Tomar Nota

ECLI:PT:STJ:2020:3805.16.7T8LRA.C1.S1

Relator: Ilídio Sacarrão Martins

Descritores: Responsabilidade extracontratual; Acidente de viação; Concorrência de culpas; Culpa exclusiva; Ciclomotor; Excesso de velocidade; Infracção estradal; Infração estradal; Contrato de seguro; Acidente de trabalho; Circulação automóvel

Processo: 3805.16.7T8LRA.C1.S1

Data do Acordão: 15/01/2020

Votação: Unanimidade

Texto Integral: S

Meio Processual: Revista

Decisão: Concedida a revista, revogado o acórdão recorrido e repristinada a sentença

Indicações eventuais: Transitado em julgado

Área Temática: 7ª Secção (Cível)

Sumário

I - Age com culpa exclusiva na produção do acidente, o condutor de um ciclomotor que estava a circular totalmente na faixa de rodagem oposta, onde se deu o embate frontal e por onde circulava o automóvel, em sentido contrário, violando, assim, o disposto no art. 13.º, n.º 1, do CEst em vigor à data do acidente.
II - Viola ainda o disposto nos arts. 24.º, n.º 1, e 25.º, n.º 1, als. c) e f), do CEst, aquele mesmo condutor que conduzia com excesso de velocidade, deixando um rasto de travagem numa extensão de 9 metros na hemi-faixa do automóvel, sabendo ainda que, circulando numa curva dentro de uma localidade, o deveria fazer a uma velocidade especialmente moderada.
 

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO 

A autora Liberty Seguros, SA intentou acção com processo comum contra a ré - Mapfre Seguros SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 102.959,67, acrescida de juros de mora vincendos desde a data da citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, que celebrou com AA um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho. No dia 18.06.1999, o seu segurado conduzia o motociclo de matrícula …-86-15, quando foi interveniente num acidente de viação, que se deveu à responsabilidade exclusiva do condutor do veículo ...-17-32, o qual não descreveu correctamente a curva que se lhe apresentava à sua direita, nem reduziu a velocidade que imprimia ao seu veículo, acabando por invadir a via de trânsito onde circulava EE, embatendo neste e no motociclo … .
Em consequência do contrato de seguro celebrado entre a autora e AA, entretanto falecido em 29.12.2013, aquela pagou à viúva e às filhas a respectiva indemnização. A responsabilidade civil emergente da circulação do veículo … foi transferida para a ré, mediante contrato de seguro.

A ré contestou imputando a responsabilidade exclusiva do acidente ao próprio AA, pois circulava no eixo da via, a velocidade excessiva, sem capacete e transportando um instrumento agrícola que lhe dificultava a condução.
Já pagou ao sinistrado por acidente de trabalho e segurado, por acordo, o valor de € 125.000,00, sendo € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais e € 100.000,00 a título de danos patrimoniais, quantia que abrange os prejuízos que a autora também ressarciu às herdeiras do sinistrado.
Concluiu pela improcedência da acção e requereu a intervenção acessória das herdeiras de AA, BB, CC e DD.

Admitido o chamamento (fls146) contestou a chamada BB (fls 167 a 173), alegando, em substância, que a autora teve conhecimento do acordo celebrado entre AA e a Mapfre no âmbito do acidente de viação e que o mesmo foi celebrado no pressuposto daquela pagar a indemnização respectiva pelo acidente de trabalho, sendo que a Mapfre nada pagou ao falecido AA quanto aos danos relativos à perda de remuneração e incapacidade, pelo que não há dupla indemnização.

Por sentença proferida em 14.12.2018 foi julgada a acção improcedente e absolvida a ré do pedido.

A Relação, por acórdão de 24.09.2019, julgou parcialmente procedente a apelação, revogou a sentença e condenou a ré a apagar à autora a quantia de € 30.887,90, acrescida de juros de mora desde a citação, até integral pagamento.

