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ECLI:PT:STJ:2020:30.11.7TBSTR.E1.S1

Relator: Raimundo Queirós

Descritores: Responsabilidade extracontratual; Acidente de viação; Acidente de trabalho; Dano biológico; Danos futuros; Danos patrimoniais; Indemnização

Processo: 30/11.7TBSTR.E1.S1

Data do Acordão: 05/05/2020

Votação: Unanimidade

Texto Integral: S

Meio Processual: Revista

Decisão: Concedida parcialmente a Revista

Indicações eventuais: Transitado em julgado

Área Temática: 6.ª Secção (Cível)

Sumário

I- O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos e incidentes na esfera patrimonial do lesado, incluindo a frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer actividades ou tarefas de cariz económico, mesmo fora da actividade profissional habitual, bem como os custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente restrição de outras oportunidades de índole pessoal e profissional, no decurso de vida expectável.

II- O critério de indemnização do dano biológico, enquanto dano patrimonial futuro, perda de capacidade de ganho, ou maior penosidade no desempenho de actividade laboral, é o critério da equidade – art. 566.º, n.º 3, do CC.

III- No caso dos autos, o autor, em consequência do acidente ficou com um défice funcional de 5 pontos percentuais, que afectam os dois membros inferiores, e, consequentemente, o seu suporte e movimentação, e que são de molde a repercutir-se nos mais diversos aspectos da vida do dia-a-dia.

 IV- Para além do acréscimo de esforço físico no desenvolvimento da sua actividade de trabalhador da construção civil, as lesões sofridas implicam também inegável redução da sua capacidade económica geral, mormente para se dispor ao desempenho de outras actividades concomitantes ou alternativas que, presumivelmente, ainda lhe pudessem surgir na área profissional, ao longo da sua expectativa de vida.

V- Considerando que o autor, à data da consolidação das lesões tinha 34 anos de idade, sendo a esperança média de vida estabelecida para os homens de 77,7 anos, parece-nos adequado e justo o valor de 25.000,00€ fixado pela Relação.

VI- As indemnizações devidas pelo responsável civil e pelo responsável laboral em consequência de acidente, simultaneamente de viação e de trabalho, assentam em critérios distintos e têm uma funcionalidade própria, não sendo cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado ao lesado/sinistrado.

VII- A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.

VIII- A indemnização fixada em sede de acidente de trabalho tem por objecto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir.

IX- Assim, visando, com o capital de remição da pensão anual – pago como indemnização atribuída a título de acidente de trabalho – reparar apenas a perda de capacidade geral de ganho reportada à profissão habitual, sem que, portanto, se tenha tido em conta a perda dessa capacidade de ganho na totalidade das suas componentes, não há que deduzir à indemnização pela perda da capacidade de ganho/dano biológico a quantia já paga no processo acidente de trabalho. 

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

        

 Processo 30/11.7TBSTR.E1.S1- 6ª Secção

        

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça    

        

I- Relatório:

 

AA propôs contra Império Bonança – Companhia de Seguros, S.A. (actualmente, Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A.) e Companhia de Seguros Sagres, S.A. (que, entretanto, passou a denominar-se Macif Portugal – Companhia de Seguros, S.A. e, mais tarde, Caravela – Companhia de Seguros, S.A.) acção declarativa de condenação, sob forma comum e processo ordinário.

Alegou, em síntese, que: viajava num veículo, propriedade de Maleonta Construções, Lda. e conduzido por BB, ao serviço e no interesse daquela; o veículo colidiu com uma auto-grua, pertencente a Cariano e Irmão, Lda. e conduzido por CC, ao serviço e no interesse da sociedade; a responsabilidade pelos riscos emergentes das referidas viaturas encontrava-se transferida, respectivamente, para a 2ª ré e para a 1ª ré; a colisão deve-se a culpa de ambos os condutores; o autor sofreu diversos danos. Concluiu, pedindo que as rés fossem condenadas a pagar-lhe a quantia de 65.000,00€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos.

A 1ª ré contestou, excepcionando a prescrição. Assacou a responsabilidade pelo acidente ao condutor do veículo e impugnou por desconhecimento os danos alegadamente sofridos pelo autor. Concluiu pela improcedência da acção.

Também a 2ª ré contestou, imputando a culpa do acidente ao condutor da auto-grua, impugnando, por desconhecimento, alguns dos factos alegados pelo autor e salientando que este não especifica se o montante peticionado se reporta a danos patrimoniais, sendo certo que estes estão a ser ressarcidos pela 2ª ré, no âmbito de acidente de trabalho, pelo que não pode ser obrigada a pagá-los duas vezes. Concluiu pela sua absolvição do pedido.

O processo foi objecto de saneamento e condensação.

O autor veio clarificar e ampliar o pedido no sentido de serem as rés condenadas, solidariamente ou de acordo com a responsabilidade que se vier a apurar relativamente a cada um dos condutores, a pagar, a título de danos morais, a quantia de 45.000,00€ e, a título de danos patrimoniais, nomeadamente dano biológico e dano futuro, a quantia de 60.000,00€, em qualquer caso, acrescida de juros à taxa legal desde a citação.

As rés manifestaram a sua oposição, defendendo tratar-se de alteração do pedido.

O tribunal indeferiu a requerida ampliação.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença que absolveu do pedido a 1ª ré e condenou a 2ª ré a pagar ao autor, a título de danos morais, a quantia de 20.000,00€ e, a título de danos futuros (dano biológico), a quantia de 45.000,00€, em qualquer caso acrescida de juros à taxa legal desde a data da sentença.

A 2ª ré interpôs recurso de apelação.

O Tribunal da Relação de Évora, proferiu acórdão julgando a apelação parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

- manter a indemnização fixada a título de danos não patrimoniais em € 20.000,00;

- reduzir a indemnização fixada a título de danos patrimoniais futuros em € 45.000,00 pela 1.ª instância para o valor de € 25.000,00, e, descontado do valor recebido pelo autor da mesma seguradora a título de acidente de trabalho de € 6.806,94, fixou o valor final em € 18.193,06.

