I - É definitivo o juízo formulado pelo tribunal da Relação, no âmbito do disposto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, sobre a prova sujeita à livre apreciação, não podendo ser modificado ou censurado pelo STJ, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do n.º 3 do art. 674.º do mesmo Código.
II - As declarações de parte que não contenham uma confissão escrita não têm força probatória plena, sendo apreciadas livremente pelas instâncias.
III - O juízo de equidade de que se socorrem as instâncias, porque assente na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
IV - Deve ser mantido o juízo de equidade formulado pela Relação na fixação das indemnizações por dano biológico e por danos não patrimoniais, se o mesmo, assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstâncias do caso, não se revela colidente com tais critérios.
V - A privação do uso de um veículo, causadora de prejuízo efectivo, é um dano indemnizável.
VI - Encontrando-se o valor económico do uso de um veículo acidentado na disponibilidade do lesado, usando-o diariamente nas suas deslocações, mesmo que não seja o seu proprietário ou titular de um direito real menor, a privação desse uso deve ser considerada um dano autónomo indemnizável.
VII - O cálculo da correspondente indemnização há-de ser efectuado com base na equidade, sempre que não seja possível averiguar “o valor exacto dos danos”.
VIII - O mesmo deve ser feito pela Relação quando tiver deixado de o fazer, face à solução dada à questão da privação do uso do veículo e porque o STJ não pode substituir-se-lhe.
Não disponível.
Processo n.º 3936/17.6T8PRT.P1.S1[1]
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]:
I. Relatório
AA intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, ambos melhor identificados nos autos, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe o montante global de 35.475,36 €, acrescido de juros vincendos até integral pagamento.
Para tanto, alegou, em resumo, que, no dia ..., pelas 16.20 horas, na Rua ..., junto ao n.º ..., no Porto, ocorreu um acidente em que foram intervenientes o ciclomotor, de marca “…”, com a matrícula n.º -IT-, a si pertencente e por si conduzido, e um veículo ligeiro de passageiros de marca e matrícula desconhecidas, por culpa exclusiva do condutor deste veículo.
Em consequência desse acidente, sofreu lesões físicas e materiais, que lhe provocaram danos que quer ver indemnizados assim discriminados: 376,37 € pela reparação do ciclomotor, 13.000,00 € pela privação do seu uso, 793,11 € para substituição de um par de óculos, 205,88 € para substituição do telemóvel, 100,00 € para substituição das peças de roupa inutilizadas, 3.000,00 € pelo dano estético, 6.000,00 € pelo dano biológico, 5.000,00 € a título de quantum doloris e 7.000,00 € a título de outros danos não patrimoniais.
O Réu contestou, impugnando, por desconhecimento, a essencialidade dos factos alegados e defendendo ser manifestamente exagerada a liquidação operada quanto aos danos peticionados. Contrapôs factos por forma a imputar a culpa na verificação do acidente ao autor, alegando que realizava uma manobra de ultrapassagem em pleno entroncamento e imprimia ao veículo velocidade manifestamente excessiva, não conseguindo controlar o motociclo no espaço livre e visível à sua frente. Concluiu pela improcedência da acção.
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual foi proferido despacho saneador tabelar, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas de prova.
Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal aplicável, após o que foi proferida sentença, onde se decidiu:
“Atento o exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente, condena-se o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 16 190,29 (dezasseis mil cento e noventa euros e vinte e nove cêntimos), correspondentes ao somatório das seguintes quantias: € 769,29+€ 3 871,00+€ 2 450,00+€ 9 100,00), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, à taxa anual de 4 %, desde a data de citação do Réu até efectivo e integral pagamento, absolvendo-se o Réu do demais peticionado.”
Dessa sentença apelaram ambas as partes, tendo o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 26/3/2019, deliberado, por unanimidade, “julgar parcialmente procedente o recurso do Réu no que respeita à sua condenação a pagar ao Autor a quantia de € 3 871,00 a título de danos de privação do uso do veículo, que se revoga, e totalmente improcedente o recurso do Autor.”
Ainda irresignado, o autor interpôs recurso de revista e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
«I - Salvo o devido respeito por melhor opinião, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto não fez uma valoração adequada e completa das regras da experiência e da prova produzida nos autos, da mesma forma que violou claramente quer a lei substantiva quer a lei de processo, bem como decidiu em contradição com a jurisprudência.
II - O Tribunal A quo entendeu que o A., não sendo o proprietário do veículo, não pode ser indemnizado porquanto apenas utilizava o veículo por mera tolerância do seu proprietário.
III - No entanto, não podemos concordar com tal entendimento, porquanto independentemente de o Autor ser ou não o proprietário do veículo, a verdade é que o detentor do veículo, enquanto pessoa que utilizava o veículo e a quem a paralisação do mesmo causou prejuízos, deverá ser indemnizado.
IV - Quem tinha o uso e a fruição do veículo era o Autor e não qualquer outra pessoa, pelo que, tendo ficado privado desse uso e dessa fruição deverá ser indemnizado.
V - Neste sentido, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2018, proferido no processo n.º 3385/15.0T8PNF.P1, in www.dgsi.pt, de acordo com o qual o detentor do veículo deve ser indemnizado nos mesmos termos que o proprietário do veículo: “A privação de uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou o detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui uma perda que deve ser considerada e objeto de indemnização autónoma.”
VI - Face ao que se acaba de dizer entendemos que o Tribunal da Relação decidindo como decidiu violou não só os art.ºs 483º e 566º do código Civil, mas também o art.º 1251º do código Civil, porquanto o Autor tinha a posse do veículo, exercendo o poder sobre este veículo como se do seu proprietário se tratasse (ainda que o não fosse, o que só por mera hipótese académica se admite, motivo pelo qual o acórdão ora em crise deve ser alterado.
VII - Por outro lado, sempre se diga que a privação do uso deverá ser indemnizada per si, independentemente ou não da existência de prejuízos documentados, uma vez que a privação do uso do veículo, desde a data do acidente, originou para o Autor, seu condutor habitual, a perda de utilidades que o mesmo era susceptível de proporcionar, acarretando-lhe necessariamente uma diminuição patrimonial.
VIII - Acresce que, entendemos que o comportamento do Autor em nada agravou este prejuízo porquanto: o acidente teve lugar em 26/06/2014; o despacho de arquivamento do inquérito n.º 8876/14.8TDPRT, que correu termos no DIAP - 7ª secção, da Comarca do Porto, por não ter sido possível apurar a identificação do autor do crime, data de 20/07/2015; e em Outubro de 2015 o A. teve conhecimento da existência de uma testemunha.
IX - No entanto, na posse destes elementos o A. teve ainda que diligenciar junto da Segurança Social para obter protecção jurídica pois não tinha meios económicos para custear a presente acção, pedido esse que foi feito em Janeiro de 2016 e deferido em Maio de 2016.
X - Da mesma forma, o A. não tinha meios económicos para custear uma avaliação médica dos seus danos físicos, motivo pelo qual teve que recorrer aos serviços da sua seguradora, Generali, e solicitar-lhes que no âmbito da protecção jurídica custeassem a referida avaliação, o que veio a suceder, conforme se pode inferir do doc. n.º 10 que se encontra junto com a petição inicial, o qual apenas foi concluído em Outubro de 2016.
XI - Pelo que a interposição da acção apenas em Fevereiro de 2017 não foi derivada a desleixo do Autor.
XII - O Autor desde o acidente e até à presente data encontra-se privado do ciclomotor, pelo que deverá ser fixado o valor de € 13.000.00 como indemnização pela privação do uso.
XIII - Entende o Tribunal A Quo que o documento intitulado “Requerimento de Registo Automóvel” assume relevância probatória diminuta, por não ter sido apresentado no “Instituto dos Registos e do Notariado”, tratando-se nesta medida de um mero documento particular.
XIV - Ora, tal entendimento está manifestamente em contradição com a lei e com diversos Acórdãos proferidos em momento anterior.
XIV - O contrato de compra e venda de automóvel não obedece a qualquer formalidade, tornando-se válido imediatamente não necessitando de nenhum formalismo ulterior à sua celebração e cumprimento das respectivas prestações (entrega do veículo/pagamento do preço).
XV - O acto de registo apenas constitui uma presunção de que o direito existe e que este pertence ao titular nele inscrito, ou seja, apenas gera a notícia da existência do direito.
XVI - A presunção derivada do registo automóvel é, pois, uma presunção juris tantum que admite prova em contrário, tal como aconteceu no presente caso.
XVII - Neste sentido, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03/06/2008, proferido no âmbito do processo n.º 245-B/2002.C1, in www.dgsi.pt: “O contrato de compra e venda de veículo automóvel é meramente consensual (art. 219 do CC), sendo a obrigatoriedade do registo declarativa ou funcional. Trata-se de um contrato com eficácia real ou contrato real, porque a transferência da propriedade se dá por efeito dele (arts. 408 e 874 do CC). Por isso, a validade do contrato de compra e venda de veículo automóvel não depende do registo, por não ter natureza constitutiva, mas antes enunciativa (cf. Ac STJ de 24/2/77, BMJ 264, pág.179, de 3/3/98, BMJ 475, pág.629, Ac RL de 3/11/87, C.J. ano XII, tomo V, pág.88).
No nosso ordenamento jurídico, postulando-se o chamado “ sistema do título “, à produção dos efeitos reais basta o acto pelo qual se estabelece a vontade dessa constituição ou transferência, pelo que o negócio é um e único, obrigacional e real, como negócio real “quoad effectum”.
O primeiro dos efeitos essenciais do contrato de compra e venda é o efeito real, cuja transferência se opera por força do contrato, segundo o princípio da consensualidade (art.408 nº1 e 879 a) do CC).”
