I - A competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a acção (pedido e causa de pedir), ou seja, pela relação jurídica tal como ele a configura na petição, sendo que, para o efeito, deve relevar também a vertente subjectiva, respeitante às partes.
II - O pedido dirigido contra a 1.ª ré tem apenas por base o acordo geral de fornecimento e transporte e entrega dos camarões; o pedido dirigido contra a 2.ª ré tem por fundamento o incumprimento das suas obrigações de transportadora, no âmbito do contrato de transporte marítimo, celebrado entre a 1.ª e a 2.ª ré, que fez o referido transporte, e a implícita avaria (marítima) da mercadoria; o pedido dirigido contra a 3.ª ré seguradora tem apenas por base os danos sofridos durante o transporte (seja ele marítimo ou não), garantidos pela seguradora.
III - A causa de pedir é, portanto, complexa, apontando, por um lado, para a competência material do tribunal comum para o conhecimento dos pedidos dirigidos contra a 1.ª ré e a 3.ª ré, nos termos do art. 40.º, n.º 1, da LOSJ e, por outro, a dos tribunais marítimos para o conhecimento do pedido dirigido contra a 2.ª ré, nos termos conjugados das als. c) e j) do n.º 1 do art. 113.º da LOSJ.
IV - Nessa hipótese, para efeitos de determinação da competência material do tribunal apenas, deve relevar, o elemento essencial ou preponderante da causa de pedir complexa.
V - E o elemento preponderante da causa de pedir, no caso vertente, não é o contrato de transporte marítimo celebrado entre a ré Seafresh e a ré Maersk nem a avaria marítima, que fundamentam, aparentemente, a responsabilidade não contratual da ré Maersk perante a autora, mas o incumprimento do contrato de fornecimento pela 1.ª ré, que não forneceu os produtos em condições, e a celebração do contrato de seguro com a 3.ª ré, questões estas que estão subtraídas à competência cível dos tribunais marítimos.
VI - Consequentemente, deve ser declarado competente para a apreciação da causa o tribunal judicial.
Não disponível.
Revista n.º 2831/17.3T8BCS.L1.S1
*
Teve lugar a realização de uma tentativa de conciliação.
Prosseguiram os autos, vindo então a ser apreciada a excepção dilatória de incompetência material do tribunal, onde se decidiu:
«Em face do exposto, julgando-se procedente a excepção dilatória de incompetência material, julga-se este tribunal materialmente incompetente para conhecer da presente acção, absolvendo-se os réus da instância».
Inconformada recorreu a autora, pugnando pela revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que declarasse a competência do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Este, para apreciação da presente acção.
E obteve êxito, uma vez que a Relação julgou procedente a apelação e, revogando a decisão proferida, julgou o tribunal a quo competente em razão da matéria.
Inconformada, veio agora a Seguradoras Unidas recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:
1. No que à Seguradoras Unidas S.A. diz respeito a acção foi intentada com o fundamento no alegado incumprimento das obrigações assumidas pelo contrato de seguro celebrado entre as partes.
2. O contrato celebrado com a ora Recorrente é um seguro de transporte de mercadorias, que, no caso em análise, incide especificamente sobre carga transportada por via marítima, a bordo de um navio.
3- O próprio Tribunal da Relação reconhece no Acórdão proferido que “a Seguradoras Unidas, foi accionada com base num contrato de seguro, através do qual foram transferidos determinados riscos de transporte de mercadorias, constantes da respectiva apólice e que estavam em vigor à data dos factos
4- A perda sofrida é uma avaria simples ou particular.
5- É na petição inicial que o A. deve configurar quer a causa de pedir quer o pedido, sendo certo que, nas acções de condenação a causa de pedir é o facto constitutivo do direito do A..
6- Por outro lado, depois de citados os RR., a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir.
7- Não se verifica nos autos nenhuma das situações em que, nos termos dos art.°s 264° e 265° CPC, é admissível a alteração da causa de pedir.
8- Tal como está configurada a acção - e conforme resulta de forma clara a expressa da leitura da petição inicial - (i) o apuramento da responsabilidade civil da Seguradoras Unidas S.A. não é acessório; (ii) está claramente em causa uma situação de responsabilidade contratual.
9- Basta proceder à leitura dos art.°s 52°, 62°, 64°, 65°, 72° e 73° da p.i. para o concluir, assim como à leitura do pedido - condenação solidária das RR., ao abrigo da responsabilidade contratual.