A ré interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
I. O âmago da divergência face à decisão recorrida reside na distribuição de culpa no acidente de viação quando o mesmo deverá ser imputável exclusivamente ao segurado na A., bem como, a tábua rasa que se fez ao acordo entre a R. e o segurado na A. onde se acordou pelo ressarcimento de todos os danos sofridos e futuros decorrentes do acidente, designadamente os aqui peticionados pela A. e logo deverá impossibilitar esta de receber da ora R. uma indemnização.
II. Com o devido respeito, o tribunal a quo fez uma incorrecta análise crítica da prova e consequente aplicação indevida do Direito aos factos provados, violando assim os artigos 615º do CPC e 483º,562º e 570º do C.C, 13º do CE, sendo que da sua devida aplicação seriamos conduzidos a uma solução conforme preconizada pelo Tribunal de primeira instância e pela ora recorrente, a improcedência da acção.

III. Ainda que o tribunal a quo tenha alterado a matéria de facto e tenha ficado provado que o condutor do veículo seguro na R. invadiu parcialmente (70 cm) a hemi-faixa contrária, manteve-se provado que o condutor do veículo seguro na A. estava totalmente na via de sentido oposto.
IV. O facto do segurado na R. ter ocupado parcialmente a hemi-faixa contrária não contribuiu para a produção do resultado, acidente.
V. Ainda que o condutor do veículo seguro na R. circulasse o mais próximo à berma direita ( o que face à existência de caniços era difícil - Facto Provado n.º 15) o acidente ocorreria na mesma, já que o ciclomotor circulava totalmente na via oposta, a apenas 1,50 metros da berma esquerda - Facto Provado nº 4.
VI. Se a via tem uma largura total de 5,10 metros, cada hemi-faixa tem uma largura de 2,55 metros - Facto Provado n.º 13
VII. Se o veículo seguro na R. tem uma largura de 1,95 metros - Facto Provado n.º 16 e do início do seu rasto de travagem à berma direita medem-se 1,30 metros - Facto Provado n.º 5, então invadiu apenas 70 centímetros da hemi-faixa contrária (1,30m + 1,95m = 3,25m - 0,70m = 2,55m = largura hemi-faixa).
VIII. Se do início do rasto de travagem do veículo seguro na A. à berma esquerda medem-se 1,50 metros, então mesmo que o veículo seguro na R. circulasse junto à berma direita teria ocorrido o acidente já que 1,95m - 1,50m = 0,45m.
IX. O comportamento do condutor do veículo seguro na R. não foi causal do acidente.
X. O acidente deveu-se exclusivamente ao condutor do veículo seguro na A. circular no meio da hemi-faixa contrária, sendo que mesmo que o condutor do veículo seguro na A. não invadisse parcialmente (70 cm) a outra hemi-faixa o acidente sempre se verificaria!
XI. Caso assim não se entenda, o que não concedemos, então sempre deveria ser diminuto o juízo de censurabilidade do comportamento do condutor do veículo seguro na R., devendo fixar-se em 10% de responsabilidade.
XII. Pois que, circulava numa estrada de terra batida com buracos, Facto Provado n.º 12, com uma hemi-faixa de 2,55m de largura, com um veículo de 1,95m de largura, numa curva de má visibilidade e que atento o seu sentido de marcha era prejudicado na sua largura. Por contraposição ao condutor do veículo seguro na A. que, sem ser prejudicado pelos mesmos caniçais circulava grosseiramente totalmente na hemi-faixa contrária.
XIII. Ainda sem prescindir, sempre estaríamos perante um pedido de indemnização indevido na medida em que, os danos peticionados nestes autos foram antes pagos directamente pela aqui R. ao segurado da A.
XIV. Ao contrário do que fundamenta o tribunal a quo, dos factos provados n.ºs 19 e 26 verificamos que os danos que a aqui R. pagou ao segurado da A. são os mesmos que a A. vem agora peticionar, designadamente, pensões, prestações suplementares e despesas medicamentosas e de tratamentos.
XV. Conforme resulta do acordo junto aos autos com a contestação como doc.4, documento de fls. 132-verso e 133 - Facto Provado n.º 27, o segurado da A. considerou-se totalmente ressarcido por todos os danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do descrito acidente.
XVI. E se a A. sabia da acção intentada pelo seu segurado contra a ora R. (Facto Provado n.º 29), e se ainda assim após a R. pagar ao seu segurado a quantia de 125.000,00€ por todos os danos sofridos no acidente foi pagar adicionalmente ao seu segurado os mesmos danos, fê-lo indevidamente uma vez que aquele já tinha sido compensado!
XVII. Logo a quantia paga indevidamente pela A. ao seu segurado deve ser peticionada a este que viu-se ser compensado duplicadamente e não à R. que já o indemnizou por todos os danos decorrentes do acidente.

