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ECLI:PT:STJ:2020:289.12.2TVPRT.P1.S1

Relator: Ilídio Sacarrão Martins

Descritores: Responsabilidade médica; Cálculo da indemnização; Danos futuros; Equidade; Danos não patrimoniais; Dupla conforme parcial; Recurso de revista; Admissibilidade de recurso

Processo: 289/12.2TVPRT.P1.S1

Data do Acordão: 21/05/2020

Votação: Unanimidade

Texto Integral: S

Meio Processual: Revista

Decisão: Concedido provimento parcial e não conhecimento parcial da revista

Indicações eventuais: Transitado em julgado

Área Temática: 7ª Secção (Cível)

Sumário

I - A fixação da indemnização por danos futuros deve calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no art. 566.º, n.º 3, do CC.

II - A aferição sobre a existência de dupla conforme e, portanto, sobre a admissibilidade ou não do recurso normal de revista, deve fazer-se mediante o confronto de cada um dos segmentos decisórios.

III - Apresentando-se a decisão da Relação, no que toca à quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor como mais favorável do que a da 1.ª instância, dado que aquela os fixou em € 35 000,00 e a Relação em € 40 000,00, verifica-se, nesta parte, uma situação de dupla conformidade, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista interposto pelo autor.

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

 

 

 

I - RELATÓRIO

 

O autor AA, intentou acção declarativa sob a forma ordinária contra o réu BB, pedindo a condenação deste na quantia de € 195.214,05 a título de danos patrimoniais[1] e de € 90.000,00 a título de danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros desde a citação e até integral pagamento.

 

Em síntese, alegou que o réu lhe efectuou uma cirurgia estética na zona abdominal – lipoaspiração – sem que tivesse tomado todos os cuidados que lhe eram exigidos, com o que lhe causou perigo de vida, bem como todo um conjunto de danos ulteriores, dores, angústia, tristeza.

A conduta do réu espelhou um comportamento negligente e imprudente.

 

O réu contestou, pugnando pela não verificação de uma situação de erro médico e sublinhou o comportamento omissivo do autor que contribuiu, quer para a ocorrência da lesão, quer para o agravamento dos danos.

Por isso, pediu a improcedência da acção.

Simultaneamente, requereu a intervenção principal provocada da “AXA Portugal – Companhia de Seguros, SA”, com a qual havia celebrado contrato de seguro referente ao exercício da sua actividade profissional de médico.

 

O incidente de intervenção principal foi admitido e a interveniente “AXA Portugal” apresentou contestação, na qual remeteu para a apresentada pelo réu BB.

 

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, tendo condenado o réu e a interveniente a pagarem ao autor a quantia global de € 96.214,05, a que acrescem juros de mora desde a citação no que toca à importância de € 61.214,05 fixada a título de indemnização ao autor por danos patrimoniais e desde a prolação da presente sentença quanto à quantia de € 35.000,00, atribuída a título de indemnização por danos não patrimoniais e em ambos os casos até integral pagamento.

 

A interveniente Ageas Portugal- Companhia de Seguros, SA apelou para o Tribunal da Relação do Porto, pugnando pela absolvição do pedido. Se assim se não entender, deve ser alterado o montante indemnizatório fixado, que é exagerado.

 

O réu BB também apelou, pedindo que seja revogada a sentença e substituída por acórdão que absolva o réu do pedido.

 

O autor AA apresentou contra-alegações e veio interpor, ao abrigo do disposto no artigo 633º nº 2 do Código de Processo Civil, recurso subordinado.

 

Nas contra-alegações, o autor pede que seja mantido o montante dos danos patrimoniais.

No recurso subordinado pediu que seja atribuído o montante peticionado de € 90.000,00.

 

O ACÓRDÃO da Relação de 12.11.2019 proferiu a seguinte decisão:

“Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo réu BB e parcialmente procedentes o recurso de apelação interposto pela interveniente “Ageas Portugal – Companhia de Seguros, SA” e o recurso subordinado interposto pelo autor AA e, em consequência, altera-se o decidido, condenando-se o réu e a interveniente a pagarem ao autor a importância global de 86.214,05€ (oitenta e seis mil duzentos e catorze euros e cinco cêntimos), sendo 46.214,05 (quarenta e seis mil duzentos e catorze euros e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais e 40.000,00€ (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais.

No mais – relativamente a juros – mantém-se o decidido”.

 

O autor interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

A. Atenta a factualidade assente – culpa exclusiva do réu, idade do autor (53 anos e 11 meses à data do facto lesivo), incapacidade permanente geral de que ficou a padecer (5%), rendimento do trabalho – e considerando, ainda, a taxa de juro hoje praticada (menos de 1% ao ano), a idade de reforma da vida activa laboral (70 anos) e a esperança média de vida da população portuguesa residente (77.7 anos para os indivíduos do sexo masculino), seria justa, equilibrada e objectiva a quantia de 60.000,00 € como indemnização do dano patrimonial futuro sofrido pelo autor, decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer.

B. Deve, por isso, a decisão da primeira instância ser mantida na íntegra no que respeita à fixação do dano patrimonial futuro sofrido pelo autor.

C. Visto o dramático quadro descrito na factualidade assente, exclusivamente imputável ao réu e à sua actuação e cujas consequências perseguirão o autor até ao final dos seus dias, nada mais será necessário acrescentar a este recurso para demonstrar a manifesta insuficiência do valor atribuído a título de danos não patrimoniais, de tal forma escasso que torna a reparação meramente simbólica e deixa impune o seu autor.