10- É correcta a análise do tribunal a quo, quando refere na sentença proferida: ‘‘Funda, assim, o seu pedido em responsabilidade civil contratual, a qual no caso concreto pressupõe, não de forma instrumental como defende a A., mas de forma essencial, averiguar das condições do transporte marítimo da mercadoria, assim como do nexo causal entre o dano invocado- mercadoria inutilizada - e esse mesmo transporte via mar.
11- Esta seria a única configuração possível da accão e da causa de pedir quanto à ora Recorrente: (i) no âmbito do contrato de seguro celebrado, a mesma apenas poderá ser demandada pelo próprio tomador do seguro se tiver incumprido alguma obrigação contratual (ou seja, no âmbito da responsabilidade civil contratual), o que a própria A. reconhece expressamente no art.° 62° da p.i.; (ii) não foi formulada na p.i. qualquer dúvida quanto à existência de responsabilidade da ora Recorrente - não há, aliás, qualquer formulação de um pedido subsidiário.
12-Estando indubitavelmente em causa nos autos a discussão de uma avaria particular na mercadoria transportada, no âmbito de contrato de seguro que tem por objecto carga transportada a bordo de um navio, não poderão subsistir dúvidas de que apenas o Tribunal Marítimo de Lisboa será competente para julgar a acção.
13- De acordo com o preceituado no artigo 113.° da Lei n.° 62/2013, de 26 de agosto, (Lei da Organização do Sistema Judiciário), e no artigo 4.° da Lei n.° 35/86, de 04 de Setembro, (Lei dos Tribunais Marítimos), compete aos Tribunais Marítimos conhecer das questões relativas aos “Contratos de transporte por via marítima “contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas:” assim como as questões relativas a "avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo;” tudo nos termos das respectivas alíneas c), I) e j) de ambos os artigos.
14-O acórdão ora recorrido viola, deste modo, o disposto no referido art.° 113° da Lei da Organização do Sistema Judiciário, o que determinou o presente recurso.
Pede que seja dado provimento ao presente recurso de revista e, em consequência, revogado o acórdão ora recorrido, mantendo-se o decidido em 1a Instância.
Também a Seafresh recorreu de revista, formulando as seguintes conclusões:
“A) Na selecção de matéria de facto e direito para classificar um incumprimento contratual por banda da Ré Seafresh do famigerado “Acordo Geral de Fornecimento”, existem premissas contratuais decorrentes da natureza do negócio e práticas comerciais no ramo de actividade, que a A. bem conhece, mas que, preferiu omitir na presente acção, desde logo na Petição Inicial.
B)A integralidade do denominado “Acordo Geral de Fornecimento” junta aos autos em sede de Contestação pela R. Seafresh, não deixa dúvidas que aquele, constitui apenas um (1) dos elementos da relação jurídica que constitui a globalidade do “Contrato” de compra e venda internacional de mercadorias, com transporte marítimo, firmado entre as partes
C) O CONTRATO resulta da justa composição de vários documentos, e não per si, do Acordo Geral de Fornecimento, como a A. pretendeu demostrar não só na petição inicial, como nas alegações que produziu.
D) Na - Nota de Encomenda- a qual constitui elemento essencial do CONTRATO em crise, emitida pela A. e entregue à R. SEAFRESH, foram descritos além da mercadoria/produtos pretendidos, a documentação necessária, condições de pagamento, Inconterms do transporte e respectivas caraterísticas do mesmo, indicação/selecção das linhas marítimas e respectivas instruções de embarque.
E) Todo o conjunto de procedimentos e regras do circuito de importação- entre outros - são do profundo conhecimento da A, que aliás, subordina a aprovação e execução do fornecimento da mercadoria, caso a caso, de acordo com as instruções que impõe a R. Seafresh.
F) Falece a argumentação da A. quando refere “aos quatro ventos” nos vários articulados que produziu, " que não interveio em qualquer contrato de transporte marítimo" já que existiram, além das respectivas instruções vinculativas que constam da respectiva nota encomenda e condições de transporte a que Seafresh está adstrita em sede pré-contratual, como também, na relação e varias comunicações que promoveu directamente com a R. Maersk após entrega da mercadoria, como demostra a documentação junta aos autos.
G) Perante o contexto de relações de direito comercial marítimo, sem o qual não é possível materializar o fornecimento da mercadoria, do ponto A ao ponto B, salvo o devido respeito, cumprirá, ao Tribunal Marítimo, detendo competência especializada, para averiguar e ajuizar das circunstâncias e nexo causal entre o dano, eventual incumprimento dos deveres das Rés e, consequente imputabilidade dos agentes no circuito da mercadoria em crise.