Deste acórdão vieram interpor recurso de revista o autor e a 2ª ré.

Alegou o autor, nas conclusões o seguinte:

“1ª A sentença da 1ª instância condenou a ré seguradora no pagamento ao recorrente das quantias de € 20.000,00 a título de indemnização por danos morais e €45.000,00 a título de indemnização por danos patrimoniais futuros, julgando a ação totalmente procedente, por provada.

2ª Na sequência de recurso de apelação apresentado pela seguradora ré, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora alterou alguma matéria de facto dada como provada, confirmou o valor da indemnização por danos morais (€ 20.000,00), reduziu o valor indemnizatório por danos patrimoniais futuros de €45.000,00 para €25.000,00 e deduziu, ainda, a este valor, a quantia de €6.806,94, recebida pelo autor no âmbito do processo de acidente de trabalho nº 53/09.6TTT STR que correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de ….

3ª O presente recurso de revista abrange apenas o valor indemnizatório arbitrado pelo Tribunal da Relação de Évora a título de danos patrimoniais futuros, no montante de € 25.000,00, por se entender que tal valor está desajustado e não teve em conta a extensão e gravidade de todo o dano biológico sofrido pelo recorrente com o acidente,

4ª abrangendo também a decisão proferida, com a qual não se concorda, no sentido de que a esses danos patrimoniais futuros há que subtrair o valor recebido pelo recorrente no âmbito do processo de acidente de trabalho acima identificado.

5ª A acção tem o valor de €65.000,00, valor total das indemnizações fixadas pela 1ªinstância.

6ª O acórdão em recurso reduziu o montante indemnizatório global para €38.193,06.

7ª O decaimento é, assim, de €26.806,94.

8ª Tal montante é superior a metade do valor da alçada do tribunal de recurso (€ 15.000,00).

9ª Estando, assim, preenchidos os dois requisitos exigidos pelo artº 629º, nº 1, do C.P.C., para o presente recurso de revista ser admissível.

10ª Os factos considerados provados pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora, com as modificações e aditamentos que entendeu fazer, são os 63 pontos constantes do texto das presentes alegações, os quais, por economia processual, se dão aqui por inteiramente reproduzidos.

11ª O acórdão recorrido baixou a indemnização por danos patrimoniais fixados em 45.000,00 pelo tribunal da 1ª instância para apenas 25.000,00.

12ª Tão acentuada descida, em percentagem superior a 45%, é injusta e não atende à extensão e gravidade do dano biológico, analisado em todas as suas diversas vertentes, sofrido pelo recorrente com o acidente.

13ª O recorrente, à data do acidente, tinha apenas 30 anos de idade.

14ª Uma expectativa de vida ativa de mais 40 anos.

15ª Uma esperança média de vida de 50 anos.

16ª Foi-lhe fixada uma I.P.P. de 5 pontos.

17ª Um quatum doloris considerável, de 5 pontos em 7.

18. O autor necessita de ajudas medicamentosas, no caso, medicação analgésica-inflamatória (ponto 59 dos factos provados).

19ª O autor tem dores constantes na perna direita e esporádicas no joelho, dor nos últimos graus de flexão, dores na coluna e membros inferiores quando executa alguns trabalhos (cf., entre outros, os pontos 34, 35, 48 e 50 dos factos provados).

20ª As lesões sofridas e que o acompanharão toda a vida, impedem-no de jogar à bola, correr ou caminhar na praia, andar de bicicleta, (ponto 47 dos factos provados).

21ª O autor nunca mais pode desfrutar do seu hobby preferido, que é a pesca desportiva, dado que esta exige grande locomoção e força nos membros inferiores (cf. ponto 43 dos factos provados).

22ª A data do acidente, em 18/01/2008, o autor auferia cerca de € 900,00 mensais (incluindo vencimento e subsídios) - pontos 29 e 30 dos factos provados.

23º À data do acidente, com 30 anos de idade, o autor era encarregado de construção civil, na área da cofragem.

24ª Tal profissão e categoria profissional exige, como é notório, que o mesmo tenha de subir e descer escadas de prédios em construção, andar sobre andaimes e sobre superfícies de cimento e ferro irregulares, baixando-se e levantando-se para poder fiscalizar o trabalho dos operários que chefia ou para ele próprio executar esses trabalhos.

25ª- Os padecimentos de que o autor sofre, acentuados pela profissão que exerce, evidenciam e fazem crer com alta probabilidade que os mesmos farão com que as suas possibilidades de ascensão na carreira profissional e consequente aumento remuneratório, venham a ser reduzidas e afectados.

26ª. Verifica-se, assim, que a indemnização por danos patrimoniais futuros arbitrada pelo Tribunal da Relação de Évora não está de acordo, nem compensa minimamente, o esforço acrescido e doloroso que o autor terá de realizar em todas as tarefas profissionais e pessoais, bem como as actividades lúdicas que nunca mais poderá fazer, pelo que é de inteira justiça, revogar-se, nessa parte, o acórdão, condenando-se a seguradora a pagar ao autor, a título de danos patrimoniais futuros, a quantia de €45.000,00 (quarenta e cinco mil euros).

27ª A decisão tomada no acórdão recorrido consistente em deduzir a quantia de €6.806,94 recebida pelo autor no âmbito do processo de trabalho ao valor dos danos patrimoniais futuros, também não é, salvo o devido respeito, correcta e contraria a mais recente e maioritária jurisprudência que sobre tal temática se tem debruçado.

28ª Contrariamente ao defendido no acórdão recorrido as indemnizações em causa complementam-se e têm pressupostos diferentes.

29ª O cálculo da pensão emanada de acidente de trabalho tem apenas como pressupostos a idade do acidentado, o seu vencimento e a incapacidade permanente que foi fixada ao trabalhador.

30ª Por sua vez, o cálculo do dano patrimonial sofrido pelo lesado em acidente de viação abrange uma análise global de todos os danos biológicos sofridos pela vitima, que tem em conta vários outros parâmetros, que não apenas os usados nos acidentes de trabalho tendo em consideração, nomeadamente, a avaliação psíquico-somática do individuo, tendo também em conta a esperança média de vida, as potencialidades futuras e previsíveis da carreira profissional, a formação técnica e académica, a previsível influência negativa em futuras promoções, num esforço de alcançar uma solução com base na equidade, tudo cotejado com os valores fixados para casos idênticos pela jurisprudência.