D. Viola assim a douta decisão em crise o disposto e exigido nos art.º 483º, 496º e 562º do CC.

E. Deve, por isso, o douto tribunal ad quem alterar o quantum da indemnização devida ao autor, a título de danos não patrimoniais, fixada pelo tribunal a quo, pois só assim se pode considerar como devidamente valorado o sofrimento, a angústia, o medo, o receio, a tristeza, desfiguração e as mudanças impostas e sentidas pelo autor.

F. Não devendo ser fixado em montante global inferior a 90.000,00 €, tendo em devida e atenta consideração, quer o dano – grave e permanente – sofrido pelo autor; a função punitiva inerente à indemnização por danos não patrimoniais, a capacidade económica do lesante e a igualdade jurisprudencial que deve respaldar a fixação de montantes indemnizatórios.

 

Termina, pedindo que seja concedido provimento ao recurso e, por via disso, revogado o douto acórdão recorrido e substituído por decisão que condene os recorridos nos termos peticionados.

 

A ré Ageas Portugal contra-alegou, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:

1ª - A dupla conforme surge por referência a uma conformidade substancial, que se verifica perante uma decisão da Relação que mantenha intocável a matéria de facto julgada provada pela primeira instância e bem assim conheceu de Direito com fundamento no mesmo quadro normativo.

2ª - Assim é “por exemplo, no caso de decisões de condenação numa prestação pecuniária em que o réu não poderá recorrer da decisão da Relação que, dando em parte provimento ao recurso, o condene em prestação apenas menor do que a da primeira instância, não podendo, por seu turno, o autor recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça se, com o seu recurso para a Relação, viu subir a indemnização que na primeira instância lhe fora reconhecida, embora não tivesse atingido o por si peticionado” (Acórdão do STJ de 8 de Fevereiro de 2018, procº n.º 22083/15.9T8PRT.

3ª - Se o autor não poderia recorrer da decisão da Relação se esta fosse absolutamente idêntica à proferida em primeira instância, não é coerente admitir, por maioria de razão, que ele possa interpor revista de uma decisão que lhe é mais favorável (MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, Dupla conforme: critério e âmbito da Conformidade, «Cadernos de Direito Privado», n.º 21, pp. 24-25).

4ª - Tal como se extrai da douta petição inicial, o autor formula o seu pedido de condenação diferenciando dois tipos de danos, que também quantifica de forma independente.

5ª - O próprio autor enquanto apelante havia-se conformado com a parte decisória da sentença que condenara a ré no pagamento de € 60.000,00 para ressarcir o dano biológico, tendo apenas apelado no que concerne ao valor arbitrado para compensar os danos não patrimoniais, fixados em primeira instância em € 35.000,00.

6ª - Recurso de apelação que foi julgado parcialmente procedente, alterando a indemnização fixada para os danos não patrimoniais em € 40.000,00 e, no que concerne à apelação interposta pela aqui recorrida, modificou o valor arbitrado para ressarcir o dano biológico para € 45.000,00.

7ª - «Nos casos em que a parte dispositiva da decisão contenha segmentos decisórios distintos e autónomos, o conceito de dupla conforme terá de se aferir separadamente relativamente a cada um deles» (Acórdão do STJ de 26.6.2014, processo 70/10.3T2AVR.C1.S1.

8ª - Esta visão das coisas é, na verdade, a única concebível à luz da dupla conforme pensada em 2007 e refinada em 2013, pois só assim se consegue a procurada racionalização no acesso a este Supremo Tribunal de Justiça e bem assim, vedar a possibilidade de recurso de revista ordinária quando a decisão da Relação já é mais vantajosa ou idêntica para o recorrente no que àquele dano concerne.

9ª «Nesta figurada hipótese – e como vem sendo defendido tanto a nível jurisprudencial, como doutrinário -, a aferição sobre a existência de dupla conforme e, portanto, sobre a admissibilidade ou não do recurso normal de revista, deve fazer-se mediante o confronto de cada um desses segmentos.

Destarte, e volvendo ao caso ora ajuizado, temos que, tal como sustentado pela ré/recorrente, depara-se-nos uma situação de dupla conformidade, obstativa por isso de correspondente recurso de revista, no tocante ao arbitramento da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pelo acidentado motociclista, considerado o decidido, a tal respeito, na sentença e no subsequente Acórdão ora recorrido.» (Acórdão do STJ de 23.05. 2019, processo n.º 2222/11.0TBVCT.G1.S1.

10ª - No caso dos autos o recorrente é beneficiado com o acórdão da Relação do Porto relativamente à decisão da primeira instância, o autor obtém mais do que conseguiu em primeira instância para ressarcir os danos não patrimoniais, pelo que não pode o presente recurso de revista apreciar o decidido quanto a este segmento decisório por se formar quanto a este dupla conforme. O autor também não poderia recorrer de um acórdão da Relação que tivesse mantido a – para ele mais desfavorável – decisão de primeira instância.

11ª - Se assim se não entender, o que apenas por dever de ofício se concede, é sabido que quanto aos danos não patrimoniais a única condição de compensabilidade é a sua gravidade, o que lhes confere um carácter algo indeterminado e de difícil quantificação.

12ª - «Quando o cálculo do montante a liquidar alcançado haja assentado decisivamente em juízos de equidade, ao Supremo Tribunal de Justiça não compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar em função da ponderação das circunstâncias concretas do caso – já que a aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito» - mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação da individualidade do caso concreto «sub juditio»» (Acórdão do STJ de 09.01.2019, processo n.º 1691/07.7TTLSB.1.L1.S1.

13ª - O Tribunal da Relação do Porto observou todos os ditames de origem legal e jurisprudencial e justificou o valor adequado segundo um juízo de equidade.

14ª - O autor dissente do valor quantificado para a compensação dos danos não patrimoniais, mas não fundamenta a razão da sua discordância.