H) O transporte marítimo e as relações dos respectivos agentes, obedecem a regras próprias e peculiares que revestem complexidade técnica e científica inerente à actividade de navegação marítima.
I) O Tribunal de 1° Instância, que fez uma correctíssima integração da matéria de facto e direito nos autos aos preceitos legais aplicáveis, quando refere, Funda assim, o seu pedido em responsabilidade civil contratual, a qual no caso concreto pressupõe, não de forma instrumental como defende a A., mas de forma essencial, averiguar das condições do transporte marítimo da mercadoria, assim como do nexo causal entre o dano invocado-mercadoria inutilizada - e esse mesmo transporte via mar.
J) A A. teve intervenção, em sede pré-contratual e pós contratual na celebração do contrato de transporte marítimo do qual faz parte integrante o “Contrato" que previa o fornecimento da mercadoria que encomendara à R. Seafresh, como demostra a documentação junta aos autos.
K) Tendo ainda em conta as demais circunstâncias disponíveis pelo Tribunal que relevem sobre a exacta configuração da causa, que se deve guiar a tarefa da determinação do tribunal competente para dela conhecer, tal como resulta do litígio, deverá ser o Tribunal Marítimo, o competente para conhecer do seu objecto.”
Pede também que seja julgado procedente o presente recurso c, em consequência, revogada a decisão do Tribunal da Relação, mantendo-se a decisão do Tribunal de 1ª instância.
Igualmente a Maersk recorreu de revista, rematando a alegação com as seguintes conclusões:
“1. A configuração da causa de pedir feita pela autora nos presentes autos é a que decorre da petição inicial, sendo que contra a ora recorrente tal causa assenta expressa, exclusiva e abundantemente no instituto da responsabilidade civil contratual;
2- Após citação da Ré Maersk Portugal, cumpre atender ao estatuído no Art0. 260.° do C.P.C. (Principio da Estabilidade da Instância), não sendo admissível que a causa de pedir seja alterada por interpretações expendidas pela autora em sede de réplica em frontal oposição com a causa de pedir invocada na p.i.;
3- Ao decidir que a causa de pedir contra a recorrente Maersk Portugal consiste na responsabilidade civil extracontratual, com fundamento no alegado pela autora na réplica, o douto acórdão recorrido violou desde logo o disposto no Art0. 260.° do C.P.C.:
4- Não houve qualquer acordo entre as partes quanto a uma eventual alteração da causa de pedir, nem esta poderia ser alterada sem tal acordo expresso, pelo que a decisão aqui sob recurso ao decidir pela competência do tribunal de primeira instância violou ainda os Artigos 264.° e 265.° do C.P.C.;
5- Consequentemente, não tendo havido alteração da causa de pedir nem sendo admissível a sua alteração unilateralmente, o acórdão impugnado violou do mesmo passo o princípio da estabilidade da instância;
6- Violou também o disposto na alínea c) do n.° 1 do Artigo 113.° do L.O.S.J. o qual determina a competência exclusiva do Tribunal Marítimo de Lisboa para dirimir questões relativas a contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal;
7- Ainda que estivesse em causa a responsabilidade extracontratual da ora recorrente, o que manifestamente não ocorre, o acórdão aqui impugnado ao ter decidido como decidiu violou outrossim o Artigo 113.° n.° 1 alínea s) da L.O.S.J.”
E também, como as outras recorrentes, pede a revogação da decisão do tribunal de segunda instância e que se mantenha o decidido em primeira instância relativamente à incompetência absoluta.
Respondeu a autora/apelante/recorrida sustentando a improcedência de todos os recursos interpostos.
Cumpre decidir:
A factualidade pertinente para a decisão é a constante do presente relatório para o qual se remete.
Como se viu, o tribunal de 1ª instância decidiu julgar procedente a excepção dilatória de incompetência material do tribunal e julgá-lo materialmente incompetente para conhecer da presente acção, absolvendo-se os réus da instância.
