concreto” (BGHSt 40, 147)”[5].
Acompanhamos, pois, de perto o que já este Supremo Tribunal disse. Assim:
- acórdão de 17.09.2014, proc. n.º 595/12.6TASLV.E1.S1 (Relator: Cons. Pires da Graça):
«Não há aqui qualquer dúvida, é abertamente referida a pluralidade de crimes como pressuposto da aplicação do crime de trato sucessivo (…).
Na impossível transposição das citadas regras psicológicas e de senso comum, assume-se abertamente a existência de pluralidade de infracções, tal como no crime continuado, mas dispensando o também dificilmente verificável requisito da diminuição da culpa, chega-se à mesma conclusão: unidade criminosa, benefício alegadamente temperado com a graduação mais intensa da pena, nos moldes já expostos e que são, ultimamente, invariáveis, isto é, as penas são idênticas às equivalentes ao crime único.
Em suma, onde se verificam vários crimes ficciona-se que apenas houve um.
Mas como a lei, insofismavelmente, contrapõe ao crime continuado a punição por cada crime perpetrado, no campo para que evoluiu a figura do crime de trato sucessivo (da consideração, em concreto, de aparente unidade de resolução e para o tornar em sucedâneo do agora inutilizável crime continuado) este surge como solução claramente “contra legem” e por isso de rejeitar liminarmente.
Em casos como o que nos ocupa, poderemos falar sem sobressalto de resoluções criminosas idênticas. Mas isso não equivale à sua unificação. De cada vez que se impôs à sua enteada teve, para o que nos ocupa, de tomar uma daquelas resoluções, tal como o agente que decide esfaquear outrem em dias distintos, assaltar determinada pessoa em várias ocasiões ou violar certo indivíduo em diversas alturas.
São exemplos pacíficos de pluralidade de resolução, a que equivale a pluralidade de infracções e que no essencial não divergem dos casos de abuso sexual de crianças prolongado no tempo sem que se saiba o número exacto de ocasiões.
Se as razões do recurso à unificação criminosa, porventura, radicam na desproporcionalidade das punições segundo os critérios legais vigentes, para quem assim entenda, mais não há do que desaplicá-los, por inconstitucionalidade fundada na violação do princípio da proporcionalidade.
Mais uma vez, a figura do trato sucessivo não tem, em boas contas e salvo o devido respeito por diversa opinião, qualquer utilidade.
No campo das categorias abstractas de crimes a conclusão é idêntica, pois, invariavelmente acaba por surgir como equivalente a categorias já existentes, em nada adiantando à dogmática penal. Pelo contrário, só irá servir para confundir conceitos.
Assim, de nada adianta equipará-la à noção de crime permanente, já existente (ou crime duradouro – por todos Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal, parte geral, tomo I, Coimbra Editora, pág. 295 e seguintes) e que curiosamente até se contrapõe a crime instantâneo (de que o abuso sexual de criança constitui exemplo claro).
Menos ainda a crime de empreendimento, pois estes caracterizam-se pela equiparação típica entre tentativa e consumação.
Sequer com crime exaurido, já que este se caracteriza pela circunstância de que “o primeiro passo dado pelo agente na senda do «iter criminis» já constitui o preenchimento do tipo”, segundo o Ac. do STJ de 9.10.2003 (Procº 03P2851).
Conclui-se portanto pela total irrelevância da figura do crime de trato sucessivo e pela mesma crítica da comunidade à indevida utilização da figura do crime continuado em casos de abuso sexual de crianças.» (in www. dgsi.pt)
- acórdão de 22.04.2015, proc. n.º 45/13.0JASTB.L1.S1, Relator: Cons. Sousa Fonte:
«Discordamos da qualificação dos plúrimos abusos sexuais sobre o mesmo ofendido como constitutivos de um crime de trato sucessivo.
Não desconhecemos que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2012, Pº nº 862/11.6TAPFR.S1, citado no acórdão recorrido, tirado com o voto de vencido do primitivo Relator, num caso em que o aí Arguido foi condenado, na 1ª Instância, pela autoria, em concurso real, de diversos crimes de natureza sexual, decidiu que se estava aí perante crimes de trato sucessivo. (…)
Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela «multiplicidade de actos semelhantes» que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado.
Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de Figueiredo Dias, «pluralidade de sentidos de ilicitude típica» e, portanto, de crimes (ob. cit., página 989)».» (in www.dgsi.pt).
E em sentido idêntico devemos ainda referir, e circunscrevendo-nos aos acórdãos prolatados em 2019, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça[6]:
- acórdão de 27.11.2019, no proc. n.º 784/18.0JAPRT.G1.S1 (Relator: Cons. Manuel Augusto Matos),
-acórdão de 19.06.2019, no proc. n.º 98/17.2GAPTL.S1 (Relator: Cons. Vinício Ribeiro),
- acórdão de 23.05.2019, no proc. n.º 134/17.2JAAVR.S1 (Relatora: Cons Isabel S~çao Marcos), e
- acórdão de 13.03.2019, no proc. n.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1(Relator: Cons. Vinício Ribeiro),
- acórdão de 20.02.2019, no proc. n.º 234/15.3JAAVR.S1 (Relator: Cons. Júlio Pereira),
- acórdão de 27.02.2019, no proc. n.º 2165/15.8JAPRT.P1.S1 (Relator: Cons. Vinício Ribeiro).
Entendemos, pois, que os diversos crimes de abuso sexual de criança e de atos sexuais com adolescentes devem ser punidos em concurso efetivo de crimes.
3. Tendo em conta as conclusões a que chegámos supra em matéria de recorribilidade do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, devemos agora apreciar a pena aplicada ao crime de abuso sexual de menor, nos termos do art. 171.º, n.ºs 1 e 2, do CP, por referência ao facto provado 9, quando a menor tinha entre 9 e 11 anos de idade. O crime pelo qual o arguido vem condenado tem uma moldura penal entre 3 e 10 anos de prisão. A pena aplicada no acórdão recorrido foi de 5 anos e 3 meses de prisão.
Dos factos provados, concluímos que a culpa do arguido é elevada, tendo em conta o período de tempo durante o qual decorreram os atos de abuso sexual, demonstrando persistência na sua realização, indiferente à ilicitude dos factos. E tendo em conta a natureza dos atos, lesivos de bens jurídicos pessoais, são fortes as exigências de prevenção geral, assim com as de prevenção especial. Assim sendo, impõe-se a aplicação de uma pena muito próxima do meio da moldura penal, que se situa em 6 anos e 6 meses de prisão. Porém, atendendo ao princípio da proibição da reformatio in pejus, previsto no art. 409.º, n.º 1, do CPP, mantém-se a pena que lhe foi aplicada de 5 (cinco anos) e 3 (três) meses, improcedendo o recurso do arguido.
4. Procedamos agora à análise da pena única aplicada ao arguido AA, de 14 anos de prisão.
Não sem antes salientar que a determinação da pena tem como limite máximo o admitido pela culpa de cada arguido — a culpa de cada um é individualizável e insuscetível de equiparação entre os diversos arguidos, pois estes participam de forma diferente e de modo diverso nos diferentes factos praticados, assim revelando uma atitude particular contra o direito —, e como limite mínimo o determinado pelas exigências de prevenção geral impostas pela comunidade de acordo com os crimes praticados; será dentro destas balizas que em função das exigências de prevenção especial de cada arguido que se determinará a medida concreta da pena, necessariamente diferente consoante as distintas exigências que cada um impõe. Assim sendo, a diferente punição de diversos arguidos comparticipantes na prática do mesmo crime não constitui uma violação do princípio da igualdade atentas as especificidades de cada um, a impor uma pena adequada individualmente a cada arguido.
O recorrente foi condenado na pena única de 14 anos de prisão resultante do cúmulo jurídico pela prática de diversos crimes em concurso.
A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenham sido tomadas em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).
Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
Mas, a determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.
Nos casos de concurso de crimes (e em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º, do CP. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).
A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º, ambos do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1, do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique”. Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever se á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).
São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta.
Constitui, pois, requisito da aplicação de uma pena única a existência de um concurso de crimes.
Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura.
Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar tem como limite mínimo 7 anos e 6 meses de prisão (a pena concreta mais elevada) de prisão, e como limite máximo 25 anos (de acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).
Antes, porém, vejamos se entre o crime de violação e o crime de ato sexual com adolescente existe (ou não) um concurso aparente de crimes.
Ora, da análise dos factos concretos, e da condenação, verificamos que o ato punido como crime de violação não integra os atos punidos como crime de ato sexual de relevo com adolescente, porquanto:
- do facto provado 11 consta: Em datas não concretamente apuradas, mas posteriores a Março de 2017 e até Setembro de 2017, pelo menos em dez ocasiões distintas, a última das quais em Setembro de 2017, o arguido introduziu o seu pénis erecto no interior da vagina da menor, aí tendo feito movimentos ascendentes e descendentes até ejacular, sendo que em algumas destas ocasiões o arguido também introduziu o seu pénis no interior do ânus da menor;
- do facto provado 29 consta: Num vídeo que o arguido gravou em Março de 2017, com a designação "VID_20170302_201212.3gp.3gpp", localizado no computador da marca TOSHIBA, com a duração de 10m50s, visualiza-se: o arguido a pôr o equipamento a gravar, a menor, na data com 15 anos de idade, desnudada em cima da cama existente no quarto de casal, o arguido com a boca a chupar os seis da menor, pedindo a menor que não o faça porque lhe dói; o arguido a acariciar com a língua a vagina da menor e a chupá-la, pedindo a menor ao arguido "não estiques isso"; o arguido, com a mão, a apertar com força os seios da menor, que lhe pede para não o fazer, por a magoar, e a introduzir o pénis erecto no interior do ânus da menor que se retrai por diversas vezes, e diz: "isso dói"; "ai … Pára, Pára, Pára,"; "ai o meu cu", suplicas que o arguido não atendeu aí tendo feito movimentos ascendentes e descentes até ejacular, em tudo valendo-se da sua força física para forçar a menor a suportar, contra a vontade desta, os descritos actos.
Assim, a partir de uma análise apenas em função da matéria de facto provada poderíamos ser levados a considerar que o facto provado em 29 estaria abrangido pelo facto provado 11, pelo que a punição como crime de ato sexual com adolescentes dos factos provados 11 e como crime de violação do facto provado 29, levaria à punição de um mesmo facto duas vezes.
Porém, compulsado o dispositivo, verificamos que:
- os factos provados 11 apenas foram condenados como crimes de ato sexual de adolescente quando praticados entre julho e setembro de 2017, assim não se abrangendo na punição os factos praticados em março de 2017 — cf. ponto 4.21 do dispositivo: “4.21. Condenar o arguido AA pela prática de dez crimes de actos sexuais com adolescentes agravado, previsto e punido pelos artigos 173.°, n.° 1 e 2 e 177.°, n.º 1, al. b), do Código Penal (após se proceder à convolação da qualificação jurídica feita na acusação), na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um dos crimes (as vezes em que a menor confirma a ocorrência de cópula e/coito anal - meses de Julho e Setembro de 2017 - facto provado sob 11)”,
- assim não se abrangendo o facto provado 29 punido segundo o dispositivo 4.32 como crime de violação — “4.32. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violação agravado, previsto pelos artigos 164.°, n.º1, al. a), 177.°, nº. 1°, al, b), 6º e 8°, do Código Penal, na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão (factos provados sob 29).”
Pelo que, tratando-se de ato diferente praticado em momento temporal distinto, necessariamente temos que concluir pela existência de um concurso de crimes[7].
Para além disto, entende ainda que o mesmo facto 29, que, como já vimos, se refere a ato praticado em março de 2017 quando a ofendida já tinha 15 anos de idade (segundo o facto provado 2 nasceu a 00.00.0000), foi punido como crime de pornografia de menores. Na verdade, de acordo com o dispositivo 4.31. o arguido foi condenado por um crime de pornografia de menores agravado (nos termos dos arts. 26.º, 176.º, n.º 1, al. b), e 177.º, n.º 1, al. b) e n.ºs 6, 7 e 8, todos do CP, abrangendo esta punição os “factos provados sob 22, 32, 34 ficheiros criados em 04.08.2012, 10.0,8.2012, 04.11.2012-, 35 — 3 vídeos com 10 anos, 37 e factos provados sob 29, 34 ficheiros criados em 28.08.2017 e 05.09.2017; 35- vídeo 2017-08-28-457.mp4”. (sublinhado nosso).