XVIII – Acresce ainda que dúvidas não restam de que a posse do veículo era do Autor e que esta acontecia desde que o seu filho adquirira o veículo, pelo que, nos termos do art.º 1268º do Código Civil, este beneficia da presunção da titularidade do direito derivada dessa mesma posse.
XIX – Sendo que, existindo colisão entre a presunção derivada do registo e a presunção derivada da posse, prevalece esta última.
XX – Neste sentido, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/09/2006, proferido no processo n.º 0634313, in www.dgsi.pt, de acordo com o qual: “I - O contrato de compra e venda de veículo automóvel não está sujeito a qualquer formalidade especial, produzindo-se a transferência da propriedade por mero efeito do contrato. Assim, tal contrato é válido mesmo quando celebrado verbalmente.
II - Havendo colisão entre a presunção fundada no registo de um direito (artº 7º do CRP) e a presunção decorrente da posse (artº 1268º CC) com início à data do registo ou anterior a ele, prevalece esta última.
III - Mesmo que a posse e o registo tenham a mesma antiguidade (v.g., prova-se que à data do registo havia posse, mas não se prova a posse anterior), ainda assim — em obediência à prevalência, na nossa ordem jurídica, da situação real, uma vez provada, sobre a situação inscrita — prevalece a presunção possessória.”
XXI – Deste modo, não podia o Tribunal A Quo deixar de concluir que foi ilidida a presunção decorrente do registo e que está demonstrada a propriedade do Autor em relação ao veículo em causa.
XXII – Pelo que, decidindo como decidiu o Tribunal A Quo violou não só o disposto nos art.ºs 219º, 408º e 874º do Código Civil, mas também o disposto no n.º 1 do art.º 1268º do Código Civil.
XXIII – Devendo ser alterada, nos termos da segunda parte do n.º 3 do art.º 674º do CPC, a matéria de facto dada como provada relativamente à propriedade do veículo, devendo ter-se como provados os seguintes factos:
- O primeiro veículo encontra-se registado em nome do filho do Autor, BB, no entanto, o IT foi adquirido pelo Autor ao seu filho BB, pelo que é propriedade do Autor.
XXIV – E, em consequência, deve o A. ser ressarcido pelos danos inerentes à reparação do veículo, no montante de € 376,37.
XXV – No que respeita à dinâmica do acidente, no essencial, o Tribunal A Quo entende que as declarações de parte quando desacompanhadas de outro meio de prova não podem só por si ser suficientes para a prova de qualquer facto.
XXVI – Ora, o Autor não podia estar mais em desacordo com esta tese, a qual consideramos constituir uma manifesta violação do art.º 466º do CPC.
XXVII – Ora, o novo Código de Processo Civil introduziu este novo meio de prova para que as declarações de parte sejam apreciadas pelo Tribunal nos mesmos termos em que a demais prova é apreciada pelo Tribunal, ou seja, de forma crítica e analítica, apreciando nomeadamente a espontaneidade, clareza, coerência e esclarecimento deste tipo de prova, o que é aliás, desde logo esclarecido na Exposição de Motivos do CPC e é esta a interpretação do normativo que tem vindo a ser defendida pela Jurisprudência e Doutrina.
XXVIII – Neste sentido, nomeadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/02/2018, proferido no processo n.º 271/16.0T8ETR.P1, in www.dgsi.pt, de acordo com o qual:
“A credibilidade das declarações da parte, no segmento em que não integrem confissão, deve ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstratas pré-constituídas que, desde logo, desvalorizem o seu depoimento apenas porque é parte, nada impedindo que as suas declarações possam servir para dar certo facto que lhe é favorável como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação (…)”.
XXIX – Na presente situação, o Autor prestou um depoimento esclarecedor, espontâneo, claro e coerente, no qual explicou a forma como se deu o sinistro, nomeadamente, a forma como vinha a circular, a conduta do veículo que circulava à sua frente e o motivo do seu desvio para a esquerda. Referiu que circulava atrás de um veículo ligeiro, que este abrandou a marcha, deu o pisca da direita, manobrou, direccionando o veículo que tripulava para um espaço vago na zona de estacionamento à direita, atendo o sentido de marcha dos veículos. Face a este comportamento do veículo ligeiro, o A. resolveu contorná-lo, não tendo para o efeito que passar a ocupar a hemi-faixa de rodagem da esquerda. Mais, relatou a forma como é surpreendida pelo veículo ligeiro de passageiros a guinar para a esquerda e a atravessar-se à sua frente, no preciso momento em que estava a realizar a manobra de contorno do veículo ligeiro e que, instintivamente, para evitar um choque entre a frente do motociclo e a lateral esquerda do veículo ligeiro, pelo receio das consequências que daí adviessem, desviou-se para a esquerda.
XXX – Da mesma forma clara e precisa o Autor explicitou a forma como ele e a mota derraparam no chão, que antes de chegarem ao local as autoridades, a mota porque se encontrava em cima de si foi retirada do local onde se tinha imobilizado e que ele próprio também já tinha sido retirado do local onde se imobilizara no pavimento, para lhe serem prestados cuidados médicos. Bem como referiu a forma automática e desenfreada como o condutor do ligeiro de passageiros se ausenta do local depois de provocar a sua queda, sem querer saber do seu estado de saúde.
XXXI – Face a todo o exposto estamos em crer que as declarações de parte do Autor devem ser relevadas na sua totalidade porque coerente e consistentes no seu todo, sendo que apesar de não serem confirmadas na totalidade pela prova produzida nos autos, a verdade é que também não são infirmadas por qualquer elemento probatório.
XXXII – A força probatória atribuída às declarações de parte pelo Tribunal A Quo viola na nossa opinião a força probatória do meio de prova legalmente estabelecido no art.º 466º do CPC, pelo que, quanto à dinâmica do acidente, e nos termos da segunda parte do n.º 3 do art.º 674º do CPC, devem ter-se como provados os seguintes factos:
- Ao aproximar-se do referido entroncamento, o veículo desconhecido encostou-se à direita da faixa de rodagem, abrandou a sua marcha e accionou o pisca da direita, junto a um lugar de estacionamento livre;
- Face a este comportamento, o Autor accionou o pisca esquerdo e iniciou a manobra de contorno/ultrapassagem ao veículo desconhecido, tendo-se aproximado, para o efeito, da linha longitudinal descontínua delimitadora dos sentidos de marcha, mas sem invadir a hemi-faixa de rodagem contrária;
- Quando o Autor se encontrava a realizar esta manobra de contorno do veículo ligeiro, o condutor do veículo desconhecido guinou para a sua esquerda, atravessando-se à frente do Autor;
- O Autor travou a fundo e guinou para a esquerda, com vista a evitar o choque frontal do IT com a lateral esquerda do veículo desconhecido, motivo pelo qual o Autor perdeu o controlo do veículo que conduzia, caindo sobre o seu lado esquerdo, juntamente com o ciclomotor;
- Após a queda, o motociclo imobilizou-se em cima da perna esquerda do Autor;
- O condutor do veículo ligeiro acabou por fugir do local, depois de provocar a queda e despiste do Autor, entrando na Rua ....
XXXIII – E, consequentemente, entendemos que se encontram preenchidos todos os elementos integrantes da responsabilidade civil extracontratual decorrente da prática de actos ilícitos, prevista no n.º 1 do art.º 483º do CC: o facto voluntário, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.
XXXIV – Face à matéria de facto que, no nosso entendimento, ficou provada resulta que a culpa exclusiva na produção do sinistro dos autos é de imputar ao condutor do veículo automóvel não identificado.
XXXV – Com a sua conduta a condutora do LX violou, nomeadamente, os n.º 2 do art.º 3º, n.º 2 do art.º 11º, art.º 21º e art.º 35º do Código da Estrada.
XXXVI – Sendo assim, com este seu comportamento, o condutor do veículo automóvel não identificado atentou contra a segurança do trânsito e deu causa ao acidente dos presentes autos.
XXXVII – Ao praticar este facto ilícito e violador das supracitadas normas estradais, o referido condutor actuou de modo negligente, porquanto seria previsível a qualquer condutor medianamente prudente que encostando o seu veículo à direita junto a um lugar de estacionamento, deixando assim livre parte da via de circulação, os demais utentes da via prosseguissem a sua marcha e o contornassem.
XXXVIII – Pelo que, ao não ter usado da diligência devida ao guinar para a esquerda e pretender retomar a circulação na respectiva via, podendo efectivamente fazê-lo, incumpriu o condutor do veículo automóvel não identificado as exigências de cuidado objectiva e subjectivamente impostas, preenchendo o conteúdo próprio da negligência ou mera culpa.
XXXIX – Estamos assim perante um facto voluntário (a condução de um veículo, controlável e dominável pela vontade humana) e há uma violação ilícita de um direito do Autor (nomeadamente, o seu direito de propriedade e integridade física) da qual decorrem danos (nomeadamente, danos no veículo do Autor, paralisação do veículo, danos físicos, danos nos objectos transportados).
Sendo que estes danos foram causados pela actuação negligente do condutor do veículo automóvel não identificado. Acresce ainda que entre o acto de condução do condutor do veículo automóvel não identificado, que desencadeou o acidente, e os danos sofridos pelo Autor ocorre um nexo de causalidade adequada.
XL – Face a todo o exposto, deverá o condutor do veículo automóvel não identificado ser considerado como único responsável pelo sinistro dos autos, devendo o ora Recorrido ser condenado na totalidade dos danos apurados.
XLI – O Autor não concorda com o valor da indemnização fixado pelo dano biológico e por danos não patrimoniais, uma vez que entende que estes são violadores não só dos art.ºs 483º, 496º, 562º e 564º do Código Civil, como também não se encontram de acordo com os parâmetros seguidos pela jurisprudência e não respeitam a equidade.