Para tanto, ponderou que, no âmbito do acordo geral de fornecimento, a ré Seafresh se obrigou perante a autora ao fornecimento, transporte e entrega em Luanda de 20 toneladas de camarão e miolo de camarão que chegaram ao destino apodrecidos e que a autora celebrou com a 3ª ré Seguradoras Unidas um contrato de seguro de transporte de mercadorias, concluindo que a autora fundou o seu pedido em responsabilidade civil contratual, que pressupõe, de forma essencial, averiguar as condições do transporte marítimo da mercadoria, assim como do nexo causal entre o dano invocado- mercadoria inutilizada - e esse mesmo transporte via mar. E, com recurso ao art. 113º da LOSJ e ao art. 4º da Lei nº 35/86 de 4.9, considerou que, por se estar perante um contrato de transporte (e fornecimento) por via marítima e em face de uma indemnização por danos causados por navio, a competência para conhecer da presente acção competia exclusivamente ao Tribunal Marítimo.
Não entendeu assim a Relação, para a qual a autora assentou o pedido no contrato de fornecimento celebrado entre si e a ré Seafresh, sem que a autora tenha intervindo na celebração de qualquer contrato de transporte marítimo que haja sido celebrado entre a ré Maersk e a ré Seafresh, tendo a ré, Seguradoras Unidas, sido accionada com base num contrato de seguro, através do qual foram transferidos determinados riscos de transporte de mercadorias constantes da respectiva apólice. Para a Relação, a autora demandou a ré Seafresh no âmbito de uma responsabilidade contratual e a ré Maersk, à cautela, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual, por haver dúvidas sobre a eventual responsabilidade de terceiros no contrato denominado «Acordo Geral de Fornecimento». E, considerando que, tal como a autora configurou a acção, a mesma não articulou quaisquer factos que permitam estabelecer conexão com as matérias integradoras da competência do Tribunal Marítimo, julgou o tribunal a quo competente em razão da matéria para a apreciação do litígio.
Deste entendimento divergem as recorrentes, com fundamentos diferentes (que se apreciarão em conjunto), embora se antecipe, desde já, que a competência do tribunal judicial deve ser declarada, ainda que por razões não totalmente coincidentes com as do acórdão recorrido.
Em primeiro lugar, deve recordar-se que a competência em razão da matéria se afere pelos termos em que o autor propõe a acção (pedido e causa de pedir), ou seja, pela relação jurídica tal como ele a configura na petição (cfr., Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, pág. 88; Acs. STJ de 6.5.2010 e de 30.06.2014, em www.dgsi.pt), sendo que, para o efeito, deve relevar também a vertente subjectiva, respeitante às partes (cfr. Ac. STJ de 13.10.2016, que cita, em abono, o acórdão do Tribunal de Conflitos, de 19.12.2012, proferido no processo n.º 20/12 e acessível na Internet).
Por outro lado, deve ter-se em conta que a competência dos tribunais comuns é residual (art. 40º, n.º 1 da LOSJ e art. 64º do CPC), pelo que importa, deste modo, verificar se a causa, delimitada pelo pedido e pela causa de pedir, se integra em qualquer das questões atribuídas à competência dos tribunais marítimos, nos termos do nº 1 do art. 113º da LOSJ [que replica, aliás, o art.. 4º da Lei nº 35/86, de 4.9, que instituiu os Tribunais Marítimos, até à al. s)]: “1 - Compete ao tribunal marítimo conhecer das questões relativas a: a) Indemnizações devidas por danos causados ou sofridos por navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, ou resultantes da sua utilização marítima, nos termos gerais de direito; b) Contratos de construção, reparação, compra e venda de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, desde que destinados ao uso marítimo; c) Contratos de transporte por via marítima ou contrato de transporte combinado ou multimodal; d) Contratos de transporte por via fluvial ou por canais, nos limites do quadro n.º 1 anexo ao Regulamento Geral das Capitanias, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/72, de 31 de Julho; e) Contratos de utilização marítima de navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, designadamente os de fretamento e os de locação financeira; f) Contratos de seguro de navios, embarcações, outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo e suas cargas; g) Hipotecas e privilégios sobre navios e embarcações, bem como quaisquer garantias reais sobre engenhos flutuantes e suas cargas; h) Processos especiais relativos a navios, embarcações, outros engenhos flutuantes e suas cargas; i) Procedimentos cautelares sobre navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, respectiva carga e bancas e outros valores pertinentes aos navios, embarcações e outros engenhos flutuantes, bem como solicitação preliminar à capitania para suster a saída das coisas que constituam objecto