31ª Aliás, a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais de recurso defende que tais indemnizações não se confundem, constituindo o dano biológico um dano autónomo, como é exemplo o sumário do douto Ac do S.T.J. de 11/07/2019, melhor identificado no texto das alegações, onde se afirma que «… Na condenação da seguradora no pagamento da indemnização devida por acidente de viação não se deve deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em processo de acidente de trabalho»”.

A 2ª ré veio também interpor recurso de revista do acórdão na parte em que a condenou no pagamento da quantia de € 20.000,00, acrescida dos juros de mora, a título de danos morais e do quantum indemnizatório de € 18.193,06, a título de danos futuros.

Apresentou extensas alegações nas quais pugna pela revogação do acórdão no sentido de:

“- Ser a quantia indemnizatória atribuída ao Recorrido a título de danos futuros reduzida em conformidade com o alegado, e sempre deduzindo a quantia já paga ao Recorrido em sede de Processo de Acidente de Trabalho no valor de € 6.806,94 (seis mil oitocentos e seis euros e noventa e quatro cêntimos);

- Ser revogada a decisão que condena a Recorrente no pagamento da quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais ou danos morais, ou de qualquer outra quantia; ou, subsidiariamente, deve a quantia indemnizatória de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de danos não patrimoniais ou danos morais, reduzida no mínimo em 50%”.

A autora contra-alegou defendendo a tese do seu recurso.

 

II- Questão Prévia da admissibilidade do recurso interposto pela 2ª ré,  Caravela, Companhia de Seguros, SA.

 

Em causa está uma acção fundada em responsabilidade civil extracontratual emergente de um acidente de viação na qual o autor reclama uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos e imputa a responsabilidade pelo acidente aos condutores dos veículos intervenientes no acidente, cuja responsabilidade foi transferida para cada uma das rés seguradoras demandadas, sendo certo que era um dos ocupantes do veículo ligeiro que embateu numa auto-grua quando circulava numa auto-estrada.

A 1.ª instância concluiu que a responsabilidade pelo acidente foi exclusivamente do veículo ligeiro segurado na 2.ª ré seguradora, divergindo apenas as instâncias no que se refere à fixação da indemnização pelos danos patrimoniais futuros. A Relação aditou à matéria de facto a circunstância do autor ter já sido parcialmente indemnizado por esses danos no âmbito do processo contra a mesma seguradora, a título de acidente de trabalho, e entendeu que se tratava de uma “duplicação”, o que motivou o respectivo desconto no valor da indemnização devida a este respeito.

Assim, o acórdão da Relação julgou parcialmente a apelação, decidindo quanto ao autor:

- manter a indemnização fixada a título de danos não patrimoniais em € 20.000,00;

- reduzir a indemnização fixada a título de danos patrimoniais futuros em € 45.000,00 pela 1.ª instância para o valor de € 25.000,00, e, descontado do valor recebido pelo autor da mesma seguradora a título de acidente de trabalho de € 6.806,94, fixou o valor final de € 18.193,06.

 A 2.ª ré, Caravela, Companhia de Seguros, SA, veio interpor recurso de revista normal.

Todavia, relativamente a este recurso verifica-se o obstáculo da dupla conforme, resultante do disposto no art. 671.º, n.º 3, do CPC.

Com efeito, sem prejuízo da modificação parcial (e não essencial) da matéria de facto, inexistindo qualquer voto de vencido ou fundamentação essencialmente diferente, e na medida em que a ré em causa viu a sua situação “melhorada”, porquanto o montante da indemnização em que foi condenada foi reduzido em relação ao que resultava da sentença pelo acórdão recorrido, não poderá ser admitido o recurso por esta interposto por ocorrer o obstáculo da dupla conforme.

Neste sentido, vide, Miguel Teixeira de Sousa, in Cadernos de Direito Privado, 21, Janeiro/Março 2008, p. 24/27, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª ed., p. 372/374 e, entre outros, os acórdãos do STJ de 17-10-2019, p. n.º 7223/12, Rosa Ribeiro Coelho (Relatora) e de 27-09-2018, p. n.º 634/15.9, Tomé Gomes (Relator), e acórdãos do STJ de 12-03-2019, p. 43168/14 e de 17-12-2019, p. 796/14 (Relatora Ana Paula Boularot), in www.dgsi.pt.

 

Deste modo, não se admite o recurso interposto pela recorrente Caravela, Companhia de Seguros, SA.

 

III- Objecto do recurso interposto pelo autor

Perante as conclusões de recurso do autor, importa decidir as seguintes questões:

  1. Fixação da indemnização a título de danos patrimoniais futuros (dano biológico)
  2. Desconto da indemnização liquidada a título de acidente de trabalho.       

 

 IV- Fundamentação

Matéria de facto provada:

A primeira instância deu como provado:

“1. No dia 18 de Janeiro de 2008, pelas 19:10 horas, ao quilómetro 00,000 da auto-estrada …, sentido …-…, ocorreu um embate entre o veículo com a matrícula 00-00-UO e uma auto-grua sem matrícula, com o quadro W00000000EL00000.

2. O veículo com a matrícula 00-00-UO pertencia à sociedade “Malionta Construções, Lda.”, e era conduzido por BB, seu trabalhador, fazendo-o sob o interesse e instruções da mesma.

3. A auto-grua pertencia à sociedade “Cariano e Irmão, S.A.”, sendo conduzida por CC, seu trabalhador, fazendo-o segundo o interesse e instruções da mesma.

4. Tratando-se de um veículo de grandes dimensões, a auto-grua circulava ao abrigo da autorização n.º 200750000060, emitida pela Direcção Regional do Centro.