Tem sido considerado que o crime de pornografia de menor, previsto no art. 176.º, n.º 1, al. b), do CP (e pelo qual o arguido vem condenado), constitui um crime que pressupõe “uma relação direta entre o agente da prática do crime e o menor, ofendendo a sua autodeterminação sexual”[8]. E também tem sido entendido que o crime de ato sexual com adolescente protege “o livre desenvolvimento da vida sexual do adolescente de 14 a 16 anos, de qualquer sexo, face a processos proibidos de sedução conducentes à prática de actos sexuais de relevo”[9].
Todavia, devemos salientar, tal como faz o acórdão recorrido, que o crime de pornografia de menores não pretende apenas proteger a autodeterminação sexual do menor; entendemos que, primariamente, este tipo legal de crime protege a exploração sexual do menor, quer se trate de uma exploração utilizando o menor em fotografia ou filmes, por exemplo, quer se trate de uma exploração do menor mediante a divulgação daquele material, em ordem à garantia de um bem jurídico coletivo de proibição e disseminação deste material, proteção esta antecipada pela simples utilização do menor, ainda que o material não tenha sido disseminado[10].
Vejamos a fundamentação do Tribunal a quo:
«Relativamente à existência de concurso aparente entre este ilícito [crime de pornografia de menores] e os crimes de abuso sexual de menor e de acto sexual com adolescente, entendemos existir concurso real.
Não por estarem em causa diferentes bens jurídicos, uma vez que todos os tipos legais visam a protecção do mesmo bem jurídico, mas sim porque traduzem diferente censura pretendida pelo legislador.
A criminalização da pornografia de menores distingue-se dos outros tipos legais, podendo existir por referência à mesma vítima, ou não, e visa desmotivar os consumidores de pornografia pedófila.
Tratando-se, como se trata, da mesma vítima, a conduta do Recorrente acrescenta uma nova violação do bem jurídico violado, não necessária para consumar qualquer um dos outros ilícitos, sujeitando a menor a nova humilhação.
Nestes termos, entendemos existir concurso efectivo de crimes.(...)
Do preceito pelo qual o arguido foi condenado extrai-se ter sido objectivo do legislador a tutela antecipada do bem jurídico protegido, tratando-se de crime de perigo abstracto [quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido] e de mera atividade [quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção], uma vez que a utilização de material pornográfico com representação realista de menor e a mera detenção de materiais pornográficos merecem atenção punitiva".
Este tipo legal de crime visa ainda tutelar bens jurídicos traduzidos no interesse da comunidade em proibir a circulação, o acto de venda, comercialização, a simples transmissão de registos audiovisuais de carácter pornográfico com crianças, visando travar a difusão de material pornográfico cuja extensão atinge proporções alarmantes.(...)
Esta evolução legislativa, seguindo clara opção neocriminalizadora, encontra-se plenamente justificada pela consciência da necessidade de reforço da tutela das pessoas particularmente indefesas, como o são as crianças.
Sumariamente analisada a ratio da criminalização, é evidente que se trata de pornografia, sendo certo que não encontramos essa definição no texto legal.
As Nações Unidas definem pornografia infantil como sendo qualquer representação por qualquer meio de uma criança em actividades sexuais explícitas, reais ou simuladas ou qualquer representação das partes sexuais – art.º 2.º. c), do Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos da Criança sobre o Tráfico de Crianças, Prostituição Infantil e Pornografia, de 2002, de onde resulta que o conceito de pornografia infantil é amplo e não deixou de servir de inspiração ao legislador de 2007- lei n.º 58/07, de 4/9, ao introduzir o tipo em causa.
A Convenção de Lanzarote prevê, no artigo 2.º, n.º 2 que a expressão "pornografia de menores" designa todo o material que represente visualmente urna criança envolvida em comportamentos sexualmente explícitos, reais ou simulados, ou qualquer representação dos órgãos sexuais de uma criança, com fins sexuais.
