Tomar Nota

ECLI:PT:STJ:2020:3833.17.5T8LRA.C1.S1

Relator: Pinto de Almeida

Descritores: Contrato de seguro; Risco; Tomador de seguro; Segurado; Dever de informação; Incumprimento; Omissão; Erro; Dolo; Negligência

Processo: 3833/17.5T8LRA.C1.S1

Data do Acordão: 05/05/2020

Votação: Unanimidade

Texto Integral: S

Meio Processual: Revista

Decisão: Concedida parcialmente a Revista

Indicações eventuais: Transitado em julgado

Área Temática: 6.ª Secção (Cível)

Sumário

1. O tomador do seguro está obrigado a declarar ao segurador, com exactidão, todas as circunstâncias que conheça e que, razoavelmente, deva ter por significativas para apreciação do risco (art. 24º, nº 1, da LCS).

2. Pretende-se que, através do cumprimento desse dever, o segurador fique informado sobre os factos relevantes para a sua avaliação do risco – factos que possam influir na decisão de contratar ou de contratar em determinados termos.

3. O critério para aferir a intensidade desse dever será o da diligência de um bom pai de família: incluem-se aí todos os factos e circunstâncias que o tomador conheça e que uma pessoa normal e com conhecimentos médios consideraria relevantes para a apreciação do risco.

4. No incumprimento doloso desse dever de informação – art. 25º, nº 1, da LCS – está em causa o erro do segurador qualificado por dolo negocial do tomador, isto é, de omissões ou inexactidões declaradas com intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o segurador (art. 253º, nº 1, do CC).

6. O dolo não se basta, assim, com o conhecimento da informação omitida: o engano provocado pela não elucidação do segurador terá de ser intencional ou, pelo menos, admitido como efeito necessário ou possível dessa omissão, conformando-se, neste caso, o autor com esse resultado.

7. No caso de omissões ou inexactidões negligentes (art. 26º, nº 1, da LCS), há, da parte do tomador do seguro, inobservância de deveres de cuidado, sem que, contudo, tenha querido ou se tenha conformado com o resultado.

8. Tendo o autor, tomador do seguro, actuado com negligência, omitindo à seguradora factos que vieram a ter influência na ocorrência do sinistro, e  tendo ficado provado que, se soubesse desses factos, a seguradora teria contratado mas em termos diferentes (com outra ponderação do risco e outro prémio do seguro), esta deve cobrir o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido se, aquando da celebração do contrato, a ré seguradora tivesse conhecido o facto omitido.

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

 

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

 

I.

AA intentou esta acção declarativa contra AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, SA.

 

Pediu que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 129.838,20, acrescida de juros de mora vincendos.

 

Como fundamento, alegou:

Celebrou com a Ré um contrato de seguro do ramo multirriscos habitação, relativo a um apartamento;

No dia 8 de Outubro de 2014, deparou-se com o apartamento vandalizado, com danos no valor de € 107.762,76;

Viu-se privado de habitar o apartamento, sendo que o mesmo, no mercado, teria uma renda mensal de cerca de € 650,00.

 

A Ré contestou, defendendo-se por excepção, alegando que o contrato é anulável, porquanto o Autor omitiu que adquirira o imóvel no âmbito de um processo de execução fiscal e que não tinha a sua posse efectiva; caso a Ré tivesse sido informada desses factos, não teria celebrado o contrato.

Impugnou ainda a ocorrência do sinistro, os danos invocados e o seu valor.

Concluiu pela procedência da excepção ou, caso assim se não entenda, pela improcedência da acção.

Percorrida a tramitação normal, foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente, nestes termos:

a) Condeno a ré, “Ageas Portugal”, a ressarcir o autor dos prejuízos causados no imóvel segurado, em montante a liquidar em incidente próprio, sobre o qual incidem juros de mora, à taxa prevista para os juros civis, calculados desde a data em que a quantia em causa seja liquidada e até integral pagamento;

b) Absolvo a ré do demais peticionado.