5. No local do embate, a via tem três faixas de rodagem e uma berma e desenvolve-se em recta com boa visibilidade.

6. Aquando do acidente era noite, o tempo estava bom e o piso encontrava-se seco.

7. Por contrato de seguro de automóvel obrigatório titulado pela apólice n.º 00.00000000, a responsabilidade civil pelos riscos emergentes da circulação do veículo com a matrícula 00-00-UO foi transferida para a 2ª ré.

8. Por contrato de seguro, titulado pela apólice AU00000000, a responsabilidade civil pelos riscos emergentes da circulação da aludida auto-grua encontrava-se transferida para a 1ª ré.

9. A auto-grua transitava pela via de trânsito mais à direita das três existentes, atento o sentido ...-... da auto–estrada …, a uma velocidade entre 50 e 55 quilómetros por hora e com todas as luzes ligadas.

10. Ao quilómetro 00,0 da referida auto-estrada, o condutor do veículo UO, confrontado com a auto-grua na sua faixa de rodagem, não conseguiu desviar-se e foi embater com a parte frontal na traseira esquerda da mesma e o seu condutor, sentindo tal embate, fez parar a auto-grua, dirigindo-a, de imediato, para a berma, onde veio a imobilizar-se.

11. O embate ocorreu dentro da aludida via de trânsito, a cerca de 5,3 metros dos rails de proteção lateral direitos, colocados após a berma, atento o sentido de marcha de ambos os veículos.

12. O local provável do embate situava-se a cerca de 1,10 metros da linha longitudinal que separa a faixa de rodagem da direita da berma.

13. Após a colisão do UO na traseira da auto-grua, o primeiro ficou situado no interior da faixa de rodagem em que transitava, ficando com a sua roda traseira situada a cerca de 1,10 metros da linha guia delimitadora da berma direita, atento o sentido de marcha de ambos os veículos, e a roda dianteira direita a cerca de 0,50 metros da mesma linha guia.

14. Entre a parte frontal do UO e a traseira esquerda da auto-grua, após a imobilização, ficou registada uma distância de 100 metros.

15. Localizando-se a auto-grua no interior da berma, com os rodados direitos, frontal e traseiro, a cerca de 0,30 metros do rail de protecção.

16. O veículo UO deixou marcados no pavimento, e no interior da faixa de rodagem em que circulava, rastos de travagem de 28 metros, dos quais 16 metros correspondem à distância percorrida até ao embate e os restantes 12 metros correspondem à distância percorrida após o embate.

17. O autor fazia-se transportar no interior do UO a título gratuito.

18. Por ter sofrido lesões na sequência do embate, o autor foi transportado para o Hospital Distrital de ....

19. Apresentava, nos termos do protocolo de Manchester, grande traumatismo e com prioridade laranja.

20. Foi-lhe diagnosticado traumatismo craniano, com perda de conhecimento, hematoma epicraniano frontal, fratura da tíbia direita e perónio direito, entorse de grau III da tibiotársica esquerda.

21. Entre outros tratamentos médicos, efetuou-se imobilização com tala engessada posterior cruropedalica à direita, colocando-se tala engessada posterior no tornozelo esquerdo.

22. Por se encontrar medicamente estável e com as fracturas acima referidas estáveis, o autor deu entrada nos serviços de urgência do Hospital de … de ….

23. Com o seguinte diagnóstico: “TCE, com perda de conhecimento, hematoma epicraniano frontal, fratura da tíbia e perónio direito, entorse do maléolo esquerdo”.

24. Durante o internamento no Hospital de ..., foi observado pela cirurgia plástica, oftalmologia, neurocirurgia, tendo tido alta destas especialidades.

25. Fez TC CE das órbitas que revelou um extenso hematoma das partes moles hepicraneanas da região frontal.

26. Por se encontrar clinicamente estável, foi-lhe dada alta clínica no dia 28 de Janeiro de 2008, para continuação de tratamentos pela 2ª ré.

27. O autor foi admitido ao serviço da sociedade “Malionta Construções, Lda.”, através de contrato de trabalho datado do dia 10 de Fevereiro de 2004, sendo seu funcionário efetivo desde 10 de março de 2004.

28. Tinha a categoria profissional de encarregado de segunda categoria, exercendo as respectivas funções segundo as ordens e instruções daquela.

29. Em Janeiro de 2007, o autor auferia a quantia de € 473,42, a que acrescia um prémio mensal de produção de € 258,46, bem como ajudas no valor total de € 51,69.

30. Àquele montante acrescia o subsídio de alimentação na ordem dos € 165,30.

31. Relativamente ao ano de 2007, o autor declarou o rendimento bruto de trabalho dependente no montante de € 6.773,03 (seis mil setecentos e setenta e três euros e três cêntimos).

32. Relativamente ao ano de 2012, o autor declarou o rendimento bruto de trabalho dependente no montante de € 12.256,71 (doze mil setecentos e setenta e três euros e três cêntimos).

33. De acordo com a ficha de alteração clínica, datada de 12 de Novembro de 2008, o autor apresentava uma ITP de 20%.

34. O autor refere subjetivos dolorosos constantes ao nível da perna direita, e esporádicos ao nível do joelho direito, o que é de admitir.

35. O autor não apresenta alterações da marcha; não apresenta alterações da mobilidade do joelho direito, embora com dor nos últimos graus de flexão; apresenta discreta limitação da extensão (< 5º) do tornozelo esquerdo, despertando dor nos últimos graus de flexão.

36. Dado que as dores persistiam, o autor sentia-se incapaz de trabalhar, bem como manter a sua vida quotidiana normal.

37. Como tal, no dia 10 de Setembro de 2009, voltou a ficar de baixa médica.

38. Vindo, em consequência do mesmo, no dia 21 de Setembro de 2009, a ser novamente internado.

39. Tendo sido submetido a nova cirurgia no dia 22 de Setembro de 2009.

40. Ficando internado até ao dia 23 de Setembro de 2009, quando lhe foi dada alta clínica.

41. Após o supra aludido, foi a nova consulta de danos, sendo-lhe atribuída uma ITP de 30%.

42. No dia 01 de Julho de 2010, voltou a nova consulta, onde lhe mantiveram o diagnóstico anterior e a referida ITP.

43. O autor nunca mais pode desfrutar do seu “hobby” preferido, que é a pesca desportiva, dado que exige grande locomoção e força nos membros inferiores.