Como referido por Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro "a natureza "pornográfica" dos actos referidos abrange, portanto, menores em actividades sexuais, exibindo órgãos sexuais, ou em pose, posturas ou comportamentos susceptíveis de causar estimulo, excitação ou impulso sexual''.
Dúvidas não subsistem, face aos factos julgados como provados, que estamos perante pornografia infantil.
Temos defendido que haverá apenas um crime de pornografia de menores, mesmo que estando representados ou envolvidos vários menores, quando esteja em causa o disposto nas alíneas c) e d), do n.º 1 do artigo 176.º do Código Penal.
Mas já não, como defende o Recorrente, quando em causa condutas que preencham o disposto nas alíneas a) e b) da mesma norma, as quais merecem um tratamento diferenciado.
Isto porquanto no crime de pornografia de menores previsto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 176.º do Código Penal, há uma violação directa dos bens jurídicos que a norma protege os quais, relembramos, são a liberdade e autodeterminação sexual, sendo que por cada menor utilizado ou aliciado há a verificação de um crime. Já no caso previsto no artigo 176.º, n.º 1, mas desta feita nas alíneas c) e d), a tutela daqueles bens é indirecta.
Dessa circunstância, bem como de, nestas situações - alíneas c) e d) -, a lei se referir a "materiais'', se conclui que, independentemente do número de fotografias, filmes ou gravações, estaremos sempre perante um só crime.
É neste sentido que José Mouraz Lopes e Tiago Caiado Milheiro abordam a temática do concurso de crimes, afirmando
"No que concerne às condutas descritas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do art. 176.º do CP existe uma violação direta do bem jurídico liberdade e autodeterminação sexual, e que implica que por cada menor utilizado ou aliciado para o efeito de espectáculos, fotografias, filmes ou gravações pornográficas se consuma um crime. Assim, o número de crimes coincide com o número de vítimas usadas ou aliciadas. [negrito nosso]
Por seu turno, as alíneas c) e d) do n.º 1, os n.ºs 4, $ e 6 do art. 176º do CP reconduzem a atuação ilícita à produção, distribuição, exportação, divulgação, exibição, cedência, aquisição, detenção, acesso, obtenção ou facilitação de acesso dos materiais pornográficos. A utilização no plural (materiais), aliado ao facto de que estas atividades são uma forma de tutela indireta da liberdade e autodeterminação sexual, determinam que se conclua que o número de materiais pornográficos em causa relevam para a escolha e medida da pena, mas não para a individualização de crimes consumados. Assim, existirá um só crime, independentemente do número de fotografias, filmes e gravações”.
No caso dos autos está em causa condutas que integram o disposto no artigo 1, alínea a), pelo que existirão tantos crimes quantas as vítimas.
Aliás, o próprio acórdão o afirma, ao dizer que "já relativamente ao concurso de crime, cumpre referir que o agente comete tantos crimes de pornografia de menores quantos os menores utilizados em espectáculo, atenta a natureza pessoal do crime. Vale o mesmo para a fotografia, o filme ou a gravação pornográfica com vários menores."
Ora, no caso da condenação referente a este crime, está em causa sempre a mesma menor, embora que surgindo em vídeos diversos
Nestes termos, ao contrário do entendido no Acórdão recorrido, há um só crime de pornografia de menores, por ser uma só a vítima.
Daqui decorre que, com a sua conduta, o arguido preencheu os elementos típicos, objectivos e subjectivos, do crime de pornografia de menores, previsto pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal.
Vejamos quanto às circunstâncias agravantes consideradas.
O Tribunal considerou, em todos os casos, a agravante prevista no disposto no artigo 177.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º Lei n.º 103/2015, de 24 de Agosto, bem assim a prevista no n.º 7 do mesmo artigo - nos casos em que a vítima for menor de 14 anos - e n.º 6- casos em que a vítima for menor de 16 anos.
A conduta do arguido abrange um período em que a menor tinha menos de 14 anos (10 anos) até 15 anos, bem assim condutas praticadas antes da publicação da Lei n.º 103/2015, e outras depois.