XLII – O art.º 562º do Código Civil consagra o princípio geral orientador da obrigação de indemnização, de acordo com o qual quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, consagrando assim a regra da reconstituição natural.
XLIII – Sendo que, quando não é possível essa reconstituição natural é fixada uma indemnização em dinheiro, de acordo com o art.º 564º do CC.
XLIV – O Autor peticionou a título de indemnização devida pelo dano biológico a quantia de € 6.000,00, considerando que o valor de € 3.500,00 que foi fixado na sentença ora em crise é muito reduzido atendendo ao caso concreto.
XLV – São vários os critérios que têm vindo a ser utilizados pela Jurisprudência para estabelecer o valor adequado à indemnização deste dano biológico (incapacidade parcial geral), no entanto, sejam quais forem os critérios de que se parte, cálculos através de fórmulas matemáticas, com recurso a Portarias dotadas de critérios objectivos, estes devem servir apenas como métodos auxiliares e indicativos, os quais deverão sempre ser temperados com critérios de equidade, nos termos dos art.ºs 494º e n.º 3 do art.º 566º, ambos do CC. Da mesma forma, deve-se tem em conta ainda as soluções adoptadas pelos Tribunais em situações similares, ponderando as necessárias diferenças face ao caso concreto.
XLVI – Na presente situação o Autor à data da ocorrência do sinistro tinha 54 anos, encontrava-se desempregado, ficou com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 2 pontos, e que as sequelas com que ficou são compatíveis com o exercício da actividade habitual, podendo implicar a realização de esforços suplementares associados às queixas álgicas.
XLVII – Ora, num situação em que um adulto de 62 anos ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável de 3 pontos foi fixada, a título de indemnização do dano biológico a quantia de € 5.000,00 - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05/11/2018, proferido no processo n.º 26376/15.7T8PRT.P1, in www.dgsi.pt.
XLVIII - Noutra situação em que um adulto de 60 anos ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável de 3 pontos foi fixada, a título de indemnização do dano biológico a quantia de € 10.000,00 - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/09/2016, proferido no processo n.º 791/09.3TBVCD.P1, in www.dgsi.pt.
XLIX - Noutra situação em que um adulto de 41 anos ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável de 3 pontos foi fixada, a título de indemnização do dano biológico a quantia de € 8.000,00 - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/03/2012, proferido no processo n.º 571/10.3TBLSD.P1, in www.dgsi.pt.
L - Desta forma, e ponderados todos os elementos supra referidos, entende-se adequada a fixação de uma indemnização ao Autor, pelo dano biológico, no valor do pedido de € 6.000,00.
LI - Quanto aos danos não patrimoniais, englobando estes tanto os danos morais como os danos morais complementares, dano estético e quantum doloris, entende o Autor que o montante fixado de € 13.000,00 peca por defeito.
LII - Para a “reparação dos danos não patrimoniais, e como se escreveu no Acórdão STJ de 22-09-2005, acessível através de www.dgsi.pt, “os danos não patrimoniais não são avaliáveis em dinheiro, certo que não atingem bens integrantes do património do lesado, antes incidindo em bens como a vida, a saúde, a liberdade, a honra, o bom nome e a beleza. O seu ressarcimento assume, por isso, uma função essencialmente compensatória, embora sob a envolvência de uma certa vertente sancionatória.
Expressa a lei que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, aferida em termos objectivos, mereçam a tutela do direito (artigo 496º, n.º 1, do Código Civil).
O montante pecuniário da compensação deve fixar-se equitativamente, tendo em atenção as circunstâncias a que se reporta o artigo 494º do Código Civil (artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil).” - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/07/2010, in www.dgsi.pt.
LIII - Sendo que “no ressarcimento de danos não patrimoniais devem ser considerados apenas aqueles que, pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, devendo o tribunal, na determinação da indemnização relativa aos mesmos pautar-se por critérios de equidade - art.º 496º, n.ºs 1 e 3, do Código Civil. Para a formulação de um juízo de valor adequado, haverá que ter em consideração que a indemnização não poderá ser meramente simbólica atenta a dignidade que reveste a integridade física, quer no âmbito dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos - art.ºs 70º, n.º 1, do CC, 9º, al. b) e 25º, n.º 1, da CRP - nem miserabilista, para poder revestir uma efectiva compensação para os danos suportados e a suportar.” - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/09/2010, in www.dgsi.pt.
LIV - A este propósito, e com interesse para a fixação da indemnização devida pelo Autor a título de danos não patrimoniais, diga-se que, com o sinistro a que respeitam os presentes autos, o Autor sofreu uma experiência traumatizante, dramática e de grande sofrimento.
LV - Desde logo, o Autor seguia calmamente no seu ciclomotor, depois de um dia de trabalho, para ir ter com os amigos, quando sofreu o acidente em apreço nos presentes autos, causado exclusivamente pela conduta do condutor do veículo automóvel não identificado. Na sequência do despiste sofrido, o Autor ficou prostrado no chão, sem se poder mexer, com o ciclomotor por cima da sua perna, o que desde logo o incapacitou para diligenciar no sentido de identificar o veículo automóvel em causa ou diligenciar no sentido de, no imediato, identificar testemunhas. Assim, o Autor logo após o sinistro viu-se colocado numa situação de desespero e de grande dor.
LVI - Por força deste sinistro, o Autor foi conduzido ao Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, onde foi sujeito a diversas análises e exames radiológicos, acabando por ser internado durante 8 dias para tratamento de fractura da diáfise da tíbia esquerda, tendo sido operado para encavilhamento anterógrado da perna esquerda com vareta Trigen em 02/07/2014.
LVII - Sendo certo que devido a estes ferimentos e às dores e limitações associados aos mesmos, o Autor, depois de ter alta, permaneceu ainda durante cerca de 5 meses totalmente dependente de terceiros, tendo, nomeadamente, que ir morar com a sua mãe para que esta cuidasse dele, tendo ficado completamente privado da sua autonomia e independência.
LVIII - O Autor sempre foi uma pessoa muito activa, tendo-se visto obrigado, por força das sequelas físicas de que ficou a padecer resultantes do acidente, a abandonar definitivamente as actividades desportivas e de lazer que praticava, designadamente, mergulho e bicicleta.
LIX - Por outro lado, com muito esforço financeiro, o Autor tinha marcado uma férias nos ..., com o seu filho, as quais teve que cancelar, o que lhe causou profundo desgosto e frustração.
LX - Acresce que, face às limitações físicas de que padeceu durante largos meses, o Autor viu-se na contingência de ter que recusar inclusive uma proposta de trabalho na empresa Viatel -Grupo Visabeira, o que ia levando o Autor ao desespero dado que propostas como esta não surgem com frequência, muito menos para quem tem 54 anos e vai sobrevivendo de empregos precários.
LXI – Por força da intervenção cirúrgica realizada, o Autor ficou com várias cicatrizes que o desfeiam consideravelmente.
LXII – Toda esta situação causou-lhe dores, preocupações, sendo muito desgastante quer em termos psicológicos quer emocionais, a que acresce o susto e o receio pela sua vida sentidos no momento do acidente.
LXIII – O Autor esteve com um Défice Funcional Temporário Total por um período de 43 dias e com um Défice Funcional Temporário Parcial por um período de 145 dias.
LXIV – O Autor ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável em 2 pontos, sendo que as sequelas com que ficou são compatíveis com o exercício da actividade habitual, mas exigem esforços suplementares. Sofreu um dano estético de 2 pontos, enquanto o quantum doloris foi fixado em 4 pontos.
LXV – Analisando outros casos em que ocorreram acidentes de viação e foram estabelecidas indemnizações por danos não patrimoniais, facilmente se comprova que a indemnização estabelecida para o Autor, a este título, é reduzida.
LXVI – No processo n.º 26376/15.7T8PRT.P1 supra referido, de um adulto de 62 anos ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável de 3 pontos e lhe foi fixado um Quantum Doloris de 3, sem qualquer Dano Estético foi fixada, a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 12.000,00.
LXVII – No processo n.º 791/09.3TBVCD.P1 supra referido, de um adulto de 60 anos que ficou a padecer de um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica fixável de 3 pontos e lhe foi fixado um Quantum Doloris de 4, sem qualquer Dano Estético foi fixada, a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 15.000,00.
LXVIII – Sopesados todos os factos relativos ao caso concreto e tendo em conta os critérios que devem presidir à fixação do valor relativo aos danos não patrimoniais, legais e jurisprudenciais, e tendo o Autor peticionado globalmente a título de danos não patrimoniais a quantia de € 15.000,00, deverá ser fixada esta quantia como valor a atribuir ao Autor por danos não patrimoniais.
LXIX – Face ao supra alegado deve o valor da indemnização devida ao Autor ser alterado, relativamente aos items em análise, devendo a Apelada ser condenada a pagar ao Autor a quantia global de € 35.475,36, relativa a:
- € 376,37, pela reparação do veículo;
- € 13.000,00, pela privação do uso do veículo;
- € 793,11, como quantia necessária à substituição dos óculos;
- € 205,88, correspondente ao valor do telemóvel;
- € 100,00, relativamente às roupas;
- € 6.000,00, pelo dano biológico;
- € 15.000,00, por danos não patrimoniais.
LXX - A decisão recorrida violou, pelos motivos supra expostos, entre outros, o disposto nos art.°s 219°, 408°, 483°, 494°, 496°, 562°, 564°, 566°, 874°, 1251° e 1268° do Código Civil, nos art.°s 3º, 11°, 21° e 35° do Código da Estrada e no art.° 466° do Código de Processo Civil.
Termos em que deve ser alterada a decisão recorrida e ser o Recorrido condenado a pagar ao Recorrente a indemnização a que este tem direito pela ocorrência do sinistro.»