Termina, pedindo que o presente recurso seja julgado procedente e, em consequência, seja revogada a decisão proferida e substituída por outra que julgue improcedente a acção declarativa de condenação intentada pela A. contra a aqui R e consequentemente absolva esta do pedido, ou caso assim não se entenda, fixar a responsabilidade da R. em 10% de acordo com o diminuto juízo de censura sobre o condutor do veículo seguro.

A parte contrária respondeu, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir 

II - FUNDAMENTAÇÃO 

A) Fundamentação de facto 
Mostram-se provados os seguintes factos:
1º - No dia 18 de Junho de 1999, pelas 11:15m, AA circulava na Rua …, em …, concelho do …, tripulando o ciclomotor com a matrícula 1-…-86-15, quando se deu um embate entre este veículo e o veículo automóvel com a matrícula ...-17-32, conduzido por EE.
2º - O condutor do ciclomotor circulava na referida via, no sentido sul/norte. 
3º - O condutor do automóvel circulava na mesma via, no sentido norte/sul e, ao descrever a curva que se apresentava à sua direita, invadiu parcialmente a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o condutor do ciclomotor.
4º - O condutor do ciclomotor, quando se apercebeu do automóvel, travou e entrou em derrapagem, o que deixou marcas na estrada numa extensão de 9 metros, marcas essas que, no seu início, distavam 1,50 metros da berma esquerda, atento o seu sentido de marcha.
5º - O automóvel deixou visível, no    pavimento, um rasto de travagem/derrapagem que, no seu início, distava 1,30 metros da berma direita, atento o seu sentido de marca.
6º - O embate deu-se entre as partes frontais de ambos os veículos, sobre a lateral direita do automóvel e na hemi-faixa de rodagem em que circulava o veículo automóvel ...-17-32.
7º - Em consequência do impacto, o condutor do ciclomotor embateu com a cabeça no capô do automóvel.
8º - O ciclomotor ficou debaixo do automóvel.
9º - No momento da sua imobilização, a parte lateral esquerda da retaguarda do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 2,60 metros da berma esquerda da faixa de rodagem.
10º - A parte lateral esquerda da frente do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 2,40 metros da berma esquerda da faixa de rodagem.
11º - A parte lateral direita do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 1 metro da berma direita da faixa de rodagem.
12º - O local do acidente situa-se numa estrada secundária de terra batida, com buracos, que dá serventia a terrenos circundantes.
13º - A faixa de rodagem tinha uma largura de 5,10 metros.
14º - A largura útil dessa faixa de rodagem era prejudicada pela existência de um conjunto de caniços na berma direita, considerando o sentido de marcha norte/sul.
15º - Considerando o mesmo sentido de trânsito norte/sul, a estrada apresenta uma curva para o lado direito, com má visibilidade devido à vegetação de caniços.
16º - O automóvel tinha uma largura de 1,95 metros.
17º - Na sequência do embate, AA sofreu ferimentos graves, designadamente traumatismo craniano com hemorragia subdural agudo, fractura parietal direita e focos de contusão múltiplos com edema cerebral.
18º - A autora celebrou com AA um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 6…/6…3, nos termos do qual assumiu a responsabilidade civil emergente de acidentes de trabalho sofridos pelo tomador do seguro – cfr. apólice de fls. 8, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
19º - No âmbito da acção de processo comum que correu termos no (então) Tribunal do …., sob o n.º 179/10.3T…., a autora foi condenada a pagar a AA as seguintes quantias:
- o custo de todos os medicamentos, tratamentos, consultas, transportes, taxas moderadoras, internamentos e produtos de higiene e limpeza, como fraldas, no montante de 5.812,09€, acrescido de juros de mora à taxa legal de 4% ao ano, vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;
- o custo de todas as despesas relativas a medicamentos, tratamentos, consultas, transportes, taxas moderadoras e produtos de higiene e limpeza, como fraldas, que se venham a mostrar futuramente necessários em virtude das lesões sofridas com o acidente;
- o valor das indemnizações por incapacidade temporária absoluta para o trabalho, vencidas desde o dia seguinte à data do acidente até ao dia da alta (18/06/2000), no montante de 2.477,95€, e bem assim o valor das pensões anuais actualizadas, vencidas desde 19/06/2000, as quais se liquidam até 31/12/2012 no valor de 49.597,68€, acrescidas de juros de mora às taxas legais de 7% ao ano até 30/04/2003 e de 4% ao ano a partir de 01/05/2003, vencidos e vincendos, contados desde a data do vencimento (em 31 de Dezembro do ano a que respeitam) de cada uma das indemnizações e pensões até efectivo e integral pagamento;
- o valor das pensões anuais vincendas a partir de 1 de Janeiro de 2013, devidamente actualizadas;
- a quantia de 12.149,43€, vencida até 31/12/2012, relativa à prestação suplementar prevista na Base XVIII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965, acrescida de juros de mora às taxas legais de 7% ao ano até 30/04/2003 e de 4% ao ano a partir de 01/05/2003, vencidos e vincendos, contados desde a data do vencimento (em 31 de Dezembro do ano a que respeitam) de cada uma das prestações suplementares até efectivo e integral pagamento;
