I. Perante a factualidade dada como provada é indubitável ter o condutor do ciclomotor desrespeitado as regras estradais respeitantes à cedência de prioridade (art. 29º, nº 1, do CE), não assistindo razão à autora quando pretende que se atribua a culpa exclusiva do acidente à condutora do veículo automóvel seguro na ré.
II. Não tendo sido provado que o veículo automóvel circulasse a velocidade superior ao limite legal, a divergência entre as instâncias centra-se em saber se foi ou não respeitado o dever de regulação da velocidade previsto no art. 24º, nº 1, do CE, assim como o dever de cuidado imposto ao condutor com prioridade no art. 29º, nº 2, do mesmo Código.
III. Entende-se ser correcta a apreciação feita pela Relação, segundo a qual “o ciclomotor não se comportou como um obstáculo fixo que era visível a ocupar 20/30 cms da hemi-faixa do veículo ligeiro e prioritário e que, justamente por isso, por ser/estar fixo e visível, não conferia à condutora do veículo o “direito” de não executar as manobras que evitassem o embate; diversamente, em face do que está dado como provado, o ciclomotor, no momento em que o veículo ligeiro passava junto ao entroncamento, transformou-se num obstáculo móvel, sendo justamente por isto que a condutora do veículo ligeiro não pode ser censurada por não haver logrado executar uma manobra que evitasse o acidente”, concluindo-se, assim, não ter existido culpa concorrente da condutora do veículo automóvel, não podendo por isso responsabilizar-se, a este título, a ré seguradora.
IV. Quanto à questão da alegada atribuição de co-responsabilidade pelo acidente à condutora do veículo automóvel com base em concurso entre risco e culpa, importa esclarecer que a tese do concurso entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado – que tem vindo a ser defendida pela doutrina civilista nacional e acolhida pela jurisprudência deste STJ em função da ponderação de argumentos de diversa ordem e da necessidade de uma interpretação conforme ao regime das directivas comunitárias em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – não respeita a situações, como a dos autos, de danos resultantes da morte de condutor de veículo (com culpa) envolvido numa colisão de veículos.
V. Com efeito, no sinistro que deu origem à presente acção, o falecido marido da autora é um lesado que actuou culposamente, mas enquanto condutor de um veículo motorizado e não na qualidade de qualquer das categorias de vítimas mais frágeis da circulação motorizada, a saber: os passageiros, os peões e os ciclistas (por contraposição, precisamente, à categoria dos condutores).
VI. Sendo certo que, teoricamente, se poderá admitir que a concorrência de títulos de imputação (imputação por factos ilícitos e culposos e imputação pelo risco) venha um dia a ser ampliada a situações de colisão de veículos quanto aos danos sofridos por condutores culpados, presentemente a interpretação actualista do regime do art. 505º do CC, em conjugação com o regime do art. 570º do mesmo Código, não abrange tal situação nem tampouco outras hipóteses em que os riscos específicos do veículo sejam, em abstracto, convocáveis em conjugação com a culpa do condutor ou condutores.
VII. A razão de ser última desta diferença de tratamento entre a situação do condutor e a situação das ditas vítimas mais frágeis (passageiros, peões e ciclistas) radica na ratio do sistema de tutela das vítimas de acidentes de viação que, no direito português, se mantém como um sistema de responsabilidade civil. Completado por um sistema de seguro obrigatório que se destina a dar cobertura a essa mesma responsabilidade, que, precisamente por isso, não abrange os danos sofridos pelos condutores (cfr. art. 14º, nº 1, e nº 2, alínea a), do DL nº 291/2007, de 21/08), o que se afigura conforme aos princípios das directivas comunitárias relativas ao seguro automóvel obrigatório (cfr. o nº 1 do art. 12º da Directiva Consolidada nº 2009/103/CE do Parlamento e do Conselho, de 16/09).
Não disponível.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
1. AA, viúva, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a quantia indemnizatória de € 92.650,00, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou que no dia 3 de Novembro de 2014 seguia, como passageira, no motociclo conduzido pelo seu marido, BB, em via pública da localidade de N..., T…; ocasião em que ocorreu o embate entre o motociclo conduzido pelo seu marido e o veículo ligeiro matrícula ...-37-..., segurado na R., embate que se ficou a dever, segundo a A., à conduta estradal da condutora de tal veículo, que conduzia desatenta e a velocidade superior a 70 km/hora (existindo um sinal a proibir a circulação superior a 50 km/hora e estando-se numa localidade), não atentando que o motociclo conduzido pelo seu marido estava parado cerca de 20/30cms para além da linha de Stop existente na via (Avenida de …) de que o mesmo provinha (para entrar na Avenida …, onde circulava o veículo seguro na R.) e não tendo a perícia para se desviar dele e evitar o embate. Embate – entre um ciclomotor e um veículo ligeiro – de que resultaram graves lesões para o condutor do ciclomotor e marido da A., lesões de que sobreveio a sua morte cerca de cinco horas após o acidente; razão pela qual a A. reclama da R. (com quem o proprietário do veículo automóvel tinha celebrado contrato de seguro válido) as seguintes compensações:
E ainda € 150,00 pela perda e destruição do ciclomotor.