44. O autor professa a religião …, sendo um …. devoto.

45. Devido aos factos provados em 33., 34.,e 40. e 41., o autor deixou de poder acompanhar determinados rituais religiosos, que a referida religião pratica, o que lhe causa mágoa e tristeza.

46. Devido aos factos provados em 33., 34., 40. e 41., o autor deixou de poder apoiar a sua mulher na vida doméstica, nomeadamente, lavando a loiça, colocando a loiça na máquina ou dando banho ao filho menor.

47. Perdeu grande cumplicidade com o filho mais velho, dado que deixou de poder apoiá-lo nas suas brincadeiras como fazia anteriormente.

48. O autor executa alguns trabalhos que lhe causam dores na coluna e membros inferiores.

49. O autor contraiu créditos bancários, sendo que o primeiro foi em Setembro de 2008, no valor de € 3.500,00, e o segundo, no valor de € 5.000,00, no decorrer do mês de Setembro de 2009.

50. Em consequência do acidente, o autor ficou com os seguintes danos permanentes:

a) Joelho doloroso;

b) Limitação da flexão plantar da tibiotársica, determinando-lhe um Défice Funcional da Integridade Físico–Psíquica de 5 pontos.

51. A consolidação médico–legal das lesões que o autor sofreu em consequência do acidente é fixável em 7 de Abril de 2011.

52. O autor sofreu um período de Défice Funcional Temporário Total situado entre 19 de Janeiro de 2008 e 14 de Fevereiro de 2008.

53. O autor sofreu um período de Défice Funcional Temporário Parcial situado entre 15 de Fevereiro de 2008 e 20 de Setembro de 2009 e entre 24 de Setembro de 2009 e 7 de Abril de 2011.

54. A repercussão temporária na actividade profissional total foi fixada num período de 613 (seiscentos e treze) dias, situados entre 19 de Janeiro de 2008 e 14 de Agosto de 2008, entre 8 de Setembro de 2008 e 16 de Outubro de 2008, entre 6 de Março de 2009 e 7 de Julho de 2009, em 15 de Julho de 2009 e entre 10 de Setembro de 2009 e 7 de Maio de 2010.

55. A repercussão temporária na actividade profissional parcial foi fixada num período de 562 (quinhentos e sessenta e seis) dias, situados entre 15 de Agosto de 2008 e 2 de Outubro de 2008, entre 17 de Outubro de 2008 e 22 de Janeiro de 2009, entre 8 de Julho de 2009 e 14 de Julho de 2009, entre 16 de Julho de 2009 e 9 de Setembro de 2009 e entre 8 de Maio de 2010 e 7 de Abril de 2011.

56. Ao nível da repercussão permanente na actividade profissional, as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

 57. A repercussão permanente ao nível das actividades desportivas e de lazer fixou-se no grau 3 (três) de uma escala de 7 (sete) graus de gravidade crescente.

58. O quantum doloris fixou-se no grau 5 (cinco) de uma escala de 7 (sete) graus de gravidade crescente.

59. O autor necessita de ajudas medicamentosas, no caso, medicação analgésica/anti-inflamatória.

60. O autor nasceu no dia 0 de … de 1977”.

A Relação aditou a seguinte factualidade:

61. A acção emergente de acidente de trabalho com o nº 53/09.6TTSTR, em que figurava como sinistrado o ora autor e como responsável a ora 2ª ré, para quem se achava transferida por força de contrato de seguro a responsabilidade infortunística da entidade patronal do sinistrado, Malionta Construções, Lda., correu termos no 2º Juízo do Tribunal de Trabalho de ….

62. Em 5.7.11, foi proferida sentença que, considerando que o acidente referido em 1. ocorrera no trajecto entre o local de trabalho do sinistrado e a sua residência e fixando em 5,91% a incapacidade parcial permanente de que aquele ficou a padecer, condenou a ora 2ª ré a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante global de 414,35€, devida desde 8.4.11, dia seguinte à alta definitiva.

63. Calculado o capital de remição nos termos de fls. 237, no montante de 6.806,94€, a 2ª ré procedeu ao respectivo pagamento”.

A Relação alterou a seguinte factualidade:

“44. O autor professa a religião ....

45. Devido aos factos referidos em 34., 35., 50. e 57., o autor deixou de poder respeitar o ritual da oração, como o fazia nas datas mais importantes daquela religião, o que lhe causou alguma tristeza.

46. Devido aos factos referidos em 34., 35., 50. e 57., o autor deixou de poder dar banho ao filho pequeno.

47. O autor deixou de poder jogar à bola, andar de bicicleta, correr e caminhar na praia com o seu filho mais velho, como fazia anteriormente.”.

 

V-Apreciação do recurso

  1. Fixação da indemnização a título de danos patrimoniais futuros (dano biológico):

 

O autor/recorrente entende que a redução operada pelo acórdão recorrido é injusta e não atende à extensão e gravidade do dano biológico, realçando diversos factores constantes da matéria de facto que se referem às consequências e sequelas das lesões sofridas (conclusões 10.ª a 26.ª).

A este respeito, alega que assumirão especial relevância os factos provados n.º 19, 20, 25, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 48, 50, 56, 57, 60 (de acordo com a enunciação feita pelo autor a fls. 718 e ss.), dos quais resulta que o autor na data do acidente tinha 30 anos de idade, sofreu traumatismo craniano e fractura da perna direita, do que, após a consolidação, resultaram sequelas permanentes relativa a um joelho doloroso e limitação da flexão plantar da tibiotársica, determinantes de um défice funcional da integridade físico-psíquica de 5 pontos, sendo certo que exercia as funções de encarregado de 2.ª auferindo um vencimento global total de cerca de € 900,00, e que ao nível da repercussão permanente profissional as sequelas são compatíveis com o exercício da sua actividade profissional mas implicam esforços acrescidos, a que acresce ter na sua vida pessoal deixado de praticar a actividade de pesca desportiva e de fazer os seus rituais religiosos como fazia nas datas mais importantes e deixado de poder fazer actividades domésticas e lúdicas que antes praticava.