- a título de prestação suplementar, a partir de 1 de Janeiro de 2013, quantia calculada nos termos da Base XVIII da Lei n.º 2127, de 3 de agosto de 1965 – cfr. sentença e acórdão de fls. 15-verso a 70-verso, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
20.º AA faleceu no dia 29 de Dezembro de 2013, tendo deixado como únicas herdeiras a viúva BB e as filhas CC e DD – cfr. decisão de fls. 78, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
21º - A autora liquidou a BB as seguintes quantias:
- 1/3 da pensão devida no período de 19/06/2000 a 31/12/2007, no montante de 8.758,86€;
- 1/3 da pensão devida no período de 01/01/2008 a 31/12/2012, no montante de 7.427,20€;
- 1/3 de juros desde 31/12/2000 a 31/12/2014, no montante de 4.797,90€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2000 a 2007, no montante de 2.193,01€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2008 a 2013, no montante de 3.796,80€;
- 1/3 da pensão devida referente a 2013, no montante de 1.279,49€;
- 1/3 das despesas médicas, medicamentosas e de tratamento (juros incluídos), no montante de 6.066,63€, no montante total de 34.319,89€.
22.º A autora liquidou a CC as seguintes quantias:
- 1/3 da pensão devida no período de 19/06/2000 a 31/12/2007, no montante de 8.758,86€;
- 1/3 da pensão devida no período de 01/01/2008 a 31/12/2012, no montante de 7.427,20€;
- 1/3 de juros desde 31/12/2000 a 31/12/2014, no montante de 4.797,90€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2000 a 2007, no montante de 2.193,01€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2008 a 2013, no montante de 3.796,80€;
- 1/3 da pensão devida referente a 2013, no montante de 1.279,49€;
- 1/3 das despesas médicas, medicamentosas e de tratamento (juros incluídos), no montante de 6.066,63€, no montante total de 34.319,89€.
23.º A autora liquidou a DD as seguintes quantias:
- 1/3 da pensão devida no período de 19/06/2000 a 31/12/2007, no montante de 8.758,86€;
- 1/3 da pensão devida no período de 01/01/2008 a 31/12/2012, no montante de 7.427,20€;
- 1/3 de juros desde 31/12/2000 a 31/12/2014, no montante de 4.797,90€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2000 a 2007, no montante de 2.193,01€;
- 1/3 da prestação suplementar devida no período de 2008 a 2013, no montante de 3.796,80€;
- 1/3 da pensão devida referente a 2013, no montante de 1.279,49€;
- 1/3 das despesas médicas, medicamentosas e de tratamento (juros incluídos), no montante de 6.066,63€, no montante total de 34.319,89€.
24º - A autora despendeu, com a regularização do sinistro, o montante global de 102.959,67€.
25º - À data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação decorrentes da circulação do automóvel encontrava-se transferida para a ré, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 41…3/3 – cfr. apólice de fls. 120, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
26º - AA instaurou uma acção contra a ré, que correu termos no (então) 3.º Juízo do Tribunal Judicial …, sob o n.º 261/2002, peticionando, além do mais, a sua condenação a pagar-lhe as seguintes quantias:
- 240.000,00€, a título de danos não patrimoniais; - a título de danos patrimoniais:
- 580,00€, pelas roupas, capacete e motociclo danificados;
- todas as despesas com ambulâncias, demais transportes, despesas médicas e medicamentosas e de internamento que já foram despendidas, a liquidar em execução de sentença;
- todas as despesas médicas, medicamentosas, hospitalares e de transporte que, de futuro, se venham a revelar necessárias, em função dos danos provocados pelo acidente;
- 1.000,00€ mensais, enquanto o autor for vivo ou até que se esgote o limite do capital seguro, se existir limite, a título de apoio doméstico e de enfermagem;
- 16.161,05€, referentes aos rendimentos perdidos pelo casal, em virtude da mulher do autor ter deixado de trabalhar, e que se integravam no pecúlio familiar;
- 24.316,50€, referentes a rendimentos do trabalho perdidos pelo autor desde a data do acidente e até à data da instauração da acção;
- 190.000,00€, a título de rendimento compensatório daquele que, não fora o acidente, o autor auferiria até ao final da sua provável vida activa – cfr. petição inicial de fls. 121-verso a 130, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
27.º No âmbito do processo referido em 26.º, AA e a ré celebraram acordo, nos termos do qual, o autor reduziu o pedido à quantia de 125.000,00€, sendo 25.000,00€ a título de danos não patrimoniais e 100.000,00€ a título de danos patrimoniais, quantia que a ré aceitou pagar – cfr. documento de fls. 132-verso e 133, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
28º - Em 29 de Março de 2007, a ré entregou a BB a referida quantia de 125.000,00€ - cfr. documentos de fls. 137-verso e 138, cujo teor dou por integralmente reproduzido.
29º - A autora teve conhecimento da acção instaurada contra a ré por AA, a que se alude em 26º.
30º - A ré, aquando da celebração da transacção com o condutor do motociclo tinha conhecimento da existência do processo especial emergente de acidente de trabalho que correu termos em face do presente sinistro.