A R. contestou, impugnando a existência de qualquer culpa da condutora do veículo automóvel por si segurado, sustentando, em síntese, que foi o falecido marido da A. que, ao chegar ao entroncamento onde o sinistro ocorreu e pretendendo mudar de direcção à esquerda, invadiu repentinamente a hemi-faixa de rodagem por onde circulava o veículo segurado na R., o que fez sem respeitar o sinal de Stop existente na via em que este circulava; razão pela qual, embora a condutora do veículo automóvel por si segurado circulasse a velocidade reduzida e se tivesse desviado para a esquerda e accionado os mecanismos de travagem da sua viatura, não logrou evitar o embate, que ocorreu na hemi-faixa de rodagem direita, por onde a mesma circulava.
Impugnou ainda parte do factualismo respeitante aos danos e aos montantes indemnizatórios peticionados, que reputou de excessivos; e concluiu pela sua total absolvição do pedido.
A fls. 124 foi proferida sentença, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a R. a pagar à A.:
“ (…) A quantia global de € 150,00 (cento e cinquenta euros), acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal de 4 % ao ano, vencidos e vincendos sobre tal capital desde a citação da ré (31/10/2017 – fls 28) e até efetivo e integral pagamento;
- A quantia global € 17.500,00 (dezassete mil e quinhentos euros), acrescida dos respetivos juros de mora, vencidos e vincendos, sobre tal capital, desde a data da presente decisão e até integral e efetivo pagamento, à taxa legal de 4% ao ano.”
No mais absolveu a R. do peticionado.
Inconformadas com tal decisão, interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra quer a A. quer a R., pedindo a alteração da decisão relativa à matéria de facto e a reapreciação da decisão de direito.
Por acórdão de fls. 188 foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação da A. e procedente a apelação da R. e, consequentemente, em função desta procedência, revoga-se a sentença recorrida e substitui-se a mesma pela total absolvição da R. do pedido.”
2. Vem a A. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
“1 - Com o presente recurso pretende-se que seja revogado o douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que julgou improcedente o recurso interposto pela autora/recorrente e, ainda, veio a julgar procedente o recurso interposto pela Ré Seguradora, alterando consequentemente a douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de …, julgando consequentemente improcedente totalmente a ação que contra si foi proposta.
2 - E tendo presentes todos os factos dados como provados pelas duas instâncias, pontos 6.1 a 6.51, parece-nos que, salvo melhor opinião, ocorreu erro na interpretação dos referidos factos dados como provados e, consequentemente, ocorreu erro na aplicação do Direito.
3 - De facto, tanto o Tribunal Judicial da Comarca de …, como o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra não terão apreciado correta e justamente a dinâmica do acidente, o local onde o mesmo veio a ocorrer (localidade de N…), as características dos veículos intervenientes e, ainda, o grau de exigibilidade de cuidado, para o que concerne necessariamente o tipo de veículo que se conduz e, consequentemente, o grau de comparticipação de cada um dos condutores intervenientes para a ocorrência do acidente de viação dos autos.
4 - Neste sentido não podemos ignorar que a condução de um veículo ligeiro de passageiros é mais passível de provocar danos a terceiros do que ao próprio condutor, enquanto que a condução de um veículo de duas rodas, sobretudo tratando-se, como foi o caso, de um ciclomotor com 49 cm3 de cilindrada e transportando o condutor e, ainda, uma passageira é mais adequado à verificação de danos no próprio condutor e na sua passageira (cfr. pontos 6.4, 6.5 e 6.23 dos factos dados como provados).
5 - Acresce que, o incumprimento de diligência, atenção e destreza por parte de uma condutora de um veículo ligeiro de passageiros, como era o caso da condutora do GA, é mais gravoso que o incumprimento daqueles deveres de atenção e de destreza por parte do condutor do ciclomotor.