 

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou procedente, revogando a decisão recorrida e absolvendo a ré de todos os pedidos.

 

Discordando desta decisão, o autor vem pedir revista, tendo apresentado as seguintes conclusões:

 

(…)

4 - São factos provados nos presentes autos que o ora Recorrente adquiriu o imóvel em leilão efectuado pelas Finanças, tendo o mesmo sido adjudicado a 31 Agosto de 2012, e prevista a entrega em Setembro de 2012.

5 - O ora Recorrente celebrou com a Recorrida seguro do mesmo imóvel, e não do recheio, a 10 de Setembro de 2012.

6 - Assim sendo, à data da celebração do seguro jamais o Recorrente admitiu como possível qualquer informação sobre a posse do imóvel para poder celebrar o seguro, seja por que motivo fosse.

7 - Ao celebrar o seguro o Recorrente fez do mesmo modo e de acordo com as instruções que dispunha à data.

8 - Deste modo nenhuma omissão, negligência pode ser assacada ao Recorrente.

9 - Acontece porém que a entrega do imóvel foi protelada pelas Finanças, atento sucessivos recursos do executado.

10 - A entrega do imóvel em perfeitas condições, foi feita ao Recorrente a 29 de Setembro de 2014.

11 - O Recorrente ao entrar no imóvel a 8 de Outubro de 2014 deparou-se com o mesmo vandalizado.

12 - Ou seja, os danos ocorridos no imóvel sucederam depois do Recorrente ter a posse efectiva do mesmo.

13 - Em nada a posse, ou a sua falta, do imóvel contribui ou foi causa para os danos.

14 - Se em termos "físicos" a posse em nada contribui para o danos,

15 - vejamos em relação à formação da vontade na celebração do seguro a mesma condiciona.

16 - É facto assente que o Recorrente é mediador de seguros, como agente exclusivo da ora Recorrida.

17 - Como tal o Recorrente é pessoa mais informada e esclarecida que o cidadão comum em relação aos seguros, até porque ele mesmo recebe formação profissional dada pela Recorrida.

18 - Ora, o Recorrente à data da celebração do seu seguro, tinha por bem, convencido disso mesmo, que para celebrar o seguro de um imóvel na categoria de multirriscos (paredes) não era relevante quem ocupava o mesmo imóvel.

19 - Esta convicção do Recorrente deveu-se ao próprio impresso necessário para formular o seguro, como o questionário do mesmo.

20 - E quer um quer outro jamais se referem quanto à posse do imóvel, ao contrário e bem quanto ao seguro de recheio, que neste caso é dado relevante (o que não se afigura no presente caso).

21 - Mas mais, não só não consta da documentação elaborada para o efeito pela própria Recorrida como esta na formação contínua que dá aos seus agentes, como no caso o Recorrente, jamais alguma vez informou ou relevou que a posse fosse essencial ou sequer relevante para a celebração deste tipo de seguro.

Tanto assim é que já em relação ao seguro de recheio dos imóveis, a seguradora informou e formou os seus colaboradores a indicar e relevar este aspecto.

22 - Além do mais, esta questão foi amplamente esclarecida não só pelo Recorrente como confirmada por várias testemunhas nos autos, como ainda de forma expressa e clara pelas solicitações por escrito formuladas por mediadores em que Recorrida respondeu que a posse não era elemento determinante para celebrar o seguro, conforme documentos juntos a fls. 204 e seguintes dos autos.

23 - Assim, de forma clara ter-se-á de considerar que a posse não era elemento essencial para celebrar o seguro.

24 - Como tal, jamais o Recorrente pode ter ou considerar como determinante a posse para celebrar o seguro.

25 - O segurado, nos termos do Art. 24°, n° 1 da LCS, está obrigado antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco.