15ª - Inexistindo motivo para que este Supremo Tribunal venha a rever – e muito menos a censurar - a decisão contida no acórdão recorrido.

16ª - Atendendo à matéria de facto provada, é indiscutível que o recorrente não ficou afectado na sua capacidade de trabalho, apenas se provou que, em consequência do acidente, aquele ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixado em 5 pontos, compatível com o exercício da actividade habitual, mas que implica esforços suplementares.

17ª - O douto acórdão, injustamente posto em crise com o presente recurso, refere que o dano biológico sofrido pelo autor tem uma componente patrimonial – o dano funcional permanente de 5% - que não se repercute nos seus ganhos de forma directa, mas que implica para ele um maior esforço no exercício da sua actividade profissional.

18ª - Contrariamente ao que resulta das conclusões do recorrente, a situação em apreciação nos autos não é idêntica àquelas que cita na motivação da presente revista, não pode referir-se estar em causa um dano patrimonial futuro em sentido estrito.

19ª - O Défice Funcional Permanente de 5 pontos de que o recorrente ficou a padecer não tem repercussão na sua força de trabalho, ainda que exista um maior esforço no exercício da profissão habitual, não é possível concluir-se pelo condicionamento futuro da carreira profissional do recorrente, nem tão pouco pela perda de rendimento futuro.

20ª - «O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho (se for o caso pode ter lugar a indemnização pelo dano patrimonial reflexo que dele decorre), antes determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as actividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce uma profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano.» (Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.06.2013, processo n.º 2092/11.8/2AVR.C1.

21ª - «Tendo o ajuizamento no cálculo da indemnização levado a efeito por qualquer das instâncias – “máxime” pela Relação – se fundado, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos “minimamente uniformizados” e, portanto, compaginando-se com a exigível segurança na aplicação do direito e demais imperativos decorrentes do princípio da igualdade, deverá tal juízo prudencial e casuístico, em princípio, ser mantido pelo STJ» (Acórdão do STJ de 18.10.2018, processo 3643/13.9TBSTB.E1.S1.

22ª - Os critérios de equidade utilizados pela Relação estão assentes em entendimentos “minimamente uniformizados”, conforme resulta da fundamentação da decisão em apreciação, compaginando-se com a exigível segurança na aplicação do direito e decorrentes do princípio da igualdade, pelo que os valores de cálculo indemnizatório fixados devem ser mantidos, inexistindo a pretendida violação do disposto nos artigos 483.º, 496.º e 562.º, do Código Civil.

 

Termina, pedindo que deve ser julgado inadmissível o presente recurso de revista no que concerne à reapreciação da indemnização fixada para ressarcir os danos não patrimoniais, sendo que, em todo o caso, sempre deve ser negado provimento ao recurso interposto com todas as consequências legais.

Colhidos os vistos, cumpre decidir

 

II - FUNDAMENTAÇÃO

 

A) Fundamentação de facto

 

Mostra-se assente a seguinte matéria de facto:

A) No início do mês de Novembro de 2009, após consulta médica com o réu, na Clínica …., sita na Rua …, nº …, …, …, onde este exerce a sua actividade, autor e réu acordaram em que este procedesse a uma cirurgia de lipoaspiração abdominal e torácica.

B) Tal acto médico que se iniciou com anestesia epidural e terminou com anestesia geral veio a ter lugar com a intervenção pessoal do réu no dia 23 de Novembro de 2009, na Clínica …, sendo que o réu foi assistido por uma enfermeira e uma anestesista.

C) Foi aplicado ao autor um colete de protecção.

D) No dia 24 de Novembro de 2009, após retirados os drenos ao autor, o réu deu-lhe alta médica, nessa mesma data, e receitou-lhe o antibiótico “Augmentin” e o analgésico “Paracetamol”.

E) Já em casa, o autor sentiu dores intensas que motivaram a presença do réu para aí o observar, o que ocorreu por volta das dezanove horas desse mesmo dia.

F) Nessa visita, o réu observou o autor na zona intervencionada, tendo aquele concluído e garantido que estava tudo bem, e que as dores sentidas pelo autor eram normais após tal tipo de intervenção no domínio da cirurgia estética.

G) Por volta das cinco horas da madrugada do dia 25 de Novembro de 2009 o autor, porque estava com muitas dores, deslocou-se à urgência da “Casa de Saúde da ...”.

H) Após permanecer cerca de 3 horas na “Casa de Saúde da ...” o autor regressou a casa.

 I) No final do dia 25 de Novembro de 2009, protegido com o colete de protecção, o autor viajou por via aérea até ao … .

J) Entre a interveniente e o réu foi celebrado um contrato de seguro titulado pela apólice nº 008….8, do ramo responsabilidade civil, pelo qual aquela seguradora garante a responsabilidade civil do réu inerente ao exercício da sua profissão de médico.

K) Resulta do artº 5º, alínea i), das condições gerais do contrato de seguro que este não garante a responsabilidade civil emergente de perdas indirectas de qualquer natureza, lucros cessantes e paralisações.

L) O autor era treinador da equipa do … .

M) O autor assinou documento, no qual dá o seu consentimento e no qual expressa designadamente: “A intervenção foi-me explicada em detalhe. Também foi referido a existência de métodos de tratamento alternativos e vantagens e desvantagens de cada um. Fui advertido que, embora se espere obter os melhores resultados, complicações e contratempos não podem ser previstos, e portanto não existe garantia expressa ou implícita quanto à minha satisfação ou resultado da cirurgia ou laser. O médico explicou-me quais são as complicações ou problemas mais comuns que podem surgir tanto durante a cirurgia ou tratamento laser, como no período de recuperação, os quais entendo perfeitamente”.