O recorrido contra-alegou sustentando, no que agora interessa, a improcedência do recurso.
O recurso de revista foi admitido, na sequência de reclamação apresentada ao abrigo do disposto no art.º 643.º do CPC, por decisão da Relatora deste STJ, a quem fora distribuída, entretanto jubilada, na qual já foram apreciados os pressupostos de recorribilidade atinentes ao valor da causa e à sucumbência, bem como à dupla conforme, que se julgou inverificada.
Quanto aos demais pressupostos, não se vislumbra que existam obstáculos à admissibilidade do recurso de revista.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, as questões que importa dirimir, pela ordem que se nos afigura mais adequada, consistem em saber:
Já no que se refere à quantia peticionada pela reparação do veículo, que, em sede de revista, o recorrente reitera ter direito, tratando-se de questão nova, que não foi apreciada pela Relação no acórdão recorrido, não pode ser apreciada pelo STJ.
Com efeito, o objecto do recurso é a decisão, pois os recursos visam modificar decisões e não proferi-las sobre matéria nova, tal como tem sido entendimento unânime na jurisprudência e na doutrina[3].
Não será, por conseguinte, apreciada aqui tal questão suscitada pelo recorrente.
II. Fundamentação
1. De facto
No acórdão recorrido, após reapreciação da prova e da matéria de facto impugnada, foram dados como provados os seguintes factos:
1) No dia ..., pelas 16h20m, ocorreu um acidente de viação na Rua ..., junto ao n.º ..., no Porto, no qual foram intervenientes o ciclomotor de marca …, com a matrícula -IT-, e um veículo ligeiro de passageiros de marca e matrícula desconhecidas.
2) O primeiro veículo encontra-se registado em nome do filho do Autor, BB.
3) O primeiro veículo era conduzido pelo Autor, seu condutor habitual, e o segundo veículo era conduzido por um desconhecido.
4) O IT circulava na Rua ..., no sentido da Circunvalação, na cidade do Porto.
5) No local do acidente, a via é constituída por uma recta, com 10,00 metros de largura, e encontra-se dividida em duas hemifaixas de rodagem, uma para cada sentido de marcha, encontrando-se os sentidos de marcha divididos por linha longitudinal descontínua.
6) A via é demarcada por lugares de estacionamento ao longo do seu percurso, do lado direito da hemifaixa de rodagem, atento o sentido de marcha do IT.
7) No local do acidente, a Rua ... forma um entroncamento à esquerda com a Rua ....
8) No dia e hora supra-referidos, o Autor seguia pela hemifaixa de rodagem da direita, atento o seu sentido de marcha, na sua “mão” de trânsito.
9) Na dianteira do IT, circulava o veículo desconhecido, no mesmo sentido de marcha.
10) Ao aproximar-se do referido entroncamento, o veículo desconhecido encostou-se à direita da faixa de rodagem e abrandou a sua marcha, junto a um lugar de estacionamento livre.
11) A dada altura, o condutor do veículo desconhecido guinou para a sua esquerda, invadiu a hemifaixa de rodagem contrária, cruzando-a e entrou na Rua ....
12) O Autor perdeu o controlo do veículo que conduzia, caiu sobre o seu lado esquerdo, juntamente com o ciclomotor, e ficou imobilizado na zona do entroncamento.
13) O IT sofreu danos, essencialmente no seu lado esquerdo, para cuja reparação são necessárias as peças e a mão-de-obra descritas no orçamento para reparação junto a fls. 12 v.º, no montante de € 376,37.
14) O IT ainda não foi reparado.
15) Este veículo era utilizado diariamente pelo Autor não só nas deslocações de casa para o trabalho, uma vez que apesar de desempregado, frequentava uma bolsa de formação, mas também para todas as deslocações inerentes ao seu dia a dia, como sejam idas ao supermercado, médicos, farmácias, tratamentos, para além de visitas a amigos e familiares e demais momentos de lazer.
16) Em resultado da queda, os óculos do Autor, que usava no momento, ficaram danificados, conforme cópia das fotografias juntas a fls. 13, e a substituição dos mesmos implica um custo de € 793,11.
17) O telemóvel do Autor, que era composto pelo telemóvel, capa e película protectora, tudo no montante de € 205,88, ficou avariado, conforme cópia das fotografias juntas a fls. 14.
18) Ainda como consequência da queda, o blusão e o calçado do Autor ficaram rompidos e inutilizados, conforme cópia das fotografias juntas a fls. 15 v.º, os quais tinham o valor de € 100,00.
19) O Autor esteve internado no Serviço de Ortopedia do Hospital de Matosinhos de 27/06/2014 a 04/07/2014, por fractura da diáfise da tíbia esquerda, tendo sido operado para encavilhamento anterógrado da perna esquerda com vareta Trigen em 02/07/2014.
20) Durante 5 meses, o Autor esteve dependente de terceiros, designadamente da sua mãe.
21) O Autor sentiu que foi um peso para a sua mãe pela perda de autonomia.
22) Na falta do veículo IT, o Autor recorreu a transportes públicos.
23) O Autor, por força da sequelas físicas resultantes do acidente, foi forçado a abandonar definitivamente as actividades desportivas/de lazer que praticava, designadamente mergulho e bicicleta.
24) O Autor tinha férias marcadas com o filho, no arquipélago dos ....
25) Em virtude do défice funcional temporário resultante do sinistro, o Autor teve de cancelar as referidas férias.
26) O Autor recusou uma proposta de trabalho da empresa Viatel - Grupo Visabeira, conforme carta e declaração médica juntos a fls. 30 v.º a 32.
27) Toda esta situação, em termos psicológicos e emocionais, tem sido desgastante e penosa para o Autor.
28) O Autor ficou com um Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica de 2 pontos, correspondente à afectação definitiva da sua integridade física e psíquica, com repercussão nas actividades da via diária, incluindo as familiares e sociais.
29) O Autor sofreu um Dano Estético Permanente relativo às cicatrizes deixadas pela operação realizada, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem do Autor quer em relação a si próprio, quer perante os outros, fixável no grau 2 de 7.
30) O “quantum doloris”, correspondente ao sofrimento físico e psíquico vivido pelo Autor durante o período de incapacidade temporária, ou seja, desde a data do evento até à data da consolidação das lesões, é fixável no grau 4 em 7.
31) O despacho de arquivamento do inquérito n.º 8876/14.8TDPRT, que correu termos no DIAP - 7.ª Secção, da Comarca do Porto, por não ter sido possível apurar a identificação do autor do crime, data de 20/07/2015, conforme documento junto a fls. 35 e ss.
2. De direito
2.1. Da alteração da matéria de facto concernente à propriedade do ciclomotor e à dinâmica do acidente
Antes de entrar na análise desta questão suscitada, importa deixar aqui bem claro o âmbito dos poderes do STJ na parte relativa à alteração da matéria de facto que consta dos art.ºs 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, ambos do CPC.
Nos termos do primeiro normativo “[a] decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”.
E, de acordo com este preceito, “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto do recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Assim, o fundamento da revista previsto nesta norma visa a intervenção (excepcional) do Supremo, no plano dos factos, quando tenha havido “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Fora esta intervenção (excepcional), escapa, pois, aos poderes cognitivos do STJ apreciar a bondade da decisão de facto, cabendo essa missão ao Tribunal da Relação, que sobre a mesma decide em definitivo. Na verdade, é da competência das instâncias o julgamento respeitante à demonstração, ou não, da materialidade controvertida com base em prova sujeita à livre apreciação do tribunal.
A intervenção do STJ no domínio dos factos está reservada ao campo da designada prova tarifada ou vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige determinado tipo de prova para demonstração de certas circunstâncias factuais ou atribui específica força probatória a determinado meio probatório (citado art.º 674.º n.º 3).
É o que temos vindo a decidir[4] e tem sido entendido, de forma unânime, no STJ, como se pode ver nos processos a que se reportam os sumários que aqui se reproduzem na parte relevante, como segue:
“(…)
II - Não cabe recurso para o STJ da matéria de facto, nem pode este dizer se a Relação decidiu bem ou mal quando alterou os factos provados e não provados, sustentando a sua posição em prova testemunhal e prova documental sujeitas à livre apreciação – não sendo situação elencada nos arts. 674.º, n.º 3 e 682.º, n.º 2, ambos do CPC – e não havendo exigência legal, para a prova dos factos alterados, de meio de prova com força tabelada ou mais exigência do que os tomados em consideração. (…)”[5]
“I - A discordância da apreciação crítica e conjugada da prova feita pela Relação e da convicção que, com base nas provas produzidas, a mesma formou não é sindicável pelo STJ, desde que não enquadrável nas excepções previstas no art. 674.º, n.º 3, do CPC.
(…)”[6]
“I - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista por escapar aos poderes de sindicância do STJ (n.º 4 do art. 662.º do CPC), a não ser nas duas hipóteses previstas no n.º 3 do art. 674.º do CPC, isto é: quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou haja violação de norma legal que fixe a força probatória de determinado meio de prova (…)”[7].
“I - A função do STJ, como tribunal de revista, está essencialmente ligada à reapreciação de questões de direito, pressuposta a fixação da matéria de facto pelas instâncias.
II - O STJ, mesmo quando esteja em causa matéria de facto, apenas pode ser confrontado com questões de direito, pois é nesse campo que se justifica o acesso ao terceiro grau de jurisdição.
III - Não é da vocação do STJ entrar na apreciação de aspetos que estão ligados à materialidade, a não ser naqueles casos excecionais em que a delimitação da matéria de facto provada ou não provada esteja viciada por algum erro de direito no que concerne à consideração ou desconsideração do valor tarifado de certos meios de prova.