26 - Como se disse antes, a posse não era um elemento que o Recorrente considerado relevante nem o tinha como razoável, uma vez que jamais a seguradora o informava de tal condição, inclusive nas várias aulas de formação.

27 - Por outro lado, se a seguradora entendesse ser necessário que o segurado se pronunciasse sobre a posse do imóvel, devia informar isso mesmo, através de formulário ou acções de informação e ou esclarecimento.

A seguradora nos termos do nº 4 do Art. 24° LCS jamais informou o segurado acerca do dever de esclarecer quanto à posse do imóvel, razão porque terá de ser responsável por tal omissão.

28 - O Art. 24°, nº 3 e Art. 25º ambos da LCS exigem que a conduta do segurado seja dolosa.

29 - Dolo é a intenção de provocar um evento ou resultado contrário ao direito o agente prevê e quer um resultado ilícito ...

30 - No presente caso o Recorrente agiu como sempre o fizera ...

31 - O Recorrente agiu convencido que tudo estava correcto, que era a atitude a tomar,

32 - jamais alguma vez sequer colocou como hipótese estar a omitir o que quer que seja, ou ainda muito menos prejudicar a Recorrida.

33 - Se o Recorrente não previu, ainda assim ele podia prever que tal omissão era relevante de modo a poder enquadrar em dolo eventual?

34 - Uma vez mais a resposta terá de ser negativa, pois, o Recorrente não previu nem podia prever até porque como agente de seguros tem formação dada pela própria Recorrida e esta sempre omitiu como relevante a posse neste tipo de contrato, e considerou a mesma posse relevante apenas para o contrato de seguro de recheio.

35 - Deste modo, jamais pode ser considerada dolosa a conduta do Recorrente.

36 - Antes pelo contrário, o Recorrente agiu convencido que respeitava a legitimidade e obediência às instruções e formações dadas pela Recorrida.

37 - O Recorrente é pessoa séria, agente exclusivo da Recorrida, pelo que jamais podia sequer em pensar defraudar ou enganar a seguradora, sendo esta a sua única fonte geradora de rendimentos.

38 - Face à conduta do Recorrente, a mesma jamais pode ser considerada dolosa ou mesmo negligente,

39 - razão por que a conduta do Recorrente não violou o disposto no Art. 24° e 25° ambos da LCS.

40 - O Venerando Tribunal da Relação de Coimbra fez errada interpretação e aplicação destes artigos.

Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, e em consequência revogar-se o Douto Acórdão do Tribunal da Relação, confirmando a Doutra Sentença proferida pelo Tribunal da Comarca de ....

 

A ré contra-alegou, tendo concluído pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

 

 

II.

 

Questões a resolver:

 

Discute-se no recurso se o contrato de seguro, celebrado entre o autor e a ré, é anulável, nos termos do art. 25º, nº 1, da LCS.

 

 

III.

 

Vêm provados estes factos:

1. Em 10 de Setembro de 2012, o autor celebrou com a ré (à data com a designação de “Axa Portugal - Companhia de Seguros, S.A.”) um seguro multirriscos habitação, titulado pela apólice n.º 009000000000, tendo como objecto seguro a fracção autónoma, sita na Avenida ..., n.º 00, …, em ... – cfr. proposta de fls. 26-verso a 30-verso, apólice de fls. 31-verso a 32-verso e respectivas condições contratuais gerais e especiais de fls. 33-verso a 85, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

2. Em 10 de Setembro de 2014, foi realizado aumento do capital coberto em tal contrato – cfr. acta adicional de fls. 5 e 6, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. O autor é sócio-gerente da “MSCOL - Sociedade Mediação de Seguros, Lda”, que interveio como mediadora no contrato referido em 1. - cfr. certidão permanente de fls. 86 a 87 e apólice de seguro de fls. 31-vº a 32-vº, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. O autor adquiriu o imóvel em questão no âmbito de um processo de execução fiscal que correu termos no Serviço de Finanças da ... com o n.º 1392200901011685 – cfr. documento de fls. 171, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

5. O imóvel foi adjudicado ao autor em 31 de Agosto de 2012 – cfr. certidão permanente de fls. 88, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

6. O autor tomou posse efectiva do imóvel no dia 29 de Setembro de 2014, data em que procedeu à troca do canhão da fechadura da respectiva porta de entrada.