N) Aquando do internamento foi verificado “Choque séptico no contexto de fasceite abdomino-torácico e escrotal na sequência provável de lipoaspiração realizada quatro dias antes”.

O) Após estabilização, foi o autor, logo no dia 27 de Novembro de 2009, intervencionado de urgência no bloco operatório, onde se verificou haver perfuração do ceco.

P) Aquando e por causa de tal intervenção, o autor necessitou de suporte respiratório e cardiovascular.

Q) Seguiram-se vários desbridamentos cirúrgicos levados a efeito pelas equipes de urgência de cirurgia geral do hospital acima referido.

R) Só em 3 de Dezembro de 2009 se procedeu ao encerramento da cavidade abdominal e enxerto cutâneo da região anterior direita.

S) Em 9 de Dezembro de 2009 procedeu-se a 2ª plastia com enxerto cutâneo.

T) Em 30 de Dezembro de 2009 procedeu-se a “enxerto de áreas cruentas remanescentes”.

U) Na época de 2010-2011 o autor foi treinador do … .

V) O autor voltou a ser treinador do … em meados de 2012.

W) No dia 26 de Novembro, já na sua residência no …, o autor sentiu que não tinha condições de se apresentar ao trabalho e acabou por permanecer em repouso nesta residência, no … .

X) Nesse mesmo dia, o autor começou a detectar um cheiro intenso e desagradável, pelos tubos de dreno e uma tumefacção anormal na zona do escroto, sendo detectável inchaço nos testículos.

Y) Através dos orifícios dos drenos via-se um corrimento de cor e textura estranhas.

Z) Três dias foi o período previsto pelo réu como o exigível para retomar a sua normal actividade profissional.

AA) Perante os sintomas acima relatados, o autor dirigiu-se ao Hospital …., no …, onde ficou imediatamente internado no Serviço de Medicina Intensiva.

BB) No total, o autor esteve internado durante seis semanas, desde o dia 27 de Novembro de 2009 a 8 de Janeiro de 2010.

CC) Nas três primeiras semanas, o autor permaneceu na Unidade de Cuidados Intensivos, parte desse período em coma.

DD) No restante tempo de internamento, o autor esteve nos serviços de Cirurgia Plástica, em regime de isolamento.

EE) Durante todo esse período o autor foi sujeito a várias intervenções cirúrgicas, numa primeira fase ao intestino e, posteriormente, à parede abdominal para reparação da mesma.

FF) O autor foi submetido a 26 sessões/tratamentos de oxigenoterapia hiperbárica, com o esclarecimento que tal ocorreu entre 27/11/2009 e 4/01/2010.

GG) Durante todo este lapso de tempo, os factos acima descritos provocaram enorme abalo físico ao autor e, quando não em coma, também psicológico…

HH) E ficaram “sequelas cicatriciais de celulite abdominal extensa”.

II) Estas cicatrizes são viciosas...

JJ) E estendem-se por grande parte da parede abdominal, sobremaneira à direita…

KK) E revelam perda de massa muscular…

LL) Parecendo aperceber-se as circunvoluções intestinais sob a epiderme.

MM) Em consequência da lesão acima descrita, o autor, além de dores intensas, correu perigo de vida…

NN) De que se apercebeu quando não em coma…

OO) E sofreu imobilização prolongada,…

PP) Temor das sequelas,...

QQ) E sofreu desgosto pelo estado estético.

RR) Os factos referidos anteriormente, nomeadamente a perfuração do cego e aqueles referidos nas alíneas P) a T) e BB) a QQ) estão directamente correlacionados com a conduta do réu.

SS) As lesões sofridas pelo autor são consequência da intervenção cirúrgica realizada pelo réu.

TT) De igual modo, o perigo de vida a que esteve sujeito o autor, bem como todos os danos ulteriores, como sendo dores, angústia, tristeza, resultam directamente da conduta do réu.

UU) O réu fez, pelo menos, duas observações ao autor depois de ele ser operado.

VV) E não fora a intervenção cirúrgica dos médicos que assistiram o autor no Hospital do …, das lesões decorrentes da intervenção feita pelo réu e não tratadas por este, posteriormente, o resultado último seria a morte.

WW) O quadro clínico do autor quando chegou ao Hospital no … era uma septicemia relevante, com o esclarecimento que apresentava choque séptico no contexto de fasceíte necrotizante abdomino-toráxico e escrotal, nos termos constantes de fls. 38 dos autos.

XX) A perfuração do intestino do autor teve origem numa acção traumática do réu, a qual decorreu durante a cirurgia realizada por este, a lipoaspiração a que submeteu o autor.

YY) Em consequência da perfuração do intestino houve libertação de fezes…

ZZ) Tudo a causar infecção e a causar dores muitíssimo intensas.

AAA) Foi divulgado na comunicação social o estado de coma do autor.

BBB) Por isso ficou afastada a renovação de contrato, para que apontava o percurso até então da equipa sob sua direcção.

CCC) O autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física e/ou psíquica de 5%.

DDD) Por causa das lesões sofridas, o autor suportou despesas farmacêuticas e outras relacionadas com consultas e exames médicos, no total de €714,05.

EEE) Atento o seu estado de saúde e sobremaneira o abalo psicológico e diminuição física, necessitou o autor de acompanhamento familiar, com deslocação de familiares, até então no continente, para ... .

FFF) Essas deslocações, referentes a 2 pessoas, implicaram um custo em passagens aéreas não inferior a €500.

GGG) O autor apresenta no abdómen extensas cicatrizes cutâneas abdominais interessando toda a sua largura, de predomínio infra umbilical, mas ultrapassando para cima a sua horizontal, ocupando uma área aproximada de 35x26 cm. A pele dessa região tem características variáveis, com áreas atróficas mais acentuadamente nos quadrantes inferiores, sendo constituída por epiderme de aspecto variável, conforme resultou de cicatrização primária ou de resultado de transferência de retalhos de epiderme, tomando aspecto de parcelamento, o que agrava a dismorfia da região.