IV - Tendo a Relação, tanto na fixação da matéria de facto, como na formulação dos juízos probatórios sobre os factos provados, se contido nos estritos limites do princípio da livre apreciação dos meios de prova sem valor pleno, está vedada a intervenção do STJ.”[8]
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
A Relação manteve a referida matéria intocada com base no facto de os documentos indicados (seguro de responsabilidade civil automóvel e requerimento de registo automóvel), sendo meros documentos particulares, serem insuficientes para demonstrar a propriedade do veículo e de as declarações de parte do autor não terem a virtualidade de demonstrar, por si só, a dinâmica do acidente alegada pelo recorrente, ao que acresce a circunstância de a prova documental e a prova testemunhal produzida a esse propósito também não serem suficientes para a comprovar.
Por seu turno, o recorrente sustenta que, constituindo o registo mera presunção de que o direito existe e que pertence ao titular inscrito, presunção essa que admite prova em contrário, deve a matéria relativa à propriedade do veículo ser dada como provada uma vez que o recorrente tem a posse do veículo e a presunção derivada desta prevalece sobre a presunção derivada do registo.
Já no que concerne à dinâmica do acidente, reitera que as declarações de parte por si prestadas devem valer como qualquer outra prova, pelo que, ao ter decidido, de forma diversa, violou o tribunal recorrido a força probatória desse meio probatório.
A presunção derivada do registo não se mostra ilidida, nem a pretendida elisão pode ser aqui apreciada, por respeitar a matéria de facto (cfr. definição de presunções dada pelo art.º 349.º do Código Civil), a apreciar pela Relação, e não ter como fundamento a “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto”, muito menos “que fixe a força de determinado meio de prova”.
As declarações de parte não confessórias não têm força probatória plena, sendo apreciadas livremente pelo tribunal.
É o que resulta do art.º 466.º, n.º 3, do CPC que dispõe:
“O tribunal aprecia livremente as declarações de parte, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Sabe-se que a “confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” (cfr. art.º 352.º do Código Civil).
A confissão judicial deve ser escrita e só esta tem força probatória plena contra o confitente (art.º 358.º, n.º 1, do Código Civil).
A confissão judicial que não seja escrita é apreciada “livremente em tribunal” (n.º 4 do citado art.º 358.º).
Assim, em termos legais, as declarações de parte só têm força probatória plena quando houver confissão escrita de factos desfavoráveis ao confitente, sendo as declarações livremente apreciadas pelo tribunal, na parte em que não representem confissão.
Neste sentido decidiu-se no acórdão deste STJ de 26/9/2017, 1.ª Secção, proferido na revista n.º 13769/13.3T2SNT.L1.S2[9], em cujo sumário se pode ler:
“(…)
III - As «declarações de parte» prestadas na audiência de discussão e julgamento ficam sujeitas ao princípio da livre apreciação de prova, na parte em que não representem confissão reduzida a escrito.”
Não estamos perante confissão escrita de factos desfavoráveis em que se possa falar de força probatória plena contra o confitente. Nem o recorrente se atreve a tanto!
Logo, situamo-nos no âmbito do princípio da liberdade de julgamento, o qual “faculta ao tribunal apreciar livremente as provas e fixar a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvaguardando os casos excecionais em que a apreciação livre deve ceder perante a exigência de formalidade legal, de documento ou de prova já plenamente efetuada.”[10]
É pacífico que as declarações de parte, porque submetidas ao indicado princípio da liberdade de julgamento, podem e devem ser atendidas como meio de prova complementar em relação a outros produzidos nos autos.
Não se ignora que, no que tange à livre valoração das declarações de parte, a doutrina e a jurisprudência não são unívocas, assumindo três posições essenciais, a saber: “tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, tese do princípio de prova e tese da autossuficiência ou valor autónomo das declarações de parte”[11].
Ainda que se aderisse a esta tese, por ser a solução mais ajustada, entendendo que as declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo, não poderíamos considerar aqui tais declarações pela simples razão de que, não fazendo prova plena, é da competência exclusiva das instâncias a sua apreciação, estando-nos, assim, vedada a sua reapreciação.
É ao Tribunal da Relação que compete, em última instância, julgar de acordo com a sua íntima e livre convicção, fazendo o seu próprio juízo de valoração das provas e devendo “alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa” (n.º 1 do art.º 662.º do CPC).
Os únicos limites à livre apreciação da prova constam do art.º 607.º, n.º 5, do CPC onde se prevê que ela não abrange “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
No presente caso, não estamos perante qualquer uma destas situações, acabadas de referir: os factos controvertidos e aqui postos em causa não exigem ser provados por formalidade especial, nem estão plenamente provados por documentos, acordo ou confissão das partes.
Por isso, tais factos encontravam-se sujeitos à livre apreciação da prova pelo Tribunal da Relação, a quem competia julgá-los de acordo com a sua própria convicção e mediante a reapreciação da prova produzida, nomeadamente a que se encontra gravada. Nessa medida, o Tribunal a quo podia atribuir à prova produzida - incluindo os elementos probatórios invocados pelo recorrente (seguro de responsabilidade civil automóvel e requerimento de registo automóvel, bem como as declarações de parte) - o valor probatório que entendesse, de acordo com a sua própria convicção e no âmbito da sua autonomia decisória.
A prova a que se refere o recorrente estava, efectivamente, sujeita à livre apreciação pelo Tribunal da Relação, tal como tinha estado pela 1.ª instância. E estando em causa prova sujeita a livre apreciação, o juízo formulado pela Relação, no âmbito do disposto no art.º 662.º. n.º 1, do CPC é definitivo, não podendo ser modificado pelo Supremo Tribunal de Justiça[12].
Sendo definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, não cabe no âmbito do recurso de revista, nem nos poderes do Supremo Tribunal, analisar a apreciação que as instâncias fizeram relativamente à prova sujeita ao princípio da livre apreciação da prova, como pretende o recorrente.
Efectivamente, como começámos por referir no início do tratamento desta questão, o Supremo Tribunal de Justiça apenas intervém no domínio da matéria de facto, nos termos do n.º 3 do citado art.º 674.º, ou seja, relembrando, quando esteja em causa a “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.
Não se tratando de nenhum caso desta intervenção excepcional, nem sendo caso de violação de lei adjectiva, está vedado a este Supremo sindicar o modo como o Tribunal da Relação apreciou a impugnação da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação.
Não estando em causa factos para os quais a lei imponha meios de prova pré-determinados (“prova tarifada”) e não detendo os elementos probatórios indicados pelo recorrente (presunções e declarações de parte) força probatória que exclua ou anule a demais prova produzida, forçoso é concluir que o Tribunal recorrido não violou quaisquer limites ao princípio da livre apreciação da prova, não podendo obter aqui a pretendida alteração quanto à propriedade do ciclomotor e à dinâmica do acidente.
Improcede, assim, esta questão.
2.2. Do preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos
O recorrente sustenta que o acidente é exclusivamente imputável ao condutor desconhecido do veículo não identificado a título de culpa, com base na pretendida alteração da matéria de facto.
Não tendo logrado alcançar esse seu desiderato, é manifesto que não pode obter qualquer alteração acerca da responsabilidade na ocorrência do acidente.
Competia-lhe provar a culpa do autor da lesão (cfr. art.º 487.º, n.º 1, do Código Civil).
Porém, não fez prova dos factos que alegou para esse efeito.
Não provou, designadamente, que iniciou a manobra de ultrapassagem ao veículo não identificado e que o condutor deste guinou para a sua esquerda quando se encontrava a realizar tal manobra.
Apenas ficou provado que o autor/recorrente seguia pela hemifaixa de rodagem direita, atento o seu sentido de marcha, tripulando o IT e que, à sua frente, no mesmo sentido, circulava o veículo não identificado que, ao aproximar-se do entroncamento existente no local, se encostou à direita da faixa de rodagem e abrandou a sua marcha, junto a um lugar de estacionamento livre; que, a dada altura, o condutor deste veículo guinou para a sua esquerda, invadiu a hemifaixa de rodagem contrária, cruzando-a e entrou na Rua ...; que o autor perdeu o controlo do veículo que conduzia, caiu para o seu lado esquerdo, juntamente com o ciclomotor, e ficou imobilizado na zona do entroncamento.
Com base nestes factos, o tribunal da 1.ª instância concluiu que não se apurou a culpa efectiva de qualquer dos condutores dos veículos na produção do acidente e que se trata de responsabilidade pelo risco, fixando a medida de contribuição de cada um dos veículos para os danos, em 30% para o ciclomotor conduzido pelo autor e em 70% para o veículo não identificado, o que foi confirmado pela Relação, dando como assente quer o tipo de responsabilidade quer a proporção fixada.
Assim sendo, não pode o recorrente obter a alteração pretendida relativamente à responsabilidade na ocorrência do acidente com base na culpa exclusiva e efectiva do condutor do veículo não identificado.
Improcede, por conseguinte, esta questão.
2.3. Correcção do quantum indemnizatório fixado a título de dano biológico
As instâncias fixaram tal indemnização em 3.500,00 €, correspondendo a responsabilidade do réu, na proporção de 70%, a 2.450,00 €, ao passo que o recorrente entende que deve ser fixada em 6.000,00 €.
Não lhe assiste razão.
No acórdão recorrido, depois de se considerar que o “dano biológico dos autos” constitui um dano patrimonial, “por representar previsivelmente uma supressão do rendimento potencial do Autor, ao longo do seu período de vida activa”, o que não está posto em causa no recurso, acerca do cálculo da respectiva indemnização, escreveu-se:
«O cálculo desta indemnização é de difícil concretização, por se traduzir numa concretização em dinheiro de um dano sem expressão monetária e por se tratar de um dano futuro.
O Código Civil não estabelece nenhuma forma de cálculo matemática para o cômputo deste ressarcimento. Somente nos diz que a indemnização em dinheiro tem como medida, em princípio, a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos - art.º 566.º n.º 2.