Factos não provados
a) O automóvel somente se imobilizou quando apresentava já uma das rodas suspensa no ar, sobre o corpo do condutor do ciclomotor e a respectiva viatura.
b) O automóvel imobilizou-se a cerca de 0,5 metros à frente do local onde ocorreu o embate, considerando o seu sentido de marcha.
c) O caniçal atingia cerca de 1,50 metros de altura.
d) O condutor do ciclomotor não circulava com capacete.
e) O condutor do ciclomotor transportava, junto aos pés e preso com as pernas, um instrumento agrícola, designado por foição ou ceifão.
f) A autora teve conhecimento dos concretos termos do acordo firmado entre AA e a ré.

B) Fundamentação de direito 
A questão nuclear colocada pela recorrente e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, consiste em saber se o acidente de viação deverá ser imputado exclusivamente ao segurado na autora, ou, pelo contrário, deverá haver distribuição de culpa.

Está em causa nestes autos um acidente que é simultaneamente de viação e de trabalho, visando a autora com a presente acção o pagamento das quantias que suportou à viúva e às filhas do AA, decorrentes do acidente de viação ocorrido no dia 18.06.1999 na Rua …, em …, concelho do …, entre o ciclomotor de matrícula 1-…-86-15 e o veículo automóvel com a matrícula ...-17-32.