Naturalmente que, por reporte aos factos ocorridos antes dessa publicação, não seria legalmente admissível a condenação do arguido considerando a agravante ali prevista, o mesmo não acontecendo com os restantes
Contudo, atendendo a que o arguido irá condenado pela prática de um único crime de pornografia de menores, a conduta será agravada, nos termos em que o dispõe o n.º 8 do artigo 177.º do Código Penal. Assim, havendo duas circunstâncias agravantes, a circunstância mais forte, in casu, é a prevista no n.º 7 da mesma norma, a qual agrava a pena prevista no artigo 176.º, n.º 1, em metade dos seus limites mínimos e máximos.
Nestes termos, o arguido será absolvido pela prática de 13 crimes de pornografia treze crimes de pornografia de menores agravado, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 176.º, n.º 1, al. h) e 177.º, n.ºs. 1, al. b), 6, 7 e 8, do Código Penal, bem assim de quatro crimes de pornografia de menores agravado previstos e punidos pelos artigos 26.°, 176.°, n.° 1, al. b), 177.°, n.ºs 1, al. b), 6 e 8, do Código Penal, indo condenado pela prática de 1 (um) crime de pornografia de menores agravado, previsto e punido pelo disposto nos artigos 26.°, 176.°, n.° 1, al. b), 177..°, n.ºs 1., al. b), 6, 7 e 8 do Código Penal.» (p. 408-409, 411, 412-419 do ac. recorrido; não foram transcritas as notas de rodapé)
Daqui percebemos que a autonomização do crime de pornografia de menor relativamente ao crime de ato sexual com adolescente visa punir sentidos sociais do ilícito distintos: se, por um lado, a análise global do ilícito subjacente ao ato sexual com adolescente permite-nos afirmar que se protege a autodeterminação e liberdade sexual dos adolescentes, por outro lado, a análise global do crime de pornografia de menores, em qualquer uma das modalidades das condutas previstas no tipo, mostra-nos um outro sentido social do ilícito subjacente à incriminação — a ilicitude decorrente da exploração sexual do menor quando utilizado em fotografia ou vídeos, imortalizando os atos ou poses cristalizados nas fotografias ou nos vídeos, é uma outra (e acresce à) ilicitude subjacente à realização do ato sexual. Constitui, pois, uma punição de uma outra dimensão do ilícito que não pode ser neutralizada pela simples subsunção do comportamento ao ilícito decorrente da prática do ato sexual. A este ato acresce uma outra ilicitude decorrente de um outro ato que não a prática do ato sexual — o ato de perpetuação da imagem (com ou sem áudio), mesmo em situações em que o menor não seja identificado; na verdade, no âmbito do tipo integra-se não só a utilização do menor em fotografia, filme ou gravação quer se consiga a partir destes uma identificação do menor, quer não seja possível tal identificação (ainda que se consiga perceber que se trata de um menor).
Assim sendo, não podemos considerar estarmos perante a punição do mesmo ato, uma vez que a punição como crime de ato sexual com adolescente constitui a punição da prática do ato sexual de relevo com o menor (entre os 14 e os 16 anos), e a punição como crime de pornografia de menores constitui a punição do ato de utilização do menor em filme ou fotografia, com perigo de disseminação do material pornográfico por um número (mais ou menos indiferenciado) de pessoas; pretende-se com este tipo de crime tutelar, em primeira linha, o bem jurídico coletivo, conexionado com interesses comunitários como a proibição de circulação, comercialização ou simples transmissão de registos pornográficos, pretendendo-se travar a divulgação deste material, ainda que subsidiariamente, em algumas condutas abrangidas pelo tipo, se proteja igualmente a autodeterminação do menor, quando haja possibilidade de identificação do menor envolvido. Pelo que, concluímos estar perante um concurso de crimes[11].
Analisemos agora a pena única aplicada ao arguido, sabendo que a moldura penal oscila entre os 7 anos e 6 meses de prisão e os 25 anos de prisão.