6 - Daí que, perante a factualidade dada como provada pelas duas instâncias, designadamente, os factos dados como provados nos pontos 6.3, 6.4, 6.5, 6.6, 6.7, 6.9, 6.10, 6.11, 6.19, 6.22, 6.23, 6.25, 6.26, 6.28, 6.29, 6.31, 6.32, 6.33, 6.35, 6.36, 6.38, 6.39 e 6.40, o acidente dos autos, no nosso modesto entendimento, terá ocorrido da seguinte forma:
a) Ambos os condutores conduziam dentro de uma localidade (N…), sendo que o condutor do ciclomotor com a matrícula ...-EF-...que havia saído da sua casa de habitação, sita na Avª de …, em N…, cerca de 700 metros antes do local do acidente, seguia no sentido centro da localidade de N…/T…, pela referida Avª de … (levando consigo a sua mulher e aqui autora, cfr. pontos 6.20, 6.21 e 6.22 dos factos dados como provados), sendo certo que o referido condutor habitualmente conduzia a reduzida velocidade.
b) E ao chegar ao entroncamento formado pela Avª de … e a Avª …, parou o seu ciclomotor cerca de 20/30 cms para além da marca “M8a” previsto no regulamento de sinalização e trânsito, ou seja, uma linha de paragem de cor branca, transversal à via, e com o sinal de STOP, (cfr. pontos 6.17, 6.23, 6.24, 6.25 e 6.26 dos factos dados como provados).
c) Após o que, porque pretendia mudar de direção à esquerda (em direção a Tondela), terá iniciado essa manobra de mudança de direção, mas fazendo-o de forma muito lenta, tendo em conta as caraterísticas do seu ciclomotor que tem 49 cm3 de cilindrada que e, ainda, transportava o condutor e a sua mulher, certamente terá iniciado o referido arranque com o auxílio da perna esquerda (cfr. lesões sofridas nesta perna, ponto 6.40 dos factos dados como provados), para assim auxiliar o início do referido movimento;
d) Por sua vez, a condutora do GA, que se encontrava habilitava a conduzir veículos automóveis ligeiros de passageiros há cerca de 11 meses, conduzia pela Avª …, sentido T…/Rotunda de N…, o seu veículo automóvel matricula ...-37-..., a uma velocidade que Instâncias não conseguiram apurar, mas que no nosso entender, se mostrou excessiva e inadequada, tendo em conta a experiência da referida condutora, por referência ao que vem disposto no artigo 122º do Código da Estrada, o facto de conduzir dentro de uma localidade, as características da via com um entroncamento, as características do veículo que conduzia e que ainda não dominava, a cerca de 80/90 metros avistou no referido entroncamento o ciclomotor com duas pessoas (cfr. pontos 6.27, 6.14, 6.18, 6.19, 6,28);
e) E ao chegar ao referido entroncamento, deparando-se-lhe o ciclomotor a ocupar cerca de 20/40 cms a contar da linha branca M8a, da sua hemi-faixa de rodagem, não conseguiu travar no espaço livre e visível que dispunha à sua frente, nem sequer desviar-se totalmente para a hemi-faixa de rodagem contrária à que seguia, onde não ocorria qualquer trânsito, nem, porventura desviar-se para a Avenida de …, tendo em conta que esta no referido entroncamento tinha 10 metros de largura (cfr. pontos 6.15, 6.32 e 6.33);
f) Quando é certo que, como se referiu o condutor do ciclomotor se encontrava a iniciar a marcha, a velocidade reduzida, atentas as características do seu ciclomotor e ainda o peso que transportava de duas pessoas;
g) Entre o local apurado pelo Tribunal como sendo aquele onde se deu o embate e o eixo da via distam 1900 mm (cfr. ponto 6.36 dos factos provados), sendo que das especificações técnicas do veículo Renault clio interveniente no acidente o mesmo tem de largura 1639 mm;
h) Se o veículo ligeiro se tivesse desviado para a esquerda (como se deu provado em 6.32 dos factos provados) o embate não se teria dado, desde que o veículo ligeiro circulasse a meio do eixo da via (e não junto à berma, como referido na alínea g), referida), pois nem sequer iria invadir a faixa de rodagem contrária (ainda dispunha de espaço até ao eixo da via de 261 mm);
i) Pelo que, a condutora do GA, veio a embater, ainda na sua hemi-faixa de rodagem, com a parte da frente lado direito do seu veículo, na parte lateral esquerda do ciclomotor, o que originou a queda do condutor e da sua passageira, causando àqueles as graves lesões constantes dos pontos 6.39 e 6.40 dos factos provados, que foram causa direta e necessária da sua morte, tendo o ciclomotor ficado imobilizado na hemi-faixa direita da Avenida .., atento o sentido do GA, transversalmente a esta artéria, com o rodado traseiro sobre o centro da linha branca da sobredita marca M8A e com a roda da frente a 1.90 metros do eixo da via da Avenida … (cfr. ponto 6.36);