Na sentença da primeira instância foi decidido que o acidente é da exclusiva responsabilidade do segurado da autora, AA, condutor do ciclomotor.
O acórdão da Relação decidiu haver concorrência de culpas dos dois condutores dos veículos intervenientes no acidente, fixando em 70% a culpa do condutor do ciclomotor e em 30% a culpa para o condutor do veículo automóvel.

Insurgindo-se contra esta repartição de culpa, a ré defende que a culpa deverá ser atribuída exclusivamente ao condutor do ciclomotor, tal como ficou decidido na primeira instância.

Vejamos então a questão fulcral da atribuição da culpa no acidente de viação em análise.
Segundo o disposto no nº 1 do 483º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. 
Nas acções de responsabilidade civil extra-contratual, a causa de pedir é complexa, como complexa é normalmente a situação de facto de onde emerge o direito à indemnização, pressupondo, segundo as circunstâncias, a alegação de matéria de facto relacionada com o evento, a ilicitude, a conduta culposa ou uma situação coberta pela responsabilidade objectiva, os prejuízos e o nexo de causalidade adequada entre o evento e os danos.
O facto tem de ser ilícito, ou seja, o agente infringe um dever jurídico através da violação dos direitos subjectivos de outrem, de que são exemplo os direitos de personalidade.

A culpa exigida pelo artigo 483° n° 1 compreende o dolo e a negligência ou mera culpa, a falta de cuidado, a imprudência em face de determinados tipos de situação.
Enquanto que a ilicitude consiste num juízo de censura sobre o próprio facto, na culpa, esse juízo de reprovação incide sobre o agente em concreto, o qual podia e devia, nas circunstâncias, ter agido de modo diverso.

Quanto ao modo de apreciação da culpa, estipula o artigo 487° n° 2 que não deve atender-se in concreto à diligência habitual do autor do facto, mas in abstracto, ponderando as circunstâncias de cada caso e a diligência do homem médio, do bonus pater famíliae. A prova da culpa pertence ao lesado (artigo 487° n° 1). 

Conforme dispõe o artigo 13º nº1 do Código da Estrada, aprovado pelo DL nº 114/94, de 3 de Maio, na redacção dada pelo DL nº 2/98, de 3 de Janeiro, em vigor à data do acidente, “o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes”.

O artigo 24º estabelece os princípios gerais relativos à velocidade. O seu nº 1 preceitua que “o condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo as características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Nas localidades, tal como nas curvas, a velocidade deve ser especialmente moderada - artigo 25º nº 1 alíneas c) e f).

No caso dos autos têm especial relevo os factos respeitantes à dinâmica do acidente.
Assim:
- O condutor do ciclomotor circulava na Rua …, em …, no sentido sul/norte – (1º e 2º). 
- O condutor do automóvel circulava na mesma via, no sentido norte/sul e, ao descrever a curva que se apresentava à sua direita, invadiu parcialmente a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o condutor do ciclomotor – (3º).
- O condutor do ciclomotor, quando se apercebeu do automóvel, travou e entrou em derrapagem, o que deixou marcas na estrada numa extensão de 9 metros, marcas essas que, no seu início, distavam 1,50 metros da berma esquerda, atento o seu sentido de marcha – (4º).
- O automóvel deixou visível, no pavimento, um rasto de travagem/derrapagem que, no seu início, distava 1,30 metros da berma direita, atento o seu sentido de marca (5º).
- O embate deu-se entre as partes frontais de ambos os veículos, sobre a lateral direita do automóvel e na hemi-faixa de rodagem em que circulava o veículo automóvel ...-17-32 (6º).
- No momento da sua imobilização, a parte lateral esquerda da retaguarda do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 2,60 metros da berma esquerda da faixa de rodagem (9º).
- A parte lateral esquerda da frente do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 2,40 metros da berma esquerda da faixa de rodagem (10º).
- A parte lateral direita do automóvel, considerando o seu sentido de marcha, distava 1 metro da berma direita da faixa de rodagem (11º).
- A faixa de rodagem tinha uma largura de 5,10 metros (13º).
- A largura útil dessa faixa de rodagem era prejudicada pela existência de um conjunto de caniços na berma direita, considerando o sentido de marcha norte/sul (14º).
- Considerando o mesmo sentido de trânsito norte/sul, a estrada apresenta uma curva para o lado direito, com má visibilidade devido à vegetação de caniços (15º).
- O automóvel tinha uma largura de 1,95 metros (16º).