7. Em data não concretamente apurada, mas entre 29 de Setembro de 2014 e 8 de Outubro de 2014, através de arrombamento da porta de entrada, o apartamento em questão foi vandalizado, dele tendo sido retiradas/danificadas louças sanitárias, móveis fixos de cozinha e de casa de banho, torneiras e acessórios, roupeiros, pavimentos de madeira, rodapés de madeira e granito, portas e guarnições de carvalho, azulejos, estores, pedras de granito polido, tubos de canalização PEX, instalação eléctrica, de iluminação e de água, e inscritos diversos desenhos/símbolos nas paredes.

8. No dia 8 de Outubro de 2014, o autor participou o sinistro à P.S.P. de ..., o que deu origem ao processo de inquérito com o n.º 246/15.7PBLRA – cfr. auto de notícia de fls. 8, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

9. Esse inquérito foi arquivado por não se ter apurado a identidade dos autores da factualidade denunciada – cfr. despacho de fls. 11, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

10. Em 21 de Outubro de 2014, o autor participou o sinistro à ré.

11. O autor não informou a ré dos factos aludidos nos pontos 4.º a 6.º.

12. Do sinistro resultaram danos (descritos em 7.º), que implicaram a realização dos trabalhos elencados a fls. 13-verso e 14 e 184 e 184-verso.

 

Após reapreciação da decisão de facto, a Relação julgou ainda provado o seguinte facto:

- A Ré, sabendo dos factos assentes em 4 a 6, do contencioso judicial admitido sobre a casa e da ocupação desta por BB, até Agosto de 2014, não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.

 

 

IV.

 

Discute-se no recurso se o autor incumpriu dolosamente o "dever"[2] de declarar com exactidão todas as circunstâncias relevantes para apreciação do risco pela seguradora.

Está, assim, em causa a declaração inicial do risco, estando o tomador do seguro ou segurado obrigado a informar o segurador de todas as circunstâncias que conheça e que tenha por razoavelmente relevantes para esse efeito. Só, deste modo, o segurador pode formar a sua decisão de contratar e ficará habilitado a precisar o âmbito de cobertura e o montante do prémio.

 

A regulamentação legal desta matéria está prevista nos arts. 24º a 26º da LCS, nestes termos (na parte que aqui interessa):

Art. 24º

1 - O tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.

2 - O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito.

(…)

Art. 25º

1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.º 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro.

2 - Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.

3 - O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no n.º 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.

(…)

Art. 26º

1 - Em caso de incumprimento com negligência do dever referido no nº 1 do artigo 24º, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento:

a) Propor uma alteração do contrato (…);

b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente.

(…)

4 - Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes:

a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente;

b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.

 

O dever que, nos termos do art. 24º, nº 1, impende sobre o tomador do seguro ou segurado destina-se a que o segurador fique informado sobre os factos relevantes para a sua avaliação do risco – factos que possam influir na decisão de contratar ou de contratar em determinados termos.

O tomador do seguro está obrigado a declarar ao segurador, com exactidão, todas as circunstâncias que conheça e que, razoavelmente, deva ter por significativas para apreciação do risco.

 

O critério para aferir a extensão desse dever e essa razoabilidade será o da diligência de um bom pai de família: incluem-se aí todos os factos e circunstâncias que o tomador conheça e que uma pessoa normal e com conhecimentos médios consideraria relevantes para a apreciação do risco[3].