Aplicando este princípio geral a jurisprudência tem vindo a entender, desde há vários anos e de forma pacífica, que “O cálculo da frustração do ganho deverá conduzir a um capital que considere a produção de um rendimento durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequada ao que auferiria se não fora a lesão, correspondente ao grau de incapacidade e adequado a repor a perda sofrida.”[13].
Vê-se assim que a indemnização a arbitrar a este título deve assentar nas regras gerais da equidade (566.º n.º 3 do Código Civil) tendo em linha de conta os elementos objectivos apurados da discussão da causa.
Antigamente, a jurisprudência utilizava habitualmente, como elementos de auxílio para o apuramento de um valor concreto, as regras de cálculo das tabelas financeiras para determinação do capital necessário à formação de uma renda periódica correspondente ao juro anual de 9 % ou as tabelas vigentes para acidentes de trabalho e remição de pensões.
A partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/05/94[14] vieram-se realçar as distorções que esta fórmula ocasiona no cálculo deste tipo de indemnizações.
Com efeito, é do conhecimento geral que as taxas de juros líquidas têm vindo a baixar, pelo que se nos afigura mais ajustado atender a uma taxa de juros na ordem dos 2 %.
Além disso, deve ter-se em especial consideração a previsível inflação no longo prazo, os ganhos de produtividade e as evoluções salariais por progressão na carreira.
Aqui chegados, concordamos com o recurso às fórmulas de cálculo que, desde 1994, vêm sendo propostas pelo Supremo Tribunal de Justiça como princípio de cálculo. Depois, tal como referido acima, deverá fazer-se intervir a equidade, levando em linha de conta as variáveis específicas do caso concreto.»
O acórdão acabou por concordar inteiramente com os parâmetros atendidos na sentença que apreciou e com a indemnização nela fixada «com base nos mesmos, por criteriosa e conforme aos parâmetros seguidos pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores», confirmando-a.
Escreveu-se ali a este propósito:
«No caso vertente, resulta da factualidade provada que o Autor estava desempregado, à data do ajuizado acidente.
Assim, tomando por base o valor da retribuição mínima garantida, à data do acidente do Réu[15], de € 505, de acordo com o art. 2.º do DL. n.º 144/2014, de 30/09, porquanto não existem elementos que tornem plausível a fixação de um rendimento mensal superior, o que perfaz o rendimento anual de € 7.070,00 (valor vezes catorze meses), e atendendo a que a indemnização a arbitrar deve corresponder a um capital produtor de rendimento que se extinguirá no termo do período provável da vida do lesado, determinado com base na esperança média de vida, e não apenas em função da duração da vida profissional ativa, considerando que o Autor ficou afetado de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 2 pontos, como que obtém uma perda patrimonial anual de € 141,40.
Ora, tendo o Autor 54 anos à data do acidente, numa perspetiva média de vida até aos 80 anos[16], temos que deixa de obter, em 26 anos, a quantia de € 3.676,40.
Tal quantia deverá, no entanto, sofrer um ajustamento, uma vez que o Autor vai receber de uma vez só aquilo que, em princípio, deveria receber em frações anuais, pelo que, para evitar uma situação de injustificado enriquecimento à custa alheia, haverá que proceder a um desconto.
A esse propósito, refere o conselheiro Sousa Dinis[17] que “o desconto vai depender do nível de vida do país, do custo de vida e até da sensibilidade do próprio juiz que, genericamente, terá de calcular quando é que o capital estará totalmente amortizado”.
Tal como se adianta em tal estudo, afigura-se ajustado descontar o montante correspondente à fração de ¼, ou seja € 919,10, o que perfaz a quantia de € 2.757,30, sobre a qual deverá recair um juízo de equidade, por forma a adequar a indemnização ao caso concreto.
Deste modo, ponderando que está em causa uma pessoa que ainda tem possibilidade de continuar o seu rumo profissional por cerca de 13 anos após o acidente (idade da reforma), que as sequelas não são impeditivas de realizar qualquer tipo de atividade, mas que exercerá a sua atividade com maior esforço, e sendo de prever que as sequelas sofridas pelo Autor se agravem, ao longo do período de vida expectável, afigura-se justo e equilibrado, tendo em atenção a contribuição do veículo não identificado para os danos, fixar em € 2.450,00 (€ 3.500,00x70%), a indemnização pelo dano biológico sofrido pelo Autor, na sua vertente de dano patrimonial futuro.»
O recorrente não põe em causa os critérios e os parâmetros utilizados no cálculo da indemnização, aceitando-os, nomeadamente o uso dos cálculos matemáticos e o recurso à equidade, limitando-se a discordar do valor fixado, invocando casos decididos pelo Tribunal da Relação.
Porém, o juízo de equidade de que se socorreram as instâncias, porque assente na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade, como tem vindo a sublinhar reiteradamente este STJ[18].
E, no caso, não se vislumbra ofensa na aplicação de critérios normativos, que não foi invocada, os quais, de resto, foram observados, nem o recurso à equidade abala a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade.
Indicam-se aqui, a título de exemplo, alguns acórdãos proferidos pelo STJ em casos similares, isto é, em que foram atribuídas indemnizações a título de dano biológico decorrentes de défices funcionais permanentes da integridade físico-psíquica de baixo índice (como sucede no caso do autos, posto que o recorrente ficou com um défice de 2 pontos, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais).
Assim:
- Incapacidade de 3 pontos, compatível com a actividade habitual, embora implicando esforços suplementares para o exercício da actividade profissional à data do embate, mas não já para o exercício da actual actividade, 19 anos de idade, indemnização de € 8 500,00 (Acórdão de 20-12-2017, Revista n.º 871/12.8TBPTL.G1.S1- 1.ª Secção, Roque Nogueira (Relator) Alexandre Reis Pedro Lima Gonçalves, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Mensais/Civel_2017_12.pdf);
- Incapacidade de 5 pontos, com dificuldades acrescidas na realização de tarefas que impliquem esforço e força, 56 anos de idade, indemnização de € 10 000,00 (Acórdão de 27-04-2017 - Revista n.º 1343/13.9TJVNF.G1.S1 - 2.ª Secção - Tomé Gomes (Relator), Maria da Graça Trigo e João Bernardo, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Mensais/Civel_2017_04.pdf);
- Incapacidade de 2 pontos, 15 anos de idade, indemnização de € 6 000,00 (Acórdão de 16-03-2017 - Revista n.º 294/07.0TBPCV.C1.S1 - 2.ª Secção - Maria da Graça Trigo (Relatora), Bettencourt de Faria e João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt);
- Incapacidade de 7 pontos, sem afectação da capacidade e do exercício da actividade profissional habitual, 35 anos de idade, indemnização de € 10 000,00 (Acórdão de 06-10-2016, Revista n.º 1043/12.7TBPTL.G1.S1 - 7.ª Secção, António Joaquim Piçarra (Relator) *, Fernanda Isabel Pereira, Olindo Geraldes, disponível em www.dgsi.pt);
- Incapacidade de 5 pontos, compatível com o exercício da actividade profissional, 32 anos de idade, indemnização de € 10 000,00 (Acórdão de 02-06-2016, Revista n.º 959/11.2TBSJM.P1.S1 - 7.ª Secção, António Joaquim Piçarra (Relator) *, Fernanda Isabel Pereira, Olindo Geraldes, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Civel2016.pdf);
- Incapacidade de 2 pontos, compatível com actividade profissional, embora com limitações, 25 anos de idade, indemnização de € 11 000,00 (Acórdão de 02-06-2016, Revista n.º 6244/13.8TBVNG.P1.S1 - 2.ª Secção, Álvaro Rodrigues (Relator), Bettencourt de Faria, João Bernardo, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Civel2016.pdf);
- Incapacidade de 3 pontos, compatível com actividade habitual, com esforços suplementares, 42 anos de idade, indemnização de € 15 000,00 (Acórdão de 07-04-2016 - Revista n.º 121/12.7T2AND.P1.S1 - 2.ª Secção, Oliveira Vasconcelos (Relator), Fernando Bento e Távora Victor, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Civel2016.pdf);
- Incapacidade de 3 pontos, compatível com o exercício da actividade habitual mas implicando esforços suplementares, 28 anos de idade, indemnização de € 20 000,00 (Acórdão de 17-12-2015, Revista n.º 3558/04.1TBSTB.E1.S1 - 7.ª Secção, Maria dos Prazeres Beleza (Relatora), Salazar Casanova, Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt);
- Incapacidade de 4 pontos, implicando esforços suplementares numa actividade normal, 10 anos de idade, indemnização de € 12 500,00 (Acórdão de 11-02-2015, Revista n.º 3329/09.9TBVLG.P1.S1 - 1.ª Secção, Martins de Sousa (Relator), Gabriel Catarino, Maria Clara Sottomayor, disponível em http://www.stj.pt/ficheiros/jurisp-sumarios/civel/Civel2015.pdf).
Apesar de alguns valores fixados nos arestos acabados de mencionar se apresentarem superiores ao que foi fixado nestes autos, não podemos deixar de considerar que aqui o grau de incapacidade é apenas de 2 pontos, que o autor já tinha 54 anos de idade e que se encontrava desempregado à data do acidente, como referiram as instâncias. Não podemos, ainda, olvidar que a responsabilidade é meramente objectiva, o que também deve ser tido em conta no juízo equitativo, não sendo irrelevante a natureza da responsabilidade, pois, ao fazer aquele juízo, o tribunal terá de julgar “dentro dos limites que tiver por provados”.
Não há, pois, fundamento para ser alterado o montante indemnizatório fixado pelas instâncias a título de dano biológico.
Improcede, assim, esta questão.