O automóvel invadiu parcialmente a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o condutor do ciclomotor, mas não está provado que tal facto seja causa adequada do acidente acima descrito.
Efectivamente, não era exigível ao condutor do automóvel que circulasse totalmente encostado à berma direita, devido aos caniços ali existentes e numa curva para a direita com má visibilidade devido a essa vegetação.
O embate ocorreu totalmente na faixa de rodagem do veículo automóvel, que deixou um rasto de travagem que, no seu início, distava 1,30 metros da berma direita, atento o seu sentido de marcha, o que é bem revelador que o veículo automóvel circulava devagar e dentro da sua hemi-faixa de rodagem que tem a largura de 2,55 metros.

Tais factos, só por si, afastam qualquer juízo de censura sobre o comportamento do condutor do veículo automóvel, que não poderia evitar o embate.

Mas a dinâmica do acidente não se reduz à actuação do condutor do automóvel que, naquelas condições, nada podia fazer para evitar o embate entre os dois veículos.

Releva sobremaneira a conduta negligente do ciclomotor que estava a circular totalmente na faixa de rodagem oposta, onde se deu o embate frontal e por onde circulava o automóvel, violando, assim, o disposto no artigo 13º nº 1 do Código da Estrada (CE).

E deixou um rasto de travagem numa extensão de 9 metros na hemi-faixa do automóvel, sendo bem revelador que conduzia o ciclomotor com velocidade excessiva, pois, apesar da travagem que efectuou, não conseguiu fazer parar o ciclomotor no espaço livre e visível à sua frente, em total violação do disposto no artigo 24º nº 1 do CE.
Violou ainda o disposto no artigo 25º nº 1 alªs c) e f) do CE, pois deveria circular a uma velocidade especialmente moderada, sabendo que a circulação se efectuava numa curva dentro de uma localidade.

Conclui-se, assim, que, o condutor do ciclomotor, não tendo agido de acordo com as normais cautelas impostas aos condutores, violando as disposições legais já indicadas e em completo desrespeito pelas normas estradais, contribuiu exclusivamente para a produção do acidente, actuando ilícita e culposamente, sem que se possa assacar qualquer grau de culpa ao condutor do veículo automóvel.
Nesta conformidade, merecem proceder as conclusões 1ª a 12ª da revista, solução que prejudica a apreciação das restantes conclusões 13ª a 17ª, nos termos do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil. 

SUMÁRIO
- Age com culpa exclusiva na produção do acidente, o condutor de um ciclomotor que estava a circular totalmente na faixa de rodagem oposta, onde se deu o embate frontal e por onde circulava o automóvel, em sentido contrário, violando, assim, o disposto no artigo 13º nº 1 do Código da Estrada em vigor à data do acidente.
- Viola ainda o disposto nos artigos 24º nº 1 e 25º nº 1 alªs c) e f) do CE, aquele mesmo condutor que conduzia com excesso de velocidade, deixando um rasto de travagem numa extensão de 9 metros na hemi-faixa do automóvel, sabendo ainda que, circulando numa curva dentro de uma localidade, o deveria fazer a uma velocidade especialmente moderada.

III - DECISÃO 

Atento o exposto, concede-se provimento à revista e revoga-se o acórdão recorrido, repristinando-se totalmente a decisão da primeira instância.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 15 de Janeiro de 2020


Ilídio Sacarrão Martins (Relator)

Nuno Manuel Pinto Oliveira 

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza 
 

Descritores:
 Responsabilidade extracontratual; Acidente de viação; Concorrência de culpas; Culpa exclusiva; Ciclomotor; Excesso de velocidade; Infracção estradal; Infração estradal; Contrato de seguro; Acidente de trabalho; Circulação automóvel