Sobre este concreto ponto, o acórdão da Relação relatou:

Expostos que foram os parâmetros que, em abstracto, relevam para a fixação da indemnização pelo dano biológico, enquanto dano de natureza patrimonial, impõe-se considerar, em especial, o que consta dos pontos 35., 43. a 48., 50., 56., 57. e 60. da matéria de facto.

Quanto ao limite de idade a considerar, é de perspectivar uma vida activa até aos 70 anos (artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da Portaria n.º 377/2008) e uma longevidade que rondará os 80 anos para os indivíduos do sexo masculino.

Considerando (pontos 29. e 30. da matéria de facto) o salário mensal ilíquido de 473,42€, recebido 14 vezes ao ano e as quantias de 258,46€ e 165,30€ recebidas 12 vezes ao ano, o período de cerca de 36 anos (a partir da consolidação das lesões) durante o qual o autor, provavelmente, trabalhará e o deficit de 5%, encontramos o valor, meramente referencial, de 21.083,40€ (473,42€ x 14 + 258,46€ x 12 + 165,30€ x 12) x 36 x 5%).

Se é certo que o autor receberá imediatamente a indemnização que vier a ser arbitrada, não menos certo é que o mencionado montante salarial não contempla eventuais aumentos (derivados ou não de progressão na carreira) e que, ao menos actualmente, dificilmente estará ao seu alcance conseguir aplicação financeira que compense, sequer, a inflação.

Sabe-se que o autor tem a categoria profissional de encarregado de segunda categoria (as testemunhas referiram encarregado de cofragens) – ponto 28. da matéria de facto. E, considerando a sua idade, não pode deixar de se equacionar que se lhe deparassem novas e mais vantajosas oportunidades laborais ou hipóteses de progressão na carreira.

Por outro lado, há que ter em conta que as limitações descritas nos pontos 34., 35. e 50. da matéria de facto, que afectam os dois membros inferiores, consequentemente, afectando o suporte e movimentação do autor, são de molde a repercutir-se nos mais diversos aspectos da vida do dia-a-dia.

Consideramos, pois, equitativo fixar em 25.000,00€ a indemnização devida ao autor pelo dano biológico, valor conforme aos critérios jurisprudenciais que transparecem da jurisprudência citada na sentença”.

Apreciemos:

O dano biológico constitui uma lesão da integridade física ou psíquica do indivíduo, objecto de tutela, nos termos do disposto no art. 25º, nº l da CRP e no art. 70º, nº 1 do C. Civil, e susceptível de avaliação médico-legal e pecuniária.

 É controversa, porém, a questão do seu enquadramento e, consequentemente, do modo como deve ser ressarcido, sendo que a este respeito é maioritária a jurisprudência no sentido de não conferir autonomia ao dano biológico, enquanto “tercium genus”, sendo um dano com natureza bem específica, que não se esgota num qualquer dano patrimonial em sentido estrito (com repercussões na actividade laboral) nem num simples dano não patrimonial.

Assim, o défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é susceptível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e/ou de natureza não patrimonial.

Serão do primeiro tipo, quando a incapacidade, total ou parcial, se repercuta negativamente no exercício da actividade profissional habitual do lesado, e, consequentemente, nos rendimentos que dela poderia auferir; serão ainda desse primeiro tipo quando, embora sem repercussão directa e imediata na actividade profissional e na obtenção do ganho dela resultante, implique um maior esforço no exercício dessa mesma actividade ou limite significativamente as possibilidades de o lesado optar por outras vias profissionais ao longo da sua vida activa.

É precisamente nesta última vertente que se manifesta o dano-consequência tratado nos autos, uma vez que o défice funcional de que o autor ficou a padecer é compatível com o exercício da sua actividade profissional, embora dele demande esforços suplementares.

Com efeito, quando estão em causa danos corporais que, embora traduzidos num determinado índice de défice funcional não se projectam, directa e imediatamente, na capacidade de ganho, o prejuízo estritamente funcional que resulta para o lesado não perde a natureza de dano patrimonial, na medida em que se traduz num dano de esforço, obrigando-o a um maior empenho para conseguir levar a cabo as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento.

O dano biológico repercute-se na qualidade de vida do lesado, afectando a sua actividade vital: é um dano patrimonial, já que as lesões afectam o seu padrão de vida pessoal e social, havendo que ponderar, no futuro, não apenas o tempo de actividade em função do tempo de vida laboral, mas todo o tempo de vida (longevidade). Assim, mais do que a afectação da capacidade de ganho, susceptível de se repercutir numa perda de rendimento, importa considerar o dano corporal em si, o sofrimento psicossomático que afecta a disponibilidade do autor para o desempenho de quaisquer actividades do seu dia-a-dia.[1]

O critério de indemnização do dano biológico, enquanto dano patrimonial futuro, perda de capacidade de ganho, ou maior penosidade no desempenho de actividade laboral, é o critério da equidade – art. 566.º, n.º 3, do CC.

Ora, o valor indemnizatório atribuído pela Relação (25.000,00€) foi encontrado através de uma fórmula matemática (21.083,40€), arredondada para aquele valor, tendo em conta futuros aumentos salariais, e a repercussão negativa do dano na progressão da carreira do autor.

Ponderaram-se, nesse cálculo matemático, a idade do autor à data da consolidação das lesões, o défice funcional de 5%, o atingimento da idade da reforma aos 70 anos e as remunerações anuais vencidas pelo autor.

Esta fórmula costuma ser usada para calcular a indemnização devida por um défice funcional permanente que atinja, de modo directo e imediato, a capacidade de ganho do lesado.

Ou seja, a Relação fez corresponder, na prática, o défice funcional permanente fixado ao autor a uma efectiva perda da capacidade de ganho, o que não se nos afigura correcto.

Na verdade, como se afirma no Acórdão do STJ, de 07.12.2017 (processo nº 1509/13, in www.dgsi.pt), tal equivaleria a qualificar e a indemnizar o défice atribuído como se de uma incapacidade parcial permanente (IPP) se tratasse e a verdade é que o défice funcional genérico não implica incapacidade parcial permanente para o exercício dessa actividade, envolvendo apenas esforços suplementares.