2.4. Correcção do quantum indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais
As instâncias fixaram tal indemnização em 13.000,00 €, correspondendo a responsabilidade do réu, na proporção de 70%, a 9.100,00 €, ao passo que o recorrente entende que deve ser fixada em 15.000,00 €.
Mais uma vez sem razão.
No acórdão recorrido, depois de se reconhecer o direito à compensação por tais danos, por revestirem a gravidade suficiente para serem merecedores da tutela do direito, englobando neles, como já havia feito a sentença, os danos que o autor/recorrente deduzira em separado (7.000,00 € pelos danos não patrimoniais que descreveu, 3.000,00 €, pelo dano estético decorrente das cicatrizes deixadas pela operação realizada, e 5.000 €, a título de compensação pelo sofrimento físico e psíquico por si vivido durante o período de incapacidade temporária), realçou que “no cálculo das indemnizações por danos não patrimoniais se deve recorrer à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do caso - art.º 496.º, n.º 3, e 494.º do C.Civil.”
Frisou, ainda, com recurso a jurisprudência deste STJ, que:
“O montante da indemnização por danos não patrimoniais deve ser proporcional à gravidade do dano e calculado segundo as regras da prudência, do bom senso prático e da justa medida das coisas. Deve ter-se em consideração o sofrimento do lesado, durante e após o acidente bem como as dores físicas e morais de que a vítima sofreu e sofre, bem como o desgosto que as mazelas lhe trouxeram ou trazem.”[19]
Acrescentou, aplicando estes parâmetros ao presente caso:
“No caso dos autos, há que ter especialmente em conta, para além do Défice Funcional Permanente da Integridade Físico Psíquica de 2 pontos, correspondente à afectação definitiva da sua integridade física e psíquica, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo as familiares e sociais, que o Autor esteve internado no Serviço de Ortopedia do Hospital de Matosinhos de 27/06/2014 a 04/07/2014, por fractura da diáfise da tíbia esquerda, tendo sido operado para encavilhamento anterógrado da perna esquerda com vareta Trigen em 02/07/2014; que, durante 5 meses, o Autor esteve dependente de terceiros, designadamente da sua mãe; que o Autor sentiu que foi um peso para a sua mãe pela perda de autonomia; que, por força da sequelas físicas resultantes do acidente, foi forçado a abandonar definitivamente as actividades desportivas/de lazer que praticava, designadamente mergulho e bicicleta; que, em virtude do défice funcional temporário resultante do sinistro, o Autor teve de cancelar umas férias que tinha marcadas para o Arquipélago dos ...; que o Autor recusou uma proposta de trabalho da empresa Viatel - Grupo Visabeira, conforme carta e declaração médica juntos a fls. 30 v.º a 32; que toda esta situação, em termos psicológicos e emocionais, tem sido desgastante e penosa para o Autor; que sofreu um Dano Estético Permanente relativo às cicatrizes deixadas pela operação realizada, correspondente à repercussão das sequelas, numa perspectiva estática e dinâmica, envolvendo uma avaliação personalizada da afectação da imagem do Autor quer em relação a si próprio, quer perante os outros, fixável no grau 2 de 7 e que o “quantum doloris”, correspondente ao sofrimento físico e psíquico vivido pelo Autor durante o período de incapacidade temporária, ou seja, desde a data do evento até à data da consolidação das lesões, é fixável no grau 4 em 7.”
E concluiu, confirmando a sentença:
“Tendo em conta este conjunto de factos e os parâmetros legais, afigura-se-nos ajustado o valor indemnizatório fixado na sentença, que se mantém.
Aliás, cumpre ter presente a jurisprudência fixada recentemente pelo Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que “O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso - e não na aplicação de critérios normativos - deve ser mantido sempre que - situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida - se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspetiva atualística, generalizadamente vêm sendo adotados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.”[20]
Não há dúvida de que o montante da indemnização/compensação pelos danos não patrimoniais foi fixado com recurso à equidade, como manda o n.º 4 do art.º 496.º do Código Civil.
Neste caso, à semelhança do que se disse relativamente à indemnização pelo dano biológico, obedecendo a compensação pelos danos não patrimoniais a juízos de equidade, assentes numa ponderação casuística dos factos tidos por provados, à luz das regras da experiência comum, que não se reconduzem, rigorosamente, a questões de direito ou à aplicação de critérios normativos estritos, não cabe ao STJ a “determinação exacta do valor pecuniário a fixar por não se tratar, em rigor, de uma “questão de direito” mas tão somente da verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o juízo equitativo formulado pelas instâncias”[21].
Por isso, conforme tem sido afirmado pelo STJ e é referenciado no acórdão recorrido, “tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade.”[22]
Tem sido esta a jurisprudência constante do STJ, desde há algum tempo, como se pode ver, ainda, no acórdão de 5/12/2017, revista n.º 1452/13.4TBAMT.P1.S1 - 1.ª Secção[23], referente à fixação das indemnizações por dano biológico e por danos não patrimoniais, transcrevendo-se, por ser ilustrativo do entendimento aqui sufragado, o trecho do seguinte sumário: (…) “V - Deve ser mantido o juízo de equidade formulado pela Relação na fixação das indemnizações por dano biológico e por danos não patrimoniais, se o mesmo, assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstâncias do caso, não se revela colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.”
Tendo em conta os factos supra enunciados, dados como provados, bem como os critérios ou padrões jurisprudenciais que vêm sendo seguidos pelo Supremo Tribunal de Justiça em casos idênticos[24], crê-se, mais uma vez, que a indemnização de 13.000,00 €, fixada pelas instâncias, a título de danos não patrimoniais, reduzida para 9.100,00 €, face à proporção fixada para a contribuição dos veículos na produção dos danos (30% e 70%), não se afasta, de forma substancial, dos ditos padrões, sendo ao invés, consentânea com a gravidade dos danos e bem assim com a circunstância de a responsabilidade ser meramente objectiva, sendo ainda equilibrada face à situação económica modesta do autor, por contraposição à do réu, pelo que, situando-se o juízo prudencial e casuístico que foi feito pelo tribunal recorrido dentro da margem de discricionariedade que lhe é legalmente consentida, por recurso à equidade, não se vislumbram razões para alterar o decidido.
Improcede, por conseguinte, também esta questão.
2.5. Do direito à indemnização pela privação do uso
A Relação, revogando nesta parte a sentença, entendeu que, sendo o recorrente mero detentor/usuário do veículo e não seu proprietário ou titular de um direito real menor ou de outro direito que lhe conferisse o uso ou fruição do mesmo, não lhe assiste o direito de ser indemnizado pela privação do seu uso.
O recorrente sustenta que era seu proprietário e possuidor, assistindo-lhe, por conseguinte, o direito à indemnização pedida a esse título, de 13.000,00 €.
Que dizer?
A questão da indemnização pela privação do uso está longe de obter um tratamento unânime, quer a nível doutrinário, quer jurisprudencial.
Assim, é possível descortinar as seguintes posições:
Uma que argumenta que o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui, em si mesmo, um dano patrimonial indemnizável, bastando a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o respectivo direito à indemnização[25].
Outra que distingue privação do uso e privação da possibilidade do uso, para concluir que só a primeira é em si mesmo geradora da obrigação de indemnizar, e já não a mera privação da possibilidade de uso. Neste caso, embora não seja exigida a prova de todos os danos concretos emergentes da privação de veículo automóvel, exige-se que o lesado demonstre que, se tivesse disponível o seu veículo, o utilizaria efectiva e normalmente, isto é, que dele retiraria as utilidades que o mesmo está apto a proporcionar.[26]
Outra que sustenta que, muito embora a privação do veículo constitua um ilícito, por impedir o proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, é insusceptível, só por si, de fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, sendo necessário que se comprove a sua repercussão negativa na situação patrimonial do lesado[27].
Dentro desta orientação, há quem sustente que, sendo a mera privação do uso de um veículo automóvel insusceptível de, só por si, fundar a obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, “em sede de direito probatório, a prova a efectivar pelo lesado deve ser aliviada e não deve exigir-se como reportada a factos minuciosos, pois que efectivamente, as regras da experiência e normalidade das coisas nos inculcam a ideia que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económico-social, a perda do uso de um veículo automóvel, por regra, acarreta afectações negativas ao nível dos direitos da personalidade e prejuízos para o seu dono”[28].
Não pode deixar de anotar-se que qualquer das referidas orientações é apoiada em argumentos pertinentes.
A jurisprudência do STJ, depois de algumas divergências, passou a reconhecer o direito de indemnização relativamente a situações em que “o veículo é usado habitualmente para deslocações, sem necessidade de o lesado alegar e provar que a falta do veículo sinistrado foi causa de despesas acrescidas”[29].
Tal como ali, também nós consideramos que “a privação de um veículo comporta, em regra, um prejuízo efectivo na esfera jurídica do lesado, correspondente à perda temporária dos poderes de fruição, embora a amplitude das consequências possa variar de acordo com as circunstâncias do caso.”
“Efectivamente, as regras da experiência e normalidade das coisas inculcam-nos a ideia de que, nos dias que correm e atenta a hodierna organização económica e social, a perda de uso de um veículo automóvel, por norma, acarreta afectações negativas ao nível dos direitos do seu dono e prejuízos para o mesmo”.
Todavia, em bom rigor, não é a existência de danos pela privação do uso que vem posta em causa, mas a qualidade do lesado.
Na verdade, a questão que se coloca consiste em saber se o lesado deve ser o proprietário do veículo ou titular de um direito real menor ou de outro que lhe confira a fruição, como se entendeu no acórdão recorrido, ou se basta a simples privação do uso por quem habitualmente o frui.
Entendemos que “a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira o direito a utilizá-lo) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito”[30].