Apela-se, assim, a um critério abstracto de "normalidade", não dependendo das concretas capacidades do tomador[4]. Diferente será na aferição do juízo de culpa relevante na determinação dos efeitos do incumprimento do aludido dever, em que deve também atender-se às concretas circunstâncias do caso (considerando designadamente a experiência profissional do tomador).

 

Esclarece ainda o nº 2 do art. 24º que o dever de informar todos os factos e circunstâncias conhecidas e relevantes (nº 1) se mantém, mesmo que a estes não seja feita menção em questionário eventualmente pré-elaborado pelo segurador para o efeito. À partida, seria de admitir que, existindo questionário, dele constasse tudo o que razoavelmente se pudesse ter como significativo para a avaliação do risco[5]. De todo o modo, no nº 4 do art. 24º procura-se encontrar uma solução de equilíbrio entre os ónus impostos a cada uma das partes.

 

O incumprimento do dever previsto no art. 24º, nº 1 pode ser doloso ou negligente.

O incumprimento doloso desse dever de informação por parte do tomador confere ao segurador o direito de anular o contrato – art. 25º, nº 1.

Está aqui em causa o erro do segurador qualificado por dolo negocial do tomador, isto é, de omissões ou inexactidões declaradas com intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o segurador (art. 253º, nº 1, do CC); o tomador quer conscientemente a violação do dever de declaração inicial do risco e a indução (ou manutenção) em erro do segurador.

 

Daí deriva que, para se verificar o efeito (invalidade) previsto no art. 25º, nº 1 tem se existir erro do segurador; para além disso, tem de ocorrer a dupla causalidade característica do dolo negocial: o dolo tem de ser causa do erro e este tem de ser essencial para o declarante (art. 254º, nº 1, do CC); "o contrato só é anulável se a decisão do errante (segurador) de se vincular se tiver devido, de modo juridicamente relevante, ao seu erro"[6].

 

No art. 26º prevê-se o caso de omissões ou inexactidões negligentes do aludido dever de informação, em que há, da parte do tomador do seguro, inobservância de deveres de cuidado, sem que, contudo, tenha querido ou se tenha conformado com o resultado.

 

Neste caso, em geral, o segurador pode propor a alteração do contrato ou pode fazê-lo cessar, nos termos do nº 1, als. a) e b).

Interessa-nos, porém, sobretudo o regime previsto no nº 4 do referido artigo, em que se estabelece um nexo causal entre o facto inexacto ou omitido e a ocorrência do sinistro. Assim, se, antes da alteração ou cessação do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas pelo facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes;

- o segurador cobre proporcionalmente o sinistro – al. a);

- o segurador não cobre o sinistro se demonstrar que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido a realidade (o facto omitido ou declarado inexactamente) – al. b).

 

Vejamos, à luz destas considerações, o caso dos autos.

 

No acórdão recorrido, concluiu-se que o autor agiu dolosamente, mantendo a seguradora em erro, pelo que esta não estava obrigada a cobrir o sinistro, não respondendo pelas consequências deste.

Com esta fundamentação:

"O risco constitui um elemento essencial deste contrato.

Dispõe o artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 72/2008 (LCS): (…).

Por sua vez, o artigo 25.º da LCS diz-nos: (…)

Também conforme o preâmbulo da lei em análise, mantém-se a regra que dá preponderância ao dever de declaração do tomador sobre o ónus de questionação do segurador. (Ver acórdão desta Relação, de 11.2.2014, proc. 1265/09, em www.dgsi.pt.)

Originária ou supervenientemente, recai sobre o segurado/tomador a obrigação de não prestar declarações inexactas, assim como não omitir qualquer facto ou circunstância que possam influir na existência ou condições do contrato.

É com base nas declarações prestadas pelo tomador/segurado que a seguradora vai decidir a sua vontade de contratar ou não e em que condições.

O questionário não é o limite das circunstâncias pertinentes, mas é uma referência, pela qual a seguradora dá conhecimento ao proponente de um conjunto de circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco.