Não há qualquer dúvida de que o défice funcional permanente de 5% atribuído ao autor, por força das lesões sofridas, e a subsequente sobrecarga de esforço que provoca no desempenho regular da sua actividade profissional, implicam consequências na sua vida, que, de acordo com critérios de verosimilhança ou de probabilidade, se configuram com danos futuros – artigo 564º, n.º 2.

Dada a impossibilidade óbvia de restauração natural, a indemnização, nestes casos, é fixada em dinheiro. Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente – artigo 566º, nºs 1 e 3.

Todavia, a tarefa de quantificação, em dinheiro, do dano não é fácil, pois o recurso à equidade permite sempre uma certa margem de discricionariedade.

Tem-se procurado diminuir esse risco através da utilização de exemplos jurisprudenciais versando situações em que sejam aproximadas as respectivas circunstâncias concretas. Todavia, face à multiplicidade de factores que influenciam cada caso e ao peso relativo que cada um deles pode representar no cômputo indemnizatório, esse exercício não dispensa uma avaliação própria e específica.

Para este efeito, haverá que ter em consideração que, em consequência das sequelas sofridas com o acidente, o autor ficou com as limitações de mobilidade, descritas nos pontos 34., 35. e 50. da matéria de facto, correspondentes a um défice funcional de 5 pontos percentuais, que afectam os dois membros inferiores, e, consequentemente, o seu suporte e movimentação, e que são de molde a repercutir-se nos mais diversos aspectos da vida do dia-a-dia.  Para além do acréscimo de esforço físico no desenvolvimento da sua actividade de trabalhador da construção civil, as lesões sofridas implicam também inegável redução da sua capacidade económica geral, mormente para se dispor ao desempenho de outras actividades concomitantes ou alternativas que, presumivelmente, ainda lhe pudessem surgir na área profissional, ao longo da sua expectativa de vida.

Tendo em conta o referido, e ainda que o autor, à data da consolidação das lesões tinha 34 anos de idade, sendo a esperança média de vida estabelecida para os homens de 77,7 anos, parece-nos adequado e justo o valor de 25.000,00€ fixado pela Relação, muito embora tenhamos chegado a este valor com diferente metodologia e fundamentação.[2]

 

B -Desconto da indemnização liquidada a título de acidente de trabalho.          

 

O autor/recorrente alega que a indemnização atribuída a título de acidente de trabalho não pode ser deduzida ao valor fixado na indemnização a título de dano biológico. Invoca que “a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais de recurso defende que tais indemnizações não se confundem, constituindo o dano biológico um dano autónomo, como é exemplo o sumário do douto Ac do S.T.J. de 11/07/2019, processo 1456/15”.

Sobre este ponto concreto, vejamos o decidido pela Relação:

“Cumpre, agora, em substituição do tribunal recorrido, conhecer da questão de saber se a quantia arbitrada pelo Tribunal do Trabalho a título de indemnização pelo acidente de trabalho sofrido pelo autor - e que a 2ª ré já lhe pagou - deve ser deduzida da indemnização nestes autos arbitrada a título de danos patrimoniais futuros.

Sendo o acidente ocorrido passível de qualificação como de viação e de trabalho – como é o caso dos autos (ponto 62. da matéria de facto) – é pacífico que os danos sofridos pelo lesado/sinistrado não podem ser “duplamente” indemnizados, sendo certo que “a responsabilidade última recai sobre o responsável pelo acidente de viação” (Ac. STJ de 14.4.11, in http://www.dgsi.pt Proc. nº 3075/05.2TBPBL.C1.S1; e jurisprudência aí citada).

Como resulta do que dissemos em IV-B), e considerando apenas a vertente patrimonial da questão, o dano biológico compreende, entre outros, a redução/perda da capacidade de ganho do lesado. A tal limitação pode corresponder uma efectiva perda de rendimentos ou uma acrescida penosidade no desempenho das tarefas laborais.

E, não obstante qualquer das duas situações merecer reparação, é intuitivo que, em termos financeiros, a primeira se assume como mais gravosa do que a segunda.

Ainda assim, as referências que habitualmente são levadas em conta no cálculo da indemnização são idênticas, já que em qualquer dos casos se recorre ao salário do lesado, à sua idade, à previsível vida activa e longevidade, à inflação, à taxa de juro.

Ora, tendo em conta os pontos 61. a 63. da matéria de facto e, em particular, a sentença proferida no processo de acidentes de trabalho, verifica-se que ao ora autor foi atribuída uma indemnização de 6.806,94€, correspondente ao capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de 414,35€, devida desde 8.4.11 por força da sua redução da capacidade de trabalho/ganho, calculada precisamente com base na sua idade, no salário auferido e na incapacidade permanente parcial verificada.

Em consequência, a indemnização já paga ao autor pela 2ª ré deve ser abatida ao montante que, por via desta acção e caso o acidente não fosse simultaneamente de viação e trabalho, haveria de pagar-lhe”.

Não concordamos com a decisão da Relação. Vejamos:

No caso em apreço estamos na presença de um acidente que é simultaneamente um acidente de trabalho e um acidente de viação. Como tem sido entendimento uniforme e reiterado da jurisprudência, as indemnizações decorrentes de acidente de viação e simultaneamente sinistro laboral – assentes em critérios distintos e cada uma delas com a sua funcionalidade própria – não são cumuláveis, mas antes complementares até ao ressarcimento total do prejuízo causado, pelo que não deverá tal concurso de responsabilidades conduzir a que o lesado/sinistrado possa acumular no seu património um duplo ressarcimento pelo mesmo dano concreto.

A responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário.[3]

De facto, a responsabilidade primeira é a que incide sobre o responsável civil. É essa responsabilidade que vai definir o quadro indemnizatório geral, sendo certo, no entanto, que, quanto ao mesmo dano concreto, não pode haver duplo ressarcimento.