j) Acabando por imobilizar o seu veículo a 23,70 metros do local do embate (cfr. ponto 6.38 dos factos provados);
k) No local do acidente existe sinal vertical de proibição de condução a velocidade superior a 50 km/h (cfr. ponto 6.19 dos factos provados);
l) O local onde se deu o embate é um entroncamento (cfr. ponto 6.36 dos factos provados), sendo que nos entroncamentos o condutor está obrigado a moderar especialmente a velocidade (artigo 25º alínea h) do CE);
m) Fazia bom tempo, havia boa luminosidade e o piso encontrava-se em bom estado de conservação e seco (cfr. ponto 6.7 dos factos provados);
7. Daí que sopesando toda esta factualidade se nos afigura ter sido a conduta da condutora do GA a causadora do acidente dos autos, senão na sua totalidade, pelo menos na sua grande parte. Neste sentido,
8. Sendo esta a dinâmica do acidente que se espera como sendo aquela que se apresenta como a mais correta e justa, tendo presente os factos dados como provados em ambas as instâncias, pretende-se com o presente recurso que seja alterado o douto acórdão, quer no tocante à culpa dos intervenientes no acidente de viação, quer fixados montantes indemnizatórios que se entendem dever ser atribuídos. E assim sendo,
9. O acidente de viação dos autos deveu-se sobretudo à manifesta inexperiência de condução e desatenção da condutora do veículo ligeiro, que não abrandou nem travou e só conseguiu imobilizar o seu veículo a 23,70 metros de distância do local do embate, quando circulava a, pelo menos, 50km/h (no limite de velocidade para aquele local) e avistou a 80/90 metros um ciclomotor num entroncamento, onde deveria reduzir especialmente a velocidade e redobrar a atenção, não optando por uma condução mais defensiva, mais junto ao eixo da via e antes continuou a circular junto á berma do lado do ciclomotor, como se não o tivesse avistado e ainda como aí não existisse qualquer entroncamento.
10. Ponderando as circunstâncias do caso concreto e a factualidade dada como provada, relativas ao local do acidente, ao tipo de veículos intervenientes e risco para a circulação, a idade e experiência dos condutores e à dinâmica do acidente, ocorre, senão a culpa total, pelo menos um muito maior grau de culpa da condutora do veículo automóvel na produção da ocorrência do evento/colisão.
11. Atendendo ao disposto no art. 570.º, n.º 1, do CC e ao grau de culpa de contribuição de cada um dos condutores no acidente de viação para a produção do facto danoso e das graves e nefastas consequências que delas resultaram, entendemos, por isso, mostrar-se adequado fixar essa contribuição, em 20% para a vítima e em 80% para a condutora do veículo seguro pela Ré, para eventualidade de não ser imputada na totalidade a responsabilidade da culpa à condutora do GA., como se espera venha a ser doutamente decidido. Sem conceder,
12. A indemnização deverá corresponder à diferença entre a situação real em que o facto lesivo deixou o lesado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não fosse a lesão ou lesões sofridas em consequência do acidente de viação dos autos.
13. A recorrente não se consegue conformar com a ausência de atribuição de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, como decidido em 2ª Instância.
14. Tendo em consideração os factos dados como provados, entende-se que os valores de indemnização a atribuir deverão ser aqueles que vêm peticionados, por serem justos, adequados e equilibrados, ou caso assim se não venha a entender então que os mesmos venham a ser reduzidos na proporção e tendo em conta o grau de culpa com que cada um dos indicados condutores contribuiu para a ocorrência do acidente de viação dos autos.
15. Para o caso de assim não se vir a entender, o que só por mera hipótese se admite, então atenta à mais recente jurisprudência proferida por este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, que tem feito uma interpretação actualista ou progressista do artigo 505º do Cód. Civil e a sua conjugação com o artigo 570º, nº 1 do Cód. Civil, pelas mais elementares razões de Justiça e por constituir a solução que melhor se coaduna com o nosso ordenamento juscivilistico (cfr. Prof. Dr. Jorge Sinde Monteiro, in Direito dos Seguros, pág. 127), parece-nos que se deverá, mais uma vez, admitir-se o concurso entre culpa e o risco, tendo presente a fragilidade de certos participantes no tráfego e à defesa e proteção dos lesados mais frágeis e, ainda ao direito dos seguros.