A necessidade do questionário resulta da circunstância do segurador não poder proceder a minuciosas indagações, para concretizar um seguro.

O contrato de seguro assenta, especialmente, na boa fé das partes. (STJ, acórdão de 2.12.2013, proc. 2199/10, em www.dgsi.pt.)

O incumprimento doloso daquele dever declarativo do segurado conduz à anulabilidade do contrato.

Esta anulabilidade basta-se com o incumprimento doloso daquele dever, relativo a circunstâncias significativas.

Nos termos do art. 253º do Código Civil, “entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante”.

Feito este enquadramento legal, no caso importa considerar:

Apesar da adjudicação (formal) de 31.8.2012, o Autor só tomou posse efetiva da casa em 29.9.2014, sendo certo que, entretanto, habitou aquela outra pessoa e que à data do sinistro o Autor ainda não habitava a mesma.

O Autor adquiriu a casa em processo de execução fiscal, tendo ocorrido contencioso intentado pelo anterior proprietário, durante um tempo posterior a agosto de 2012.

O Autor é mediador de seguros.

Entendemos que aquelas circunstâncias são significativas para a apreciação do risco e que o Autor conhecia e devia, razoavelmente, entendê-las como tal.

Muitas vezes, a habitação por outrem, que não pelo seu proprietário, revela um menor cuidado nela. (E daí o quesito da seguradora sobre as cedências da coisa.)

A falta de posse efetiva, naquele relativo longo período (2 anos), retira ao Autor o domínio sobre a coisa, tornando irrelevantes, naquele tempo, os seus dados pessoais comunicados à seguradora; seriam então pertinentes os dados relativos ao detentor.

O contencioso e a venda forçada da casa potenciam, como se deteta algumas vezes, “atos de retaliação” sobre a coisa.

O Autor estava obrigado, mesmo que supervenientemente (arts. 91º e seguintes da LCS), a comunicar que não tinha o domínio sobre a casa, estava lá habitar outra pessoa que seria (ou não) obrigada a sair da mesma, em tempo indefinido.

Nesse contexto, o risco (de problemas) era muito superior ao normal. Quem está para sair, a mal, não diligenciará pela casa da mesma forma que aquele que é o seu habitante e dono estabilizado.

Ao omitir aquela realidade, que conhece, não pode desconhecer, o Autor age dolosamente, mantendo a seguradora em erro relativo à mesma.

E, como dissemos já, conforme a lei citada, não é imprescindível à anulabilidade a omissão ou a declaração inexacta susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar.

A previsão do citado artigo 25.º, nº 1, da LCS, não exige a verificação de tal nexo.

Confrontemos aquele preceito com o nº 4 do seu artigo 26.º, para o caso de incumprimento por negligência: “se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes” (…).

Se fosse intenção do legislador exigir essa influência tê-lo-ia feito de forma expressa, como o fez em relação às omissões negligentes. (Neste sentido, acórdão da Relação do Porto, de 14.9.2015, proc. 172/13, em www.dgsi.pt.)

Sendo as circunstâncias significativas, é de presumir a influência delas sobre a vontade contratual da seguradora, que será diversa.

De qualquer maneira, fica provado que a Ré, sabendo dos factos assentes em 4 a 6, do contencioso judicial admitido sobre a casa e da ocupação desta por BB, até agosto de 2014, não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.

Por fim, conforme o referido art.25º, 3, da LCS (o segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso), no caso a Ré não responde pelo sinistro demonstrado.

Uma nota final sobre a pretensa autonomia do mediador para contratar este seguro e sobre a pretensa postura da Ré, que desconsiderava a posse efetiva:

Essa autonomia, para contratar seguros em certas condições, e a desconsideração referida não foram completamente alegadas e completamente esclarecidas. Nessas condições, elas não podendo contender com o dever de informar a seguradora da existência de outros riscos, especiais ou “fora do normal”.