HHH) O autor apresenta no membro inferior direito uma extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior da coxa, plana, com área aproximada de 13x20 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico e que no membro inferior esquerdo apresenta extensa área cicatricial, hipocrómica, interessando a face anterior e externa da coxa, plana, com área aproximada de 25 x 30 cm, resultante da colheita de enxerto epidérmico.

III) Pela extensão e aspecto das áreas cicatriciais na região abdominal, o autor sofreu um prejuízo estético que o afecta frequentemente, como por exemplo nos vestiários e balneários desportivos, com necessidade de se resguardar perante os outros, nos termos do relatório do INML de fls. 496.

JJJ) No caso do autor, pela sua actividade profissional, existe receio do impacto de objecto contundente, designadamente uma bola chutada com maior ou menor violência.

KKK) Após o internamento em 27 de Novembro, o autor esteve impedido de exercer actividade até 7 de Fevereiro de 2010, sendo que a repercussão temporária na actividade profissional total se estendeu até 31 de Março de 2010, nos termos do relatório do INML de fls. 497.

LLL) Mesmo depois de sair do coma e durante a hospitalização, o autor receou perder a vida.

MMM) E receou ter de sofrer de uma diminuição das suas capacidades cognitivas futuras, em consequência do coma e das oito anestesias que suportou em seis semanas.

NNN) O autor ficou acabrunhado com o dano estético que resulta das cicatrizes extensas da parede abdominal e zona do escroto, bem como das coxas de onde foi retirado o material para enxerto.

OOO) Essas cicatrizes vão manter-se, mesmo após as sugeridas intervenções de recuperação.

PPP) A perfuração do intestino é uma complicação rara…

QQQ) Mas está descrita como uma complicação da lipoaspiração.

RRR) O autor foi algaliado e o ato médico iniciou-se com anestesia epidural e terminou com anestesia geral.

SSS) Este tipo de anestesia epidural provoca falta do controlo dos esfíncteres durante algumas horas.

TTT) O autor havia já sido submetido a uma ressecção transuretral da próstata.

UUU) Havia trajecto da pele até ao ceco que estava aderente à parede abdominal, tendo havido perfuração do ceco.

VVV) Esta era sequela de uma apendicectomia anterior.

WWW) O réu observou três vezes o autor no pós-operatório e não achou correspondência entre dores próprias do pós-operatório com qualquer outra complicação possível.

XXX) Os médicos da Casa de Saúde da ... não diagnosticaram perfuração do ceco.

YYY) As complicações que são relatadas aos doentes nas consultas pré-operatórias são as mais vulgares.

ZZZ) O réu tem cerca de 30 anos de experiência em cirurgia plástica e realizou milhares de lipoaspirações.

AAAA) No dia 27 de Novembro de 2009 a mulher do autor telefonou ao réu.

BBBB) Alguns minutos depois, 9h50m, o réu ligou para ela em resposta à chamada.

CCCC) Por volta da hora do almoço desse dia 27 de Novembro, o réu contactou com os colegas do Hospital do … aos quais indagou pelo estado de saúde do autor e contou-lhes a história clínica do autor desde a intervenção cirúrgica.

DDDD) Tendo então o réu sido informado que a situação do autor era grave, apresentando um quadro séptico, tendo sido imediatamente operado para limpeza do espaço celular subcutâneo que estava cheio de fezes provocadas por uma perfuração do ceco.

EEEE) O autor foi induzido em coma pois teria de ir ao bloco duas vezes por dia, fazer lavagens daquela região e assim estaria mais cómodo sem dores e sem ser submetido a múltiplas anestesias.

FFFF) No dia seguinte, logo pela manhã, o réu viajou para … para se inteirar in loco do estado de saúde do autor…

GGGG) Tendo conferenciado com os colegas.

HHHH) Apesar do estado grave, o autor estava estabilizado e o prognóstico era razoável…

IIII) Tendo o réu, nos dias seguintes, acompanhado através dos seus colegas do …, o estado do autor.

JJJJ) Na sequência de desbridamentos cutâneos em ambas as fossas ilíacas foi observado conteúdo sub-cutâneo fecalóide em grande quantidade e na fossa ilíaca direita havia exteriorização de ansa intestinal.

KKKK) Se as fezes tivessem entrado na cavidade abdominal teriam provocado peritonite.

LLLL) Na ocorrência de perfuração do cego, eventrado, o seu conteúdo extravasará preferencialmente para o espaço entre a pele e a aponevrose dos músculos abdominais.

MMMM) O autor padece de um quantum doloris fixável no grau 5/7.

NNNN) As sequelas sofridas pelo autor são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

OOOO) O autor ficou a padecer de dano estético permanente fixável no grau 4/7.

PPPP) O autor ficou a padecer de repercussão permanente na actividade sexual fixável no grau 2/7.

QQQQ) O autor aufere, sem dificuldade em obter clube que os pague, quantia não inferior a €5.000,00 mensais líquidos como treinador de … .

 

 B) Fundamentação de direito

 

As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, aplicável por força do seu artigo 5º nº 1, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:

(i) - A indemnização pelos danos patrimoniais;

(ii) – A indemnização pelos danos não patrimoniais e a dupla conforme.

 

A INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS PATRIMONIAIS

 

Nas suas conclusões, entende o autor que seria justa, equilibrada e objectiva a quantia de € 60.000,00 como indemnização do dano patrimonial futuro sofrido pelo autor, decorrente da incapacidade funcional permanente de que ficou a padecer.