A partir de uma análise global do comportamento do arguido verificamos que, ao longo de 7 anos, e desde que a menor tinha 9 anos de idade (cf. facto provado 6), praticou diversos crimes sexuais contra a menor, de forma persistente e em ambiente onde supostamente estaria protegida — o seu lar. A partir dos factos praticados mostrou um comportamento global de completa indiferença, ou mesmo completo alheamento, perante os danos que estava a provocar no desenvolvimento sadio da menor, e sem que o facto de a menor ter um ligeiro deficit cognitivo (cf. facto provado 3) fosse motivo para se abster dos comportamentos que teve (pese embora tivesse conhecimento da fragilidade a menor, bem como das doenças de que padecia — cf. facto provado 39). Mostrou total insensibilidade aos apelos da vítima quando esta se opunha à realização dos atos. É certo que revelou os factos à mãe da menor aquando de uma discussão (cf. facto provado 6), todavia não se mostrou arrependido — não só não consta da matéria de facto provada o arrependimento do arguido, como ainda que tenha sido verbalizado o arrependimento nas últimas declarações do arguido em audiência não prestou quaisquer declarações quanto aos factos, pelo que não se soube do que se arrependeu o arguido. Consta mesmo, aquando da fundamentação da pena única a aplicar, no acórdão de 1.ª instância sobre o arrependimento do arguido, o seguinte
«Quanto à ausência de arrependimento, cumpre salientar que o Tribunal não valoriza o "arrependimento" verbalizado em audiência aquando das declarações finais do arguido (o arguido pretendeu a palavras para as últimas declarações, tendo referido que estava arrependido, contudo, não prestou quaisquer declarações quanto aos factos, pelo que desconhece o Tribunal do que se arrepende o arguido). (...)O arguido mais do que uma pessoa embrutecida ou empobrecida em termos de sentimentos, é uma pessoa que não olha para os outros. Apenas olha para si próprio e para as suas satisfações pessoais. O silêncio do arguido é bem revelador de que não interiorizou o mal que fez a esta menor, pelo que o seu arrependimento não é minimamente relevante.»[12]
Aliás, consta expressamente da matéria de facto provada que o arguido “Não revela grande preocupação pelas consequências dos seus actos” (facto provado 76; facto provado a partir da perícia médico-legal realizada ao arguido).
É certo que o arguido não apresenta antecedentes criminais — o que deve ser tido em conta na determinação da medida da pena. Porém, a persistência na prática dos crimes, ao longo de um período significativo de tempo, não nos permite concluir tratar-se de uma pluriocasionalidade, antes revelando uma tendência para a prática desta espécie de crimes contra menores. Aliás, isto mesmo é corroborado por um outro facto provado resultante da perícia realizada — «Apurou-se a existência de atitudes e crenças disfuncionais, que visam legitimar a violência sexual, atribuindo-o ao comportamento sexual prévio da mulher, bem como atitudes e crenças associadas à legitimação do abuso sexual, que é atribuído à conduta da criança, nomeadamente à sedução infantil.» (facto provado 77). Por fim, «O arguido recorre sistematicamente à atribuição externa da responsabilidade, atribuindo aos outros a responsabilidade pelos seus comportamentos, pelo que esta situação remete-nos para a não percepção das motivações internas, o que constitui um factor de risco de reincidência.» (facto provado 80)
Cumpre ainda salientar que, em ambiente prisional, o arguido tem mantido um comportamento adequado (cf. facto provado 66).
Ora, a partir de tudo o exposto, mostram-se prementes as exigências de prevenção geral, a reclamar uma pena muito acima do mínimo da moldura penal. A comunidade nacional e internacional reclama cada vez mais a proteção dos bens jurídicos lesados pelos atos do arguido. Acresce que, tendo em conta a factualidade provada e referida supra, as exigências de prevenção especial são notórias, pelo que consideramos a pena de 14 anos de prisão como necessária perante as exigências de prevenção geral e especial, e adequada à culpa do arguido.
III
Conclusão
Nos termos expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido AA e determina-se:
a) ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 2, do CPP, a alteração do dispositivo 4.19, do acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.06.2019, passando a ter a seguinte redação:
”4.19 Condenar o arguido AA pela prática de um crime de abuso sexual de crianças consumado, previsto e punido pelos artigos 26.º, 171.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena...” que se vier a aplicar infra;
b) no mais mantém-se o acórdão recorrido.