A situação analisada revela-se especial".

 

Decorre da factualidade provada que o seguro contratado entre autor e ré tinha por objecto o imóvel (fracção), não incluindo o recheio, e que o mesmo se destinava a habitação.

No questionário, sucinto, que consta da proposta de seguro, à pergunta sobre se "costuma ceder a habitação por empréstimo, sublocação ou arrendamento", o tomador respondeu "não".

Mas veio a provar-se que, apesar de ter adquirido a fracção em Agosto de 2012, numa execução fiscal, o tomador só tomou posse dela, efectivamente, em 29.09.2014, após contencioso judicial, tendo a fracção sido ocupada, ignorando-se a que título, em que termos e desde quando por BB, até Agosto de 2014.

Também se provou que se a seguradora tivesse conhecimento destes factos não teria contratado nos mesmos termos, mas com outra ponderação do risco e com outro prémio de seguro.

 

Afigura-se-nos que o autor deveria ter informado a ré, mesmo que supervenientemente, da situação em que se encontrava o imóvel e que era necessariamente do seu conhecimento.

Mesmo que se admita que a cedência do seu uso não tenha resultado de vontade do autor, o certo é que este conhecia essa realidade objectiva (ocupação por terceiro), assim como o contencioso judicial que se gerou depois da aquisição da fracção, circunstâncias que uma pessoa medianamente atenta e capaz teria por razoavelmente significativas e, por isso, relevantes para a avaliação do risco, podendo, portanto, influir na decisão de contratar em determinados termos por parte da seguradora, como, aliás, ficou demonstrado.

 

Mas, ao não ter informado a ré desses factos, será que o autor agiu dolosamente?

Assim se concluiu no acórdão recorrido, mas, com o devido respeito, num "salto" na fundamentação que nos parece não inteiramente sustentado.

 

Como se disse, é elemento do dolo a intenção ou a consciência de enganar (animus decipiendi); pressupõe, por isso, uma actuação ou uma omissão orientada no sentido de provocar o erro do declarante ou de o manter em erro[7].

No caso, sabemos que o autor conhecia a situação do imóvel e o contencioso subsequente à sua aquisição e que omitiu à seguradora a informação sobre esses factos. Por via disso, a seguradora contratou em erro, que foi relevante, uma vez que se provou que, com aquela informação, teria contratado mas noutros termos.

Não se provou, porém, que esse erro tenha resultado de actuação intencional do autor; que este, ao omitir aquela informação, tenha, conscientemente, querido induzir ou manter em erro a seguradora sobre a situação real do imóvel.

O dolo não se basta, neste caso, com o conhecimento da informação omitida; o engano provocado pela não elucidação da seguradora teria de ser intencional ou, pelo menos, admitido como efeito necessário ou possível dessa omissão, conformando-se, neste caso, o autor com esse resultado.

Ora, nenhuma destas situações ficou provada.

 

Parece, assim, que apenas é possível afirmar que o autor agiu com negligência, ao omitir à seguradora a aludida informação: conhecia a situação do imóvel, do qual não tinha a posse efectiva, não ignorando que estava até a ser habitado por outra pessoa. É certo, como se referiu, que não pode dizer-se que foi o autor, ele próprio, quem cedeu a habitação a essa pessoa, mas, como parece evidente, não desconhecia esse facto, nem poderia desconhecer a relevância deste para a seguradora, tendo em conta o teor da proposta de seguro e a sua experiência profissional, por exercer a actividade de mediador de seguros.

Impendia, assim, sobre o autor o especial dever de comunicar esses fatos à seguradora. Não o tendo feito, actuou com negligência, tendo, pois, aplicação o regime previsto no citado art. 26º.

 

Aqui chegados, cumpre ter em atenção que o sinistro ocorreu em data situada entre 29/9 e 8/10/2014, depois de, naquela data, o autor ter tomado posse efectiva do andar (mudando até o canhão da fechadura da respectiva porta de entrada). Nessa altura, o andar estava, portanto, desabitado.