Deve, por isso, a decisão da primeira instância ser mantida na íntegra no que respeita à fixação do dano patrimonial futuro sofrido pelo autor.

 

A parte contrária, na contra-alegação, entende que a Relação decidiu com acerto, ao fixar aquele montante em € 45.000,00.

 

Cumpre decidir.

 

Na presente revista, no que respeita à indemnização pelos danos patrimoniais, não é questionada a verificação dos pressupostos previstos no artigo 483º do Código Civil, estando apenas em causa a fixação do montante indemnizatório, nos termos suscitados nas conclusões A) e B) das alegações do autor.

 

Estabelece-se no artigo 564º do Código Civil que: o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, mas também os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (nº1); na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (nº2).

 

A obrigação de indemnizar, a cargo do causador do dano, deve reconstituir a situação que existiria "se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação" – artº 562º do Código Civil.

Não sendo isso possível ou quando a reconstituição natural não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor, deve a indemnização ser fixada em dinheiro – artº 566º nº 1 do Código Civil. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará segundo a equidade, conforme preceitua o nº 3 do artº 566º do Código Civil.

 

O lesado tem direito a ser indemnizado por danos patrimoniais futuros resultantes de incapacidade permanente, prove-se ou não que, em consequência dessa incapacidade, haja resultado diminuição dos seus proventos do trabalho (diminuição da capacidade geral de ganho).

 

A lei ordinária não contém regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, devendo a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no artigo 566° nº 3, do Código Civil.

O recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade (cf. artº 13º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso. Quer isto significar que as decisões judiciais devem ter em consideração os critérios jurisprudenciais adoptados em casos idênticos por forma a obter, tanto quanto possível, uma interpretação e aplicação uniforme do direito (cfr. artº 8º nº 3 do Código Civil).

 

Assim, é com base na equidade que este tribunal deve fixar os montantes indemnizatórios aqui em causa.

 

O julgamento de acordo com a equidade envolve um juízo de justiça concreta e não um juízo de justiça normativa, razão por que a determinação do quantum indemnizatório não traduz, em rigor, a resolução de uma questão de direito.

Neste contexto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça deve reservar-se à formulação de um juízo crítico de proporcionalidade dos montantes decididos em face da gravidade objectiva e subjectiva dos prejuízos sofridos.

A sua apreciação cingir-se-á, por conseguinte, ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente os princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado[2].

 

Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mostra-se consolidado o entendimento de que a limitação funcional, ou dano biológico, em que se traduz esta incapacidade é apta a provocar no lesado danos de natureza patrimonial e de natureza não patrimonial. E tem sido considerado que, no que aos primeiros respeita, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se reconduzem apenas à redução da sua capacidade de trabalho, já que, antes do mais, se traduzem numa lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física; por isso mesmo, não deve ser arbitrada uma indemnização que apenas tenha em conta aquela redução[3].

 

Retomando o decidido no acórdão do STJ de 06-12-2018:

“Quer isto significar que, tal como se referiu no ac. do STJ de 26.1.2017 (proc. 1862/13.7TBGDM.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “havendo uma incapacidade permanente, mesmo que sem rebate profissional, sempre dela resultará uma afectação da dimensão anatomo-funcional do lesado, proveniente da alteração morfológica do mesmo e causadora de uma diminuição da efectiva utilidade do seu corpo ao nível de actividades laborais, recreativas, sexuais, sociais ou sentimentais, com o consequente agravamento da penosidade na execução das diversas tarefas que de futuro terá de levar a cargo, próprias e habituais de qualquer múnus que implique a utilização do corpo. E é neste agravamento de penosidade que se radica o arbitramento de uma indemnização”.

Efectivamente, e acolhendo o entendimento plasmado no acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Outubro de 2012 (proc. nº 632/2001.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt):

 “ (…) A compensação do dano biológico tem como base e fundamento, quer a relevante e substancial restrição às possibilidades de exercício de uma profissão e de futura mudança, desenvolvimento ou conversão de emprego pelo lesado, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente o vai afectar; quer a acrescida penosidade e esforço no exercício da sua actividade diária e corrente, de modo a compensar e ultrapassar as graves deficiências funcionais que constituem sequela irreversível das lesões sofridas.

Na verdade, a perda relevante de capacidades funcionais – mesmo que não imediata e totalmente reflectida no valor dos rendimentos pecuniários auferidos pelo lesado - constitui uma verdadeira «capitis deminutio» num mercado laboral exigente, em permanente mutação e turbulência, condicionando-lhe, de forma relevante e substancial, as possibilidades de exercício profissional e de escolha e evolução na profissão, eliminando ou restringindo seriamente a carreira profissional expectável – e, nessa medida, o leque de oportunidades profissionais à sua disposição -, erigindo-se, deste modo, em fonte actual de possíveis e futuramente acrescidos lucros cessantes, a compensar, desde logo, como verdadeiros danos patrimoniais (…)”.

 “Nesta perspectiva, deverá aditar-se ao lucro cessante, decorrente da previsível perda de remunerações, calculada estritamente em função do grau de incapacidade permanente fixado, uma quantia que constitua junta compensação do referido dano biológico, consubstanciado na privação de futuras oportunidades profissionais, precludidas irremediavelmente pela capitis deminutio de que passou a padecer (o lesado), bem como pelo esforço acrescido que o já relevante grau de incapacidade fixado irá envolver para o exercício de quaisquer tarefas da vida profissional ou pessoal …”.

“Para além de danos de natureza não patrimonial, a afectação da integridade físico-psíquica de que o lesado fique a padecer é susceptível de gerar danos patrimoniais, caso em que a indemnização se destina a compensar não só a perda de rendimentos pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afectação, no período de vida expectável, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais e/ou de índole pessoal ou dos custos de maior onerosidade com o desempenho dessas actividades.