16. A considerar-se que a atuação do condutor do ciclomotor contribuiu para a ocorrência do acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo automóvel GA, na ocasião conduzido por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de 11 meses (atento o disposto no artigo 122º do Cód. da Estrada), está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.
17. Ao decidir nos termos constantes o douto Acórdão em recurso o Tribunal a quo violou ainda o disposto nos artºs. 13º nº 1, 28º nº 1, 24º nº 1, 25º h) todos do Código da Estrada; 483º, 494°; 496°; 503º, 562°; 566º e 570º, todos do Código Civil e 615º, alíneas c) e d) do Código de Processo Civil.”
Termina pedindo a revogação da decisão do acórdão recorrido e a sua substituição por decisão que julgue integralmente procedente a acção e condene a R. nos pedidos formulados pela A.
A Recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.
Cumpre apreciar e decidir.
3. Vem provado o seguinte (mantém-se a redacção da Relação):
A) No dia 3 de novembro de 2014, faleceu na freguesia e concelho de …, BB, no estado de casado com a aqui autora, AA, segundo o regime da comunhão geral de bens e em primeiras núpcias de ambos (artigo 1º da petição inicial);
B) O referido BB faleceu sem ascendentes ou descendentes vivos e não fez testamento nem qualquer outra disposição de última vontade, tendo-lhe sucedido como sua única e universal herdeira, a sua referida mulher, AA, aqui autora (artigo 2º da petição inicial);
C) No dia 3 de novembro de 2014, cerca das 9h40, na Avenida …, no entroncamento existente entre a referida Avenida … e a Avenida …, na localidade de N…, União de Freguesias de … e …, concelho de …, ocorreu um embate (artigo 6º da petição inicial);
D) Foram intervenientes nesse embate o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ...-37-..., propriedade de CC e, na altura, conduzido por DD, e o ciclomotor, matrícula ...-EF-..., propriedade de BB, e por si então conduzido (artigos 7º e 9º da petição inicial);
E) Como passageira do referido motociclo, seguindo no mesmo assento do condutor e imediatamente atrás deste, seguia a aqui autora (artigo 8º da petição inicial);
F) Na altura em que ocorreu o acidente, fazia bom tempo, havia boa luminosidade e o piso encontrava-se em bom estado de conservação e seco (artigo 10º da petição inicial);
G) O local onde ocorreu o acidente de viação é caracterizado por ser um entroncamento em curva que liga a Avenida … à Avenida …, na localidade de …, atento o sentido …/Rotunda de … (artigo 11º da petição inicial);
H) Na Avenida … e configurando o entroncamento supra referido, conflui, obliquamente, a Avenida de …, do seu lado direito, atento o sentido de marcha do GA (T…/Rotunda de N…) (artigo 6º da contestação);
I) A faixa de rodagem na Avenida … onde ocorreu o embate tem a largura aproximada de 5,30 metros (artigo 12º da petição inicial);
J) À data dos factos, a referida Avenida … possuía dois sentidos de marcha – um destinado ao sentido T… – Rotunda de N… e outro ao sentido inverso – estando as respetivas hemifaixas de rodagem separadas por uma linha longitudinal descontínua pintada sobre o eixo da via (artigo 5º da contestação);
K) Atento o sentido de marcha do GA, a referida Avenida … desenvolvia-se em recta com mais de 100 metros de extensão, sendo que, no local onde se deu o sinistro, a indicada artéria descrevia uma curva para o lado esquerdo (artigo 7º da contestação, artigo 20º da petição inicial);
L) O lado direito da mesma avenida – atendo o sentido do GA – era ladeado por uma berma, também em asfalto, com cerca de 1 metro de largura (artigo 8º da contestação);
M) A Avenida de … configura-se como uma recta cuja extensão não foi possível apurar e cerca de 5 metros de largura, a qual possuía dois sentidos de marcha – um destinado ao sentido N… – Avenida … e outro ao sentido inverso –, estando as respetivas hemifaixas de rodagem separadas por uma linha longitudinal contínua pintada sobre o eixo da via (artigo 9º da contestação);
N) Atento o sentido de marcha N… – Avenida …, a dita Avenida de … entroncava na Avenida … (artigo 10º da contestação);
O) No referido entroncamento, a Avenida de … abria em “leque” e passava a ter uma largura de cerca de dez metros (artigo 11º da contestação);