 

A questão que pode aqui colocar-se consiste em saber se existe nexo de causalidade entre a informação omitida e o sinistro ocorrido.

Como se referiu, foi pressuposto no contrato de seguro o fim habitacional da fracção e a exclusão da sua cedência a terceiros; destinava-se, assim, a habitação do autor.

Não parece que se possa afirmar que a falta de posse efectiva até 29/9/2014 e a ocupação por terceiro até data anterior a esta tenham propiciado ou favorecido a ocorrência do sinistro.

O mesmo não se passa, porém, com o contencioso judicial que se seguiu à aquisição, ou seja, à venda forçada do andar. Esta, como se afirmou no acórdão recorrido, pode realmente potenciar actos de retaliação, como os que foram praticados no andar, que são, na verdade, puros actos de vandalismo e de destruição. Foi apenas este o objectivo desses actos, ocorridos num apartamento, sem recheio, de um prédio de vários andares; não numa moradia isolada.

A falta de ocupação efectiva do andar, na data dos factos, também pode ter facilitado a prática desses actos; seguramente, pelo menos, na sua extensão.

 

Por outro lado, ficou provado que a ré, se soubesse desses factos, não contrataria nos mesmos termos, faria outra ponderação do risco e, pelo menos, alteraria a cláusula relativa ao prémio do seguro.

Tem assim de reconhecer-se a existência de nexo de causalidade entre o facto omitido à seguradora e a ocorrência do sinistro, sendo embora de afastar, perante este último facto, a aplicação da al. b) do art. 26º, nº 4 – a ré teria, mesmo assim, contratado, embora em termos diferentes.

Entende-se que deve ser aplicado o regime previsto na al. a) desse artigo, devendo a ré cobrir o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido se, aquando da celebração do contrato, a ré tivesse conhecido o facto omitido.

 

Deve, consequentemente, repristinar-se a decisão da 1ª instância de condenação da ré, embora limitada pela referida proporção entre o prémio pago e o prémio que seria devido.

 

 

V.

 

Em face do exposto, concede-se em parte a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, na procedência parcial da acção, condena-se a ré a pagar ao autor o montante, que vier a ser liquidado, dos danos causados no imóvel objecto do contrato de seguro, na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido se, aquando da celebração do contrato, a ré tivesse conhecido o facto omitido; a esse montante acrescem juros de mora nos termos fixados na sentença.

Custas na revista e nas instâncias a cargo do autor e da ré, na proporção do decaimento, fixando-se provisoriamente essa proporção em partes iguais.

 

Lisboa, 5 de Maio de 2020

 

Pinto de Almeida – Relator

José Rainho

Graça Amaral

 

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC):

 


_________________________________
 

 

[1] Proc. nº 3833/17.5T8LRA.C1.S1

F. Pinto de Almeida (R. 345)

Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral

[2] Mais precisamente "encargo", como explica Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, 530 e segs.

[3] Cfr. Menezes Cordeiro, Ob. Cit., 578.

[4] Neste sentido, Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 3ª ed., 144.

[5] Menezes Cordeiro, Ob. Cit., 579.

[6] Romano Martinez, Ob. Cit., 154; no mesmo sentido, Joana Galvão Teles, Deveres de informação das partes, em Temas de Direito dos Seguros (coord. de Margarida Lima Rego), 3ª ed., 382.

[7] "Não existe dolo se há um erro provocado por informações inexactas, sem intenção ou consciência do engano, embora com negligência" – C. Mota Pinto, Teoria geral do Direito Civil, 4ª ed.- (A. Pinto Monteiro e P. Mota Pinto), 522 (nota 717).

Descritores:
 Contrato de seguro; Risco; Tomador de seguro; Segurado; Dever de informação; Incumprimento; Omissão; Erro; Dolo; Negligência