Neste contexto, para determinar a indemnização pelos danos futuros, utilizam-se habitualmente os seguintes critérios orientadores:

- A indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado;

- As tabelas financeiras ou outras fórmulas matemáticas, a que, por vezes, se recorre, têm um mero carácter auxiliar, indicativo, não substituindo de modo algum a ponderação judicial com base na equidade;

- Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia;

Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa de vida do cidadão masculino médio, à progressão profissional, e aos previsíveis aumentos da remuneração salarial”.

 

No tocante aos danos patrimoniais futuros, as instâncias convergem que, tendo em conta os factos a considerar no caso concreto e que constituem o núcleo essencial, o autor ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade física e/ou psíquica de 5% (CCC), as sequelas sofridas são, em termos de repercussão permanente na actividade profissional, compatíveis com o exercício da sua actividade habitual de treinador de futebol, mas implicam esforços suplementares (NNNN) e aufere quantia não inferior a 5.000,00€ mensais líquidos (QQQQ). Nasceu em 4.12.1955, pelo que à altura do evento lesivo tinha 53 anos e 11 meses de idade.

 

Já referimos que, não contendo a nossa lei ordinária regras precisas destinadas à fixação da indemnização por danos futuros, deve a mesma calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no artº 566° nº 3, do Código Civil.

Foi, precisamente, com base na equidade que o Tribunal da Relação fixou o montante indemnizatório, aqui em causa.

 

Tal como se considerou no acórdão deste Supremo Tribunal de 19.4.2018[4], “o recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva actualmente como em tempos não muito recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos pago pelas entidades bancárias é muito reduzida (…), o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento”.

 

Por outro lado, o julgamento de equidade, como processo de acomodação dos valores legais às características do caso concreto, não deve prescindir do que é normal acontecer (id quod plerumque accidit) no que se refere à expectativa média de vida (que, em Portugal, segundo os últimos dados do INE, tratando-se de uma pessoa do sexo masculino, como in casu, se situa nos 77/78 anos[5]), e ao período de vida activa (em regra, até aos 70 anos).

 

Tratando-se de montantes indemnizatórios fixados com base na equidade, tem entendido uniformemente a jurisprudência do STJ, que o juízo das instâncias deve ser mantido sempre que se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.

 

Tendo presente estes parâmetros, no caso sub judice, de acordo com a factualidade relevante quanto os danos patrimoniais futuros, atendendo às repercussões danosas das lesões sofridas pelo autor, no plano estritamente material e económico, tendo em atenção a sua idade (actualmente com 64 anos), considerando a vida activa pelo menos até aos 77/78 anos, reputamos como adequado e não excessivo o montante indemnizatório de € 60.000,00, (sessenta e mil euros) valor que é alcançado através de juízos de equidade e que foi atribuído pela primeira instância.

 

Nesta conformidade, procedem as conclusões A) e B) das alegações de revista do autor.

 

A INDEMNIZAÇÃO PELOS DANOS NÃO PATRIMONIAIS E A DUPLA CONFORME.

 

Importa, antes de mais, apreciar, como questão prévia, da verificação de dupla conforme que obste à admissibilidade da revista, tal como argumenta a recorrida no que respeita à indemnização pelos danos não patrimoniais.

 

A dupla conforme, como circunstância de irrecorribilidade da revista, afere-se pela confirmação da decisão, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – art. 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (CPC).

 

Como resulta das conclusões do recorrente, o objecto do recurso de revista respeita também ao valor da indemnização atribuída a título de danos não patrimoniais.

 

No que respeita à parcela respeitante à compensação dos danos não patrimoniais, a 1ª instância fixou o montante a atribuir ao autor em € 35.000,00 (Vol IV – fls 852 a 853), tendo a Relação (Vol V – fls 1127 a 1133) atribuído o valor de € 40.000,00.

 

Para a atribuição da indemnização ao autor pelos danos não patrimoniais sofridos, ambas as instâncias aplicaram as mesmas regras de direito, nomeadamente o disposto nos artigos 496º nº 1 e 494º do Código Civil, sem que qualquer de índole substancial as diferencie.

 

Em vista com esta figura da dupla conforme perfila-se a racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça ‑ retomando-se assim o desígnio já antes prosseguido pela Reforma de 2007 efectuada em relação ao Código de Processo Civil de 1966 ‑ de modo à criação de condições para um melhor exercício, por tal órgão, da sua função de orientação e uniformização da jurisprudência.

         

Previamente ao que iremos decidir, e como vem sendo defendido tanto a nível jurisprudencial[6], como doutrinário[7], a aferição sobre a existência de dupla conforme e, portanto, sobre a admissibilidade ou não do recurso normal de revista, deve fazer-se mediante o confronto de cada um dos segmentos decisórios.

 

Há dupla conforme impeditiva de recurso de revista se o apelante obteve na Relação uma decisão que lhe é mais favorável, no aspecto quantitativo, do que a decisão proferida pela 1ª instância.

 

Na presente acção declarativa, a sentença de 1.ª instância, na procedência parcial do pedido, condenou o réu e a interveniente (ora recorrida) a pagar ao autor a indemnização global de € 96.214,05, sendo € 61.214,05 a título de danos patrimoniais e € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais.

 

A Relação, em sede de recurso, reduziu a indemnização para o montante global de € 86.214,05, sendo € 46.214,05 pelos danos patrimoniais e, acolhendo integralmente a fundamentação da sentença recorrida, fixou a indemnização devida pelos danos não patrimoniais em € 40.000,00.