P) A cerca de 10 metros de distância do mencionado entroncamento, a Avenida de … possuía um sinal vertical de STOP (sinal B2), colocado na respectiva berma direita, atento o sentido N… – Avenida … (artigo 12º da contestação);
Q) No pavimento da Avenida de …, no exacto local em que entroncava a Avenida …, encontrava-se pintada a marca “M8a” prevista no regulamento de sinalização e trânsito, ou seja, uma linha de paragem de cor branca, transversal à via, e com o símbolo STOP (artigo 13º da contestação);
R) Quem circulasse na Avenida de …, em direção à Avenida …, e se imobilizasse junto à sobredita linha de paragem branca e ao mencionado símbolo STOP pintado no pavimento, dispunha de uma visibilidade de cerca de 80/90 metros para o trânsito que circulava na Avenida General Humberto Delgado, no sentido de marcha T… – Rotunda de N… (artigos 14º, 15º, 16º e 17º da contestação);
S) Na Avenida …, no sentido T…/Rotunda de N… existe um sinal vertical de proibição de condução a velocidade superior a 50K/h (artigo 23º da petição inicial);
T) O condutor do ciclomotor com a matrícula ...-EF-..., nas circunstâncias de tempo, modo e lugar, acima referidas, conduzia o seu veículo no sentido centro da localidade de N…/T…, pela Avenida de …, a velocidade que em concreto não foi possível apurar (artigo 13º da petição inicial);
U) O referido BB e a aqui autora haviam saído de sua casa de habitação, sita na referida Avenida de …, nº …, lugar de …, União de Freguesias de … e …, concelho de …, que dista do local do acidente cerca de 700 metros em direcção a T… (artigo 14º da petição inicial);
V) Ele tripulando o referido ciclomotor e a autora como passageira do mesmo, sendo que o referido condutor habitualmente conduzia a reduzida velocidade (artigo 15º da petição inicial);
X) O ciclomotor em questão, da marca Yamaha, tem de cilindrada 49 cm3 (artigo 16º da petição inicial);
Y) O falecido BB tripulava o indicado ciclomotor na Avenida de … e, chegando ao entroncamento formado entre esta artéria e a Avenida …, pretendia efectuar uma mudança de direcção à esquerda para seguir em direcção a T… (artigos 19º, 27º da contestação);
Z) Ao aproximar-se do referido entroncamento da Avenida de … com a Avenida …, e tendo do seu lado direito, atento aquele sentido, um sinal de STOP, o condutor do ciclomotor reduziu a velocidade de que vinha animado, para poder parar junto da linha de paragem (traço contínuo colocado logo a seguir a inscrição STOP no pavimento) existente na hemi-faixa de rodagem por onde conduzia (artigos 18º, 20º da contestação);
AA) O condutor do ciclomotor com a matrícula ...-EF-...deslizou o veículo por uma distância que em concreto não foi possível apurar, mas pelo menos de cerca de 20/30 cms, para além daquela referida linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP” (artigo 22º da petição inicial);
BB) Circulando pela Avenida …, sentido T…/Rotunda de N…, aproximou-se do referido entroncamento a condutora do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-37-..., a uma velocidade que em concreto não foi possível apurar (artigo 23º da petição inicial);
CC) Quando o GA se encontrava próximo do entroncamento, embora a uma distância que em concreto não foi possível apurar, o condutor do ciclomotor, que havia imobilizado o veículo junto da linha de paragem embora em local preciso que não foi possível apurar, mas pelo menos cerca de 20/30 cms para além da linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP”, iniciou a pretendida manobra de mudança de direcção à esquerda, circulando na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA (artigos 19º, 22º, 28º da petição inicial, 21º, 23º e 24º da contestação);
[redacção da Relação que aqui introduziu parte do facto AA), correspondente ao ponto 6.26 da sentença]
DD) O condutor do ciclomotor iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda sem se certificar se circulava algum veículo na via onde pretendia entrar, e se dessa manobra resultava perigo ou embaraço para si e para o restante tráfego, atravessando a hemi-faixa de rodagem em que circulava o veículo GA (artigos 28º, 29º, 31º da contestação);
EE) Junto à Marca M8a, o condutor do ciclomotor avistava o trânsito que circulava na Avenida …, no sentido T…/rotunda de N… a uma distância de cerca de 80/90 metros (artigo 34º da contestação);