Sem custas
Supremo Tribunal de Justiça, 16 de janeiro de 2020
Os juízes conselheiros,
Helena Moniz - Relatora
Nuno Gomes da Silva
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[1] «Facto provado 38.º
O Tribunal Colectivo julgou como provado que:
"Todas as imagens e vídeos localizados na posse do arguido não se encontram manipulados e representam menores reais e a menor BB."
Diverge o Recorrente da conclusão do Tribunal porquanto, embora aceitando que as imagens e vídeos não se encontravam manipulados, nenhum outro menor está representado para além da BB.
Remete-se aqui para a análise feita a propósito do facto provado 27.º, na qual se concluiu não ser possível estabelecer, com o necessário rigor, a idade de quem ali é retratado sendo, porém, possível verificar que não se trata de menores. Aliás, como bem pontua o Senhor Procurador junto do Tribunal de primeira instância, trata-se de mera conclusão a retirar dos restantes factos não devendo, em rigor, ser autonomamente considerado.
Nestes termos, e no que se refere a representarem "menores reais e a menor BB" por meramente conclusivo, exclui-se da matéria de facto, embora se mantendo que as imagens não se encontram manipuladas.» (cf. acórdão recorrido, p. 375-276)
[2] Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, UCP, 2005, p. 620, nota 1854.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal Parte Geral, tomo I, 3.ª ed., 2019, Coimbra: GestLegal, 11/ § 55.
[4] Em sentido idêntico, Roxin, Derecho Penal. Parte General, t. II, Civitas, 2014, §33, nm. 269.
[5] Roxin, ob. cit., § 33/ nm. 260.
[6] Tdos publicados em www.dgsi.pt
[7] Considerando apenas existir um concurso impuro ou aparente entre o crime de ato sexual com adolescente e o crime de violação quando exista uma “unidade de contexto espácio-temporal”, cf. Jorge de Figueiredo Dias/ Maria João Antunes, art. 173.º/ § 30, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo 1, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 863.
[8] Maria João Antunes/Susana Aires de Sousa, Da relevância do bem jurídico protegido no crime de pornografia de menores, RPCC, n.º 2, ano 29 (maio-agosto de 2019), Coimbra: IDPEE/GestLegal, p. 256; — mas, em sentido contrário, a partir de um tipo com uma abrangência distinta, cf. Maria João Antunes/Cláudia Santos, art. 176.º/ § 3, Comentário Conimbricense... cit., p. 880, onde se referia expressamente “relativamente às condutas referidas no n.º 1- a) e b), é questionável que a incriminação tenha ainda justificação por referência ao bem jurídico individual da liberdade e da autodeterminação sexual, quando se trate de menor entre os 14 e os 18 anos de idade”. A diferente posição resulta de o tipo legal de crime, com as alterações, entretanto, introduzidas, ter sofrido “um alargamento significativo da incriminação, na medida em que as vítimas abrangidas passaram a ser menores de 18 anos (e não de 14 anos)” — Maria João Antunes/Susana Aires de Sousa, ob. cit. supra, p. 241.
Em sentido idêntico, Mouraz Lopes/ Tiago Caiado Milheiro, Crimes sexuais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 219-220.
[9] Jorge de Figueiredo Dias/ Maria João Antunes, art. 173.º/ § 17, ob. cit. supra, p. 858.
[10] No sentido de que o tipo legal de crime previsto no art. 176.º, do CP, constitui um crime de perigo abstrato, cf. Maria João Antunes/ Cláudia Santos, ob. cit. supra, art. 176.º/ § 4.
[11] Em sentido idêntico, cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06.12.2018, proc. n.º 2201/17.3JAPRT.S1 (Relator: Cons. Isabel São Marcos, tendo sido sua Adjunta a Relatora destes autos), proc. n.º 3910/16.0T9PRT.P1.S1 (Relator: Cons. Vinício Ribeiro).
[12] Segundo a transcrição constante do ac. recorrido, do Tribunal da Relação de Lisboa, a p. 312-313.