 

No que concerne à quantia arbitrada pela Relação relativamente aos danos não patrimoniais, apesar de a Relação ter alterado para mais esta última indemnização, continua a verificar-se uma situação de dupla conformidade. 

A dupla conformidade não implica a sobreposição total entre os dispositivos da sentença e do acórdão que sobre ela recaia.

 

Ou seja, o entendimento do STJ tem sido o de que o conceito de fundamentação essencialmente diferente não se basta "com qualquer modificação ou alteração da fundamentação no iter jurídico que suporta o acórdão da Relação em confronto com a sentença de 1ª instância, sendo antes indispensável que, naquele aresto, ocorra uma diversidade estrutural e diametralmente diferente no plano da subsunção do enquadramento normativo da mesma matéria litigiosa". Assim sendo, só pode "considerar-se estarmos perante uma fundamentação essencialmente diferente quando ambas as instâncias divergirem, de modo substancial, no enquadramento jurídico da questão, mostrando-se o mesmo decisivo para a solução final: ou seja, se o acórdão da Relação assentar num enquadramento normativo absolutamente distinto daquele que foi ponderado na sentença de 1ª instância. Ou, dito ainda de outro modo: quando o acórdão se estribe definitivamente num enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado do perfilhado na 1ª instância"[8].

 

Neste sentido se pronunciou Abrantes Geraldes[9], citando Miguel Teixeira de Sousa, que inicialmente projectou a seguinte tese, concluindo do seguinte modo[10]:

“ sempre que o apelante obtenha uma procedência parcial do recurso na Relação, isto é, sempre que a Relação pronuncie uma decisão que é mais favorável – tanto no aspecto quantitativo, como no aspecto qualitativo – para esse recorrente do que a decisão proferida pela 1ª instância, está-se perante duas decisões “conformes” que impedem que essa parte possa interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça.

Terminando, para concluir, tendo em conta a dupla conforme, bem como a não verificação do requisito legal «fundamento essencialmente diferente», colhidos pela jurisprudência acima assinalada e ensinados pela doutrina exposta, temos de concluir pela inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelo recorrente no que toca à indemnização pelos danos não patrimoniais.

 

Deste modo, improcedem as conclusões C), D) E) e F) das alegações de revista do autor.

 

SUMÁRIO

(i) - A fixação da indemnização por danos futuros, deve calcular-se segundo critérios de verosimilhança, ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer; e se não puder, ainda assim, apurar-se o seu exacto valor, deve o tribunal julgar segundo a equidade, nos termos enunciados no artigo 566° nº 3, do Código Civil.

(ii) – A aferição sobre a existência de dupla conforme e, portanto, sobre a admissibilidade ou não do recurso normal de revista, deve fazer-se mediante o confronto de cada um dos segmentos decisórios.

(iii) - Apresentando-se a decisão da Relação, no que toca à quantificação dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor como mais favorável do que a da 1.ª instância, dado que aquela os fixou em € 35.000,00 e a Relação em € 40.000,00, verifica-se, nesta parte, uma situação de dupla conformidade, impeditiva da admissibilidade do recurso de revista interposto pelo autor. 

 

III - DECISÃO

 

Atento o exposto, julga-se parcialmente procedente a revista e, em consequência:

- Revoga-se o acórdão da Relação e repristina-se a sentença da primeira instância no que e refere à condenação da indemnização de € 60.000,00 (sessenta mil euros) quanto ao dano patrimonial futuro;

- Recusa-se a admissibilidade da revista, no segmento respeitante à atribuição da indemnização dos danos não patrimoniais.

Custas pelo recorrente e pela recorrida, na proporção do respectivo vencimento.

 

Lisboa, 21.05.2020

 

Ilídio Sacarrão Martins – Relator (i)

Nuno Manuel Pinto Oliveira

Ferreira Lopes

(i) – Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 15º-A do DL nº 20/2020, de 01 de Maio, atesto que, não obstante a falta de assinatura, os Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos deram o correspondente voto de conformidade

 

___________

[1] Valor rectificado por requerimento apresentado pelo autor em 15.11.2012 (fls 171 a 173), por se tratar de mero lapso de escrita. Tal pedido de rectificação foi deferido ao abrigo do artigo 249º do Código Civil, conforme despacho de 28.11.2012 (fls 174).

[2] Ac STJ de 06-12-2018, Proc.º nº 652/16.0T8GMR.G1.S2, in www.dgsi.pt/jstj

[3] Entre outros, o acórdão do STJ de 28-01-2016, Proc. nº 7793/09.8T2SNT.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.

[4] Procº nº 196/11.6TCGMR.G2.S1, in www.dgsi.pt/jstj

[5]Cf. https://www.ine.pt/xportal/xmain?xpid=INE&xpgid=ine_destaques&DESTAQUESdest_boui=354096866&DESTAQUESmodo=2&xlang=pt

[6] Ac STJ de 08.01.2019, Procº nº 4378/16.6T8VCT.G1.S1; de 23.05.2019, Procº nº 2222/11.0TBVCT.G1.S1;  de 24.05.2018, Procº nº 37/09.4T2ODM-B.E2.S1, todos alcançáveis in www.dgsi.pt/jstj

[7] Abrantes Geraldes,  Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª Edição, 2018, pág 370.

[8] Ac. STJ de 30.04.2015 – Procº nº 1583/08.2TCSNT.L1.S1, in www.dgsi.pt/jstj

[9] Ob cit, pág. 372.

[10] Dupla Conforme – Critério e âmbito da Conformidade”, in Cadernos de Direito Privado, nº 21, 2008, pág. 22.

Descritores:
 Responsabilidade médica; Cálculo da indemnização; Danos futuros; Equidade; Danos não patrimoniais; Dupla conforme parcial; Recurso de revista; Admissibilidade de recurso