FF) A condutora do GA tinha habilitação para conduzir veículos ligeiros de passageiros desde 18 de outubro de 2013, possuindo carta de condução com data de validade de 2/10/2015 (artigo 26º da petição inicial);
GG) A condutora do GA, perante a circulação do ciclomotor na Avenida …, na hemi-faixa de rodagem da direita atento o seu sentido de marcha, no momento em que passava junto ao entroncamento supra referido, não imobilizou o seu veículo e não travou, mas desviou-se para a esquerda (artigos 30º, 34º da petição inicial e 18º, 25º, 35º, da contestação);
HH) Naquele momento, na hemi-faixa de rodagem da esquerda atento o sentido de marcha da condutora do veículo ligeiro não havia trânsito (artigo 29º da petição inicial);
II) Não obstante, o veículo de matrícula ...-37-... embateu com a parte da frente, lado direito do veículo na parte lateral esquerdo do ciclomotor com a matrícula ...-EF-..., o que originou a queda do ciclomotor, do seu condutor e da passageira, aqui autora (artigos 32º e 33º da petição inicial, artigo 36º da contestação);
JJ) Tal embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, considerando o sentido de marcha do GA (artigo 37º da contestação);
KK) Após o embate, o ciclomotor ficou imobilizado na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA, transversalmente a esta artéria, com o rodado traseiro sobre o centro da linha branca da sobredita marca M8a (cuja extensão se limitava à hemifaixa de rodagem direita, atendo o sentido do EF) pintada no pavimento da Avenida de …, e o rodado dianteiro a cerca de 1,90 metros do eixo da via da Avenida … (artigos 39º, 40º e 41º da contestação);
LL) No local onde ficou imobilizado, o ciclomotor deixou uma mancha de óleo/gasolina, a qual ficou visível no pavimento durante um período em concreto não foi possível apurar, mas superior a 15 dias (artigo 42º da contestação);
MM) - Por seu turno, o GA acabou por se imobilizar na hemifaixa de rodagem direita da Avenida …, atento o seu sentido de marcha, a cerca de 23,70 metros do local do embate (artigo 34º da petição inicial, e artigo 43º da contestação);
NN) – O sinistro causou lesões torácicas e do membro inferior esquerdo ao marido da autora e condutor do ciclomotor com a matrícula ...-EF-..., as quais foram causa direta, adequada e necessária da sua morte, ocorrida ainda nesse dia 3/11/2014, pelas 14:45 horas (artigo 37º da petição inicial);
OO) Efetivamente, a vítima sofreu: ao nível do esterno: Fratura pelo 3º espaço intercostal rodeado de infiltração sanguínea; ao nível da clavícula, costelas e cartilagens direitas: fratura pelo arco anterior da 2ª, 3ª,4ª, 5ª, 6ª e 7ª costelas, sendo em dois pontos, um deles justa-esternal na 4ª, 5ª e 6ª costelas, rodeadas de infiltração sanguínea a nível da 2ª, 4ª, 5ª, 6ª e 7ª; ao nível da clavícula, costelas e cartilagens esquerdas: Fratura em dois pontos, pelo arco anterior de todas as costelas, sendo um deles justa-esternal na 3ª e 4ª costelas, e com rotura da pleura na 6ª, 7ª e 8ª costelas. Fratura pelo arco médio da 2ª 3ª, 5ª, 6ª, 7ª, 8ª, 9ª, com rotura da pleura da 2ª, 3ª, 5ª, 6ª e 9ª costelas. Fratura pelo arco posterior da 1ª, 3ª, 4ª, 5ª, 6ª, 7ª, 10ª costelas rodeada de infiltração sanguínea; Ao nível do pericárdio e cavidade pericárdica: Infiltração sanguínea da metade anterior esquerda (interna e externa) do saco pericárdico. Cavidade pericárdica continha cerca de 30 centímetros cúbicos de sanguinholento; Ao nível dos membros inferiores: Infiltração sanguínea peri fémur esquerdo com formação de volumosos hematoma; fratura oblíqua da parte proximal da diáfise do fémur esquerdo com sobreposição dos topos ósseos (artigo 38º da petição inicial);
PP) A vítima tinha à data do acidente 81 anos de idade, sendo ainda uma pessoa saudável, fazendo-se transportar diariamente num ciclomotor, cuidando do quintal da sua casa e ainda de uns pequenos terrenos de que era proprietário, e onde produzia e retirava batatas, alfaces, couves, cenouras, ervilhas, favas, feijão para o sustento do seu agregado familiar (artigos 40º, 41º e 42º da petição inicial);
QQ) BB era uma pessoa muito estimada e considerada no meio em que vivia, sendo um marido extremoso e carinhoso para com a autora, sendo o seu amparo e refúgio no dia-a-dia, ambos constituindo um casal feliz (artigos 43º, 44º, 53º da petição inicial);