Para além dos titulares dos mencionados direitos, também podem ser afectados quaisquer usuários dos veículos sinistrados, bastando que tenham poderes sobre eles e que deles façam uso, independentemente dos títulos por que lhes tenham sido entregues para sua fruição.
Assim, constituindo a privação do uso um prejuízo indemnizável “a se”, o titular do valor económico do uso do veículo não pode deixar de ser indemnizado pelo correspondente dano autónomo.
Este sentido parece ter sido adoptado pelo acórdão do STJ de 3/7/2018 - Revista n.º 36/12.9T2STC.E1.S1 - 6.ª Secção[31], em cujo sumário se pode ler:
“(…)
V - Encontrando-se o valor económico do uso do veículo na disponibilidade do autor – de que não era dono, mas usava diariamente nas suas deslocações no exercício da sua actividade profissional, no transporte do filho menor e nas deslocações com a família em períodos de lazer – a privação desse uso, decorrente da perda total, deve ser considerado um dano autónomo, não dependente da prova da necessidade de recorrer a um veículo de substituição.
(…)”.
No presente caso, o autor/recorrente não foi considerado proprietário do ciclomotor acidentado.
No entanto, tinha direito a usá-lo e frui-lo, por lhe ter sido confiado pelo seu presuntivo dono, o que fazia diariamente, não só nas deslocações de casa para o trabalho, uma vez que apesar de desempregado, frequentava uma bolsa de formação, mas também para todas as deslocações inerentes ao seu dia a dia, como sejam idas ao supermercado, médicos, farmácias, tratamentos, para além de visitas a amigos e familiares e demais momentos de lazer (cfr. n.º 15 dos factos provados).
Apesar de se encontrar registado em nome do seu filho, BB (cfr. n.º 2 dos factos provados), presumidamente o seu dono (cfr. art.º 7.º do CRP), era o autor/recorrente quem o usava diariamente para as suas deslocações nos termos referidos, o que deixou de fazer devido ao acidente, passando depois a utilizar transportes públicos (n.º 22 dos factos provados).
Daqui resulta, a nosso ver, poder afirmar-se que o valor económico do veículo estava na disponibilidade do autor, pelo que a privação desse seu uso, decorrente da paralisação, constitui um dano que deve ser considerado autónomo.
Assim, face à factualidade provada, o facto de o ciclomotor sinistrado ser usado pelo lesado no seu quotidiano, para os referidos efeitos, não pode deixar de determinar a atribuição de uma indemnização respeitante ao período em que perdurou a privação do uso daquele veículo ou ao que se vier a considerar razoável para esse efeito.
O dano sofrido pelo autor/recorrente a esse título é, pois, indemnizável.
O cálculo da correspondente indemnização há-de ser efectuado com base na equidade, por não ser possível avaliar “o valor exacto dos danos” (art.º 566.º, n.º 3, do Código Civil).
Não tendo a Relação chegado a fazer essa apreciação, face à solução dada ao caso nesta parte, e porque o STJ não pode substituir-se àquela, os autos deverão baixar ao tribunal recorrido a fim de este se pronunciar sobre essa matéria, determinando qual é o montante indemnizatório devido pela privação do uso do veículo sinistrado (art.º 665.º, n.º 2, ex vi do art.º 679.º, ambos do CPC)[32].
Procede, por conseguinte, nestes termos, a última questão.
Sumário a que alude o art.º 663.º, n.º 7, aplicável ex vi do art.º 679.º, ambos do CPC:
III. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e consequentemente:
*
Custas pelo recorrente e pelo recorrido na proporção do respectivo decaimento.
*
Lisboa, 3 de Março de 2020
Fernando Samões (Relator)
Maria João Vaz Tomé
António Magalhães
[1] Do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Cível do Porto - Juiz 4.
[2] Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães
[3] Cfr. entre outros, os acórdãos do STJ de 16/3/72, 13/3/73, 5/2/74, 29710/74, 7/1/75, 25/11/75 e de 12/6/91, publicados no BMJ, respectivamente, n.ºs 217, p. 103; 225, p. 202; 234, p. 267; 240, p. 223; 243, p. 194 e 251, p. 122 e 408, p. 521, e, ainda os mais recentes de 27/11/2012, processo n.º 3843/07.0TCLRS.L1.S1, de 15/3/2012, processo n.º 8383/07.5TBMAI.P1.S1, de 7/3/2017, processo n.º 14328/14.9T8LSB.L1.S1 e o nosso de 17/12/2018, processo n.º 75/15.8T8VRL.G2.S1 e Castro Mendes, "Recursos", 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, "Recursos em Processo Civil", 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes "Recursos em Processo Civil - Novo Regime", pág. 90.
[4] Cfr., designadamente os nossos acórdãos de 9/4/2019, processo n.º 4148/16.1T8BRG.G1.S1 e de 1/10/2019, processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[5] De 26-03-2019 - Revista n.º 25293/15.5T8LSB.L1.S1 - 1.ª Secção - Fátima Gomes (Relatora) e em que o aqui Relator interveio como 2.º Adjunto.
[6] De 06-06-2019 - Revista n.º 3416/14.1T8GMR-A.G1.S1 - 7.ª Secção António Joaquim Piçarra (Relator) *
Olindo Geraldes e Maria do Rosário Morgado, in www.dgsi/jstj.
[7] De 01-10-2019 - Revista n.º 379/15.0T8GRD.C2.S1 - 1.ª Secção -Acácio das Neves (Relator) e em que são Adjuntos o aqui Relator e a 1.ª Adjunta.
[8] De 17-10-2019 - Revista n.º 2168/08.9TVLSB.L2.S1 - 2.ª Secção - Abrantes Geraldes (Relator), Tomé Gomes e Maria da Graça Trigo.
[9] Relatado pelo Conselheiro Hélder Roque e subscrito pelos Adjuntos Roque Nogueira e Alexandre Reis.
[10] Fernando Pereira Rodrigues, in Os Meios de Prova em Processo Civil, 2015, Almedina, pág. 18.
[11] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina, pág. 532.
[12] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/9/2018, proferido no processo n.º 33/12.4TVLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt
[13] In Acórdão do S.T.J. de 8 de junho de 1993, C.J. Ano 1, T. II; pag.138 e ss.
[14] In C.J. Ano II, T. 2, pág. 86.
[15] Terá querido escrever-se Autor em vez de Réu.
[16] A esperança média de vida à nascença em Portugal foi estimada em 80,62 anos para o total da população, no triénio 2014-2016, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística.
[17] No estudo Dano corporal em acidentes de viação – cálculo da indemnização em situações de morte, incapacidade total e incapacidade parcial – perspectivas futuras, publicado na CJ, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ano IX, tomo 1º, pág. 5 e segs.
[18] Cfr., entre outros, os acórdãos de 17/5/2018, revista n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1 - 7.ª Secção, de 23/5/2019, revista n.º 2476/16.5T8BRG.G1.S2 - 7.ª Secção e de 30/5/2019, revista n.º 3710/12.6TJVNF.G1.S1 - 2.ª Secção, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. acórdão de 5/7/2007, proferido no processo n.º 07B2132, disponível em www.dgsi.pt.
[20] Cfr. acórdão de 21/1/16, tendo como Relator Lopes do Rego, proferido no processo n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1 e disponível em www.dgsi.pt.
[21] Extracto do sumário do citado acórdão de 23/5/2019.
[22] Citado acórdão de 30/5/2019.
[23] Disponível em www.dgsi.pt.
[24] Cfr. citado acórdão de 1/5/2018.
[25] Neste sentido, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 6.ª edição, pág. 336; Júlio Gomes, RDE (1986) págs. 169-239; António Abrantes Geraldes, Indemnização do Dano de Privação do Uso, 3.ª ed., págs. 33 a 41; Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Almedina, 2008, pág. 676; e os Acórdãos do STJ de 29 de Novembro de 2005, CJ-STJ-, ano XIII, tomo III, págs. 151 a 154 e, ainda, de 22/1/2013, 8/5/2013 e de 3/10/2013, nos processos n.ºs 3313/09.2TBOER.L1.S1, 3036/04.9TBVLG.P1.S1 e 1261/07.0TBOLHE.E1.S1, respectivamente, em www.dgsi.pt, entre outros.
[26] Neste sentido, ver, entre outros, os acórdãos do STJ de 9/12/2008, processo n.º 08A3401; de 30/10/2008, processo n.º 07B2131; de 5/7/2007, processo n.º 07B2138; 19/11/2010, processo n.º 31/04.1TVLSD.S1, e de 23/11/2011, processo n.º 397-B/1998.L1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.
[27] Cfr., entre outros, o acórdão do STJ de 30/10/2008, processo n.º 07B2131, disponível no mesmo sítio da internet.
[28] Cfr. acórdão do STJ de 5/6/2008, citado no acórdão do mesmo Tribunal de 30/4/2015, processo n.º 353/08.2TBVPA.P1.S1.
[29] Cfr. acórdão de 25/9/2018, processo n.º 2172/14.8TBBRG.G1.S1 - 1.ª Secção e os acórdãos de 5/7/18, 30/4/15, 10/1/12 e 16/3/11, nele mencionados, disponíveis in www.dgsi.pt.
[30] Cfr. acórdão do STJ de 8/5/2013 - Revista n.º 3036/04.9TBVLG.P1.S1. - 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
[31] Relatado pelo Conselheiro Fonseca Ramos e em que foram Adjuntos os Conselheiros Ana Paula Boularot e Pinto de Almeida, que não se mostra publicado.
[32] Neste sentido se decidiu no acórdão deste Supremo, de 10/9/2019, Revista n.º 26/13.4T2STC.E1.S1 - 1.ª Secção, relatado pela Conselheira Fátima Gomes e em que o aqui Relator interveio como 2.º Adjunto.