de tais procedimentos; j) Avarias comuns ou avarias particulares, incluindo as que digam respeito a outros engenhos flutuantes destinados ao uso marítimo; k) Assistência e salvação marítimas; l) Contratos de reboque e contratos de pilotagem; m) Remoção de destroços; n) Responsabilidade civil emergente de poluição do mar e outras águas sob a sua jurisdição; o) Utilização, perda, achado ou apropriação de aparelhos ou artes de pesca ou de apanhar mariscos, moluscos e plantas marinhas, ferros, aprestos, armas, provisões e mais objectos destinados à navegação ou à pesca, bem como danos produzidos ou sofridos pelo mesmo material; p) Danos causados nos bens do domínio público marítimo; q) Propriedade e posse de arrojos e de coisas provenientes ou resultantes das águas do mar ou restos existentes, que jazam nos respectivos solo ou subsolo ou que provenham ou existam nas águas interiores, se concorrer interesse marítimo; r) Presas; s) Todas as questões em geral sobre matérias de direito comercial marítimo; t) Recursos das decisões do capitão do porto proferidas em processo de contraordenação marítima. 2 - A competência a que se refere o número anterior abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões. 3 - Nas circunscrições não abrangidas pela área de competência territorial do tribunal marítimo, as competências referidas nos números anteriores são atribuídas ao respectivo tribunal de comarca. “
Ora, revertendo ao caso sub judice, constata-se que a autora celebrou um acordo geral de fornecimento com a ré Seafresh em 4.12.2013, mediante o qual encomendou a esta o fornecimento, transporte e entrega em Luanda de 20 toneladas de camarão à CND, sociedade de direito angolano que faz parte do grupo Teixeira Duarte. Nos termos do ponto 3.1, al. a) do referido acordo, competia à fornecedora Seafresh “ fornecer todos os produtos nas condições contratualmente estabelecidas, (…) ”.
Por sua vez, a Seafresh subcontratou a Maersk para efectuar o transporte (marítimo), o que ocorreu em 14.8.2014, vindo a verificar-se, depois do desalfandegamento, que o produto transportado se encontrava estragado.
Não existindo, assim, qualquer vínculo contratual entre a autora e a Maersk, que efectuou o transporte, o fundamento de direito para a demanda da Maersk não pode ser, pois, o da responsabilidade contratual.
Aliás, neste capítulo, a autora é evasiva, atribuindo os danos (a deterioração dos produtos) ao “incumprimento das obrigações da fornecedora e da transportadora”.
Argumenta-se, a propósito, na revista da ré seguradora, que a perda sofrida (com a deterioração do produto) é uma avaria particular, para efeitos da al. j) do art. 113º da LOSJ, que determina a competência do tribunal marítimo. E, na verdade, nos termos do art. 634º do Código Comercial “ são reputadas avarias todas as despesas extraordinárias feitas com o navio ou com a sua carga conjunta ou separadamente, e todos os danos que acontecem ao navio e carga desde que começam os riscos do mar até que acabam” “; acrescentado o art. 635º do mesmo Código: “ as avarias são de duas espécies: avarias grossas ou comuns, e avarias simples ou particulares (…) § 2º São avarias simples ou particulares as despesas causadas e o dano sofrido só pelo navio ou só pelas fazendas”.
Em relação a este aspecto, a autora não alegou que a avaria tenha ocorrido no mar, nem alegou que a mercadoria estava boa quando foi carregada e se deteriorou depois no mar. Não alegou explicitamente qualquer problema nas condições do transporte marítimo da mercadoria.
Porém, tendo alegado que a ré Maersk, que efectuou o transporte marítimo, incumpriu as suas obrigações de transportadora, fundamentou a responsabilidade desta no contrato de transporte marítimo (apesar de a autora não ter intervindo nele) e, implicitamente, na avaria (marítima) da mercadoria. Se a causa de pedir, manifestamente insuficiente (por falta de concretização) ditará a improcedência da acção, é questão relativa ao mérito da causa, de que não importa agora cuidar. O que importa é que a causa de pedir parece indiciar, na perspectiva da autora, a responsabilidade da 2ª ré fundamentada no contrato de transporte marítimo e na avaria da mercadoria durante esse transporte. Pelo que por aqui, se a causa se limitasse apenas à 2ª ré e ao pedido contra ela dirigido, admitiríamos a atribuição da competência aos tribunais marítimas, nos termos não apenas da al. j) mas ainda da al. c) do art. 113º da LOSJ.
Sucede, porém, que a Seguradoras Unidas S.A, com a qual a autora celebrou o contrato de seguro, também é demandada. Com efeito nos termos do art. 14 da petição a autora alegou que “contratou um seguro de transporte de mercadorias, no âmbito da apólice de grupo nº,,,, subscrita junto da ré Seguradoras Unidas em conformidade com a respectiva apólice, condições particulares e condições gerais (doc. nº 6, 7 e 8).