RR) Formando a vítima e a autora um casal inseparável, muito unido e amigos entre si, o que era constatado por todos os que os conheciam e que com eles se relacionavam, vivendo na mesma habitação e em economia comum, partilhando e dividindo as tarefas do dia-a-dia, vivendo em conjunto os problemas do dia-a-dia e encontrando em conjunto as suas soluções, assim vivendo há mais de 53 anos casados um com o outro (artigos 45º e 46º da petição inicial);
SS) Desenvolvendo toda uma atividade agrícola e de criação de animais, que lhe permitiam prover ao sustento e enriquecimento do mesmo agregado familiar (artigo 47º da petição inicial);
TT) Em virtude do óbito do marido da autora, esta viu alterado o seu projeto familiar, passando a estar e a viver sozinha e sem o apoio habitual e imprescindível do seu falecido marido, não tendo com quem conversar e partilhar os seus problemas e as suas angústias do dia-a-dia e a própria vida, num momento em que, dada a sua idade à data do acidente (78 anos), com as doenças à mesma inerentes, mais dependente estava da sua ajuda e companhia, para ir às compras, ao médico, e tratar de assuntos relacionados com os rendimentos e o património (artigos 48º, 49º, 52º da petição inicial);
UU) A autora passou a ser uma pessoa triste e sem vontade de viver, ao sentir-se sozinha e sem a companhia da pessoa que ao longo de mais de 50 anos tudo partilhou, chorando frequentemente e lamentando a sua sorte (artigos 50º e 51º da petição inicial);
VV) A autora passou a ter que socorrer-se da ajuda de terceiras pessoas amigas e conterrâneas para lhe tratarem dos assuntos que o seu falecido marido tratava e que ela nunca tratou nem sabe como o fazer, situação de dependência essa que lhe agrava mais o seu sofrimento e o seu viver (artigos 54º e 55º da petição inicial);
XX) Entre o momento do acidente e a hora do falecimento do marido da autora (entre as 9:40 horas e as 14:45 horas), aquele esteve durante algum tempo consciente e em enorme sofrimento, com dores físicas intensas, resultantes das várias costelas fraturadas (fratura do arco anterior da 2ª, 3ª, 4ª, 5ª 6ª e 7ª costelas, sendo em dois pontos, um deles justaesternal na 4ª, 5ª e 6ª costelas, rodeadas de infiltração sanguínea a nível da 2ª, 4ª, 5ª, 6ª e 7ª), hemorragia interna e outras fraturas ao ponto de lhe ter sido administrada morfina já no Hospital, para combater as dores que o mesmo estava a sentir (artigo 72º da petição inicial);
YY) A autora, também ela vítima do acidente, apercebeu-se da gravidade dos ferimentos do seu marido, ficando muito perturbada e afetada com o acidente passando a viver permanentemente um luto, sofrendo um grande desgosto, que se foi prolongando no tempo, por ter perdido o seu marido de forma trágica, recordando esse acidente traumático todos os dias até hoje (artigos 74º e 75º da petição inicial);
ZZ) O ciclomotor de matrícula ...-EF-...ficou danificado com o acidente, importando a sua reparação montante que em concreto não foi possível apurar, mas não inferior a € 800,00 (artigos 77º e 78º da petição inicial);
AAA) O proprietário do veículo com a matrícula ...-37-..., CC, que na ocasião do sinistro era conduzido pela sua filha DD, mediante contrato de seguro celebrado com a ré titulado pela apólice nº 14…38, para ela transmitiu a responsabilidade civil de danos resultante da circulação do referido automóvel (artigo 80º da petição inicial).
4. Tendo em conta o disposto no nº 4 do art. 635º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões. Assim, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:
5. Para a apreciação da questão da atribuição de culpa - total ou parcial - pelo acidente dos autos, à condutora do veículo GA, seguro na R., relevam essencialmente os seguintes factos provados:
P) A cerca de 10 metros de distância do mencionado entroncamento, a Avenida de … possuía um sinal vertical de STOP (sinal B2), colocado na respectiva berma direita, atento o sentido N… – Avenida … (artigo 12º da contestação);
Q) No pavimento da Avenida de …, no exacto local em que entroncava a Avenida …, encontrava-se pintada a marca “M8a” prevista no regulamento de sinalização e trânsito, ou seja