Mantém plena validade o ensinamento de Vaz Serra, em anotação ao acórdão do STJ de 30.05.1978: “A solução de que as indemnizações por acidentes simultaneamente de viação e de trabalho se não cumulam e apenas se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado é manifestamente exacta, pois a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir a este um lucro”.

Por isso se diz que as indemnizações fixadas em cada uma dessas jurisdições (civil e laboral) não se sobrepõem, completam-se. As indemnizações são independentes e dessa independência decorre que o tribunal em que for formulado o pedido de indemnização exerce a sua jurisdição em plenitude, decidindo e apurando, sem limitações, a extensão dos danos, e deixando ao critério do lesado a opção pela que melhor lhe convenha, devendo, porém, acrescentar-se que os danos não patrimoniais não entram no cômputo da indemnização laboral.

No entanto, a indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso de o autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente.[4] Como se refere no citado acórdão do STJ nº 394/14, “Com efeito, enquanto a primeira indemnização tem por objecto o dano decorrente da perda total ou parcial da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional habitual, durante o período previsível dessa actividade e, consequentemente, dos rendimentos que dela poderia auferir, a compensação do dano biológico tem como base e fundamento «a perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual»[5].

Os danos já ressarcidos ao autor no processo laboral são os que se mostram descritos nos pontos 62. e 63. dos factos provados. Daí se extrai, que em 5.7.11, foi proferida sentença que, “considerando que o acidente referido em 1. ocorrera no trajecto entre o local de trabalho do sinistrado e a sua residência e fixando em 5,91% a incapacidade parcial permanente de que aquele ficou a padecer, condenou a ora 2ª ré a pagar-lhe o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia no montante global de 414,35€, devida desde 8.4.11, dia seguinte à alta definitiva. Calculado o capital de remição nos termos de fls. 237, no montante de 6.806,94€, a 2ª ré procedeu ao respectivo pagamento.”

Ora, a pensão vitalícia assim atribuída corresponde à redução na capacidade de trabalho ou de ganho do sinistrado, por incapacidade parcial permanente (IPP), conforme resulta do artigo 10º, alínea b), da Lei 98/2009 de 4/9 (Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e Doenças profissionais).

Não foi este, todavia, o dano sobre que incide a indemnização arbitrada nestes autos, no valor de 25.000,00€.

Com efeito, a indemnização arbitrada nestes autos reporta-se ao dano biológico, isto é à perda ou diminuição de capacidades funcionais que, mesmo não importando perda ou redução da capacidade para o exercício profissional da actividade habitual do lesado, impliquem ainda assim um maior esforço no exercício dessa actividade e/ou a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, no decurso do tempo de vida expectável, mesmo fora do quadro da sua profissão habitual. Ou seja, “o dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua actividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras actividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis”[6].

Com efeito, os danos futuros decorrentes de uma lesão física não se limitam à redução da sua capacidade de trabalho pois implicam, desde logo, uma lesão do direito fundamental do lesado à saúde e à integridade física pelo que a indemnização a arbitrar não pode atender apenas àquela redução.

Acresce que a limitação da condição física que a deficiência, dificuldades ou prejuízo de certas funções ou actividades do corpo, o handicap que a incapacidade permanente geral acarreta, colocará sempre, até pelas consequências ao nível psicológico, uma diminuição da capacidade laboral genérica e dos níveis de desempenho exigíveis.

Por isso, como se refere no acórdão deste STJ de 11.12.2012, p. 40/08[7], são de considerar como danos diferentes os que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente.

Assim, a indemnização arbitrada nestes autos (25.000,00€) não incide sobre o mesmo dano que levou o foro laboral a atribuir a pensão anual e vitalícia e o respectivo capital de remissão.

Deste modo, não existe na situação vertente uma duplicação de indemnizações em favor do autor, susceptível, como tal, de provocar um injustificado enriquecimento deste, pelo que à indemnização arbitrada nestes autos não se deverá descontar aquela atribuída pelo foro laboral.[8]

 

VI- Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em julgar a revista parcialmente procedente, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que fez o abatimento da indemnização arbitrada pelo foro laboral, fixando-se a indemnização pelo dano biológico na quantia de 25.000€.

 

Custas pelo autor e ré na proporção dos respectivos decaimentos.

 

Lisboa, 5 de Maio de 2020

 

Raimundo Queirós - Relator

 

Ricardo Costa

 

Assunção Raimundo

 

 

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):

 


_______________________________
 

 

[1] Neste entendimento vide Acórdãos do STJ de 5-12-2017, p. nº 505/15 e de 29-10-2019, p. nº 7614/15, disponíveis em www.dgsi.pt.

[2] Em caso semelhante, no acórdão do STJ de 07-06-2018, Revista n.º 418/13, Rosa Tching (Relatora) foi atribuída a  indemnização no montante de € 26.381,91, a um sinistrado, agricultor, com défice funcional permanente de 5%  e 32 anos de idade. Também  no acórdão de 16-06-2016, Revista n.º 1364/06, Tomé Gomes (Relator), foi atribuida uma indemnização de 25.000, 00€ a uma costureira, com 40 anos de idade, com um défice funcional de 6% . Acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt.

[3] Neste sentido o acórdãos do STJ de 11-02-2012, Revista 40/08; 14-03-2019, Revista n.º 394/14; de 27-06-2019, Revista n.º 816/16; 11-07-2019, Revista n.º 1456/15, todos in www.dgsi.pt.

[4] Veja-se neste sentido João António Álvaro Dias, in “ Dano Corporal. Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Almedina, 2001, pág. 272.

[5] No mesmo sentido, acórdão do STJ, de 13.07.2017, p. nº 3214/11, in www.dgsi.pt.

[6] Nas palavras do acórdão de 06-12-2017, p. 1509/13, in www.dgsi.pt.

[7] Disponível em www.dgsi.pt.

[8] Ver também neste sentido o acórdão de 06-04-2017, Revista n.º 2036/10.4TBFLG.P1.S1, Maria da Graça Trigo (Relatora)

Descritores:
 Responsabilidade extracontratual; Acidente de viação; Acidente de trabalho; Dano biológico; Danos futuros; Danos patrimoniais; Indemnização