Argumenta-se que esse contrato é um seguro de transporte de mercadorias, que, no caso em análise, incide especificamente sobre carga transportada por via marítima, a bordo de um navio.
Acontece, no entanto, que, o contrato de seguro em causa não se insere na previsão de qualquer das alíneas do art. 113º da LOSJ, de acordo, aliás, com o que se escreve no sumário do Ac. STJ de 31.3.98, Martins da Costa, em www.dgsi.pt: “Para a acção em que se pede a condenação da seguradora em indemnização por deterioração de mercadorias ocorrida durante o transporte marítimo efectuado por outra empresa, com base em contrato de seguro celebrado entre a autora e a ré, são materialmente competentes os tribunais cíveis e não os tribunais marítimos”. Ademais, o seguro garante as perdas e os danos sofridos por bens devidamente identificados, durante o seu transporte, no percurso normal da viagem segura, independentemente de a mesma ser transportada ou não por via marítima (cfr. os riscos cobertos, fls. 20 e 22).
Em resumo, estamos perante uma causa de pedir complexa, que aponta para a competência do tribunal comum para o conhecimento dos pedidos dirigidos contra a 1ª e 3ª rés e a competência dos tribunais marítimos para o conhecimento do pedido dirigido contra a 2ª ré.
Ora, numa tal hipótese tem-se entendido que, para o efeito da determinação da competência material, deve relevar, em caso de causa de pedir complexa, o seu elemento essencial ou preponderante (cfr., ainda, o sumário do citado Ac. STJ de 31.3.98). E o elemento preponderante da causa de pedir, no caso vertente, não é o contrato de transporte marítimo celebrado entre a ré Seafresh e Maersk nem a avaria marítima, que fundamentam, aparentemente, a responsabilidade não contratual da ré Maersk perante a autora, mas o incumprimento do contrato de fornecimento pela 1ª ré, que não forneceu os produtos em condições e a celebração do contrato de seguro com a 3ª ré, que são questões subtraídas à competência cível dos tribunais marítimos.
Assim, deve ser declarado competente o tribunal judicial para a presente causa.
Síntese conclusiva:
“I- A competência em razão da matéria afere-se pelos termos em que o autor propõe a acção (pedido e causa de pedir), ou seja, pela relação jurídica tal como ele a configura na petição, sendo que, para o efeito, deve relevar também a vertente subjectiva, respeitante às partes;
II- O pedido dirigido contra a 1ª ré tem apenas por base o acordo geral de fornecimento e transporte e entrega dos camarões; o pedido dirigido contra a 2ª ré tem por fundamento o incumprimento das suas obrigações de transportadora, no âmbito do contrato de transporte marítimo, celebrado entre a 1ª e a 2ª ré, que fez o referido transporte, e a implícita avaria (marítima) da mercadoria; o pedido dirigido contra a 3ª ré seguradora tem apenas por base os danos sofridos durante o transporte (seja ele marítimo ou não), garantidos pela seguradora;
III- A causa de pedir é, portanto, complexa, apontando, por um lado, para a competência material do tribunal comum para o conhecimento dos pedidos dirigidos contra a 1ª ré e a 3ª ré, nos termos do artigo 40º nº 1 da LOSJ e, por outro, a dos tribunais marítimos para o conhecimento do pedido dirigido contra a 2ª ré, nos termos conjugados das al. c) e j) do nº 1 do art. 113º da LOSJ;
IV- Nessa hipótese, para efeitos de determinação da competência material do tribunal apenas, deve relevar, o elemento essencial ou preponderante da causa de pedir complexa;
V- E o elemento preponderante da causa de pedir, no caso vertente, não é o contrato de transporte marítimo celebrado entre a ré Seafresh e a ré Maersk nem a avaria marítima, que fundamentam, aparentemente, a responsabilidade não contratual da ré Maersk perante a autora, mas o incumprimento do contrato de fornecimento pela 1ª ré, que não forneceu os produtos em condições, e a celebração do contrato de seguro com a 3ª ré, questões estas que estão subtraídas à competência cível dos tribunais marítimos.
VI -Consequentemente, deve ser declarado competente para a apreciação da causa o tribunal judicial.”
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelas recorrentes.
*
Lisboa, 30 de Junho de 2020
O relator António Magalhães
(Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Dr. Jorge Dias e Dr.ª Maria Clara Sottomayor, que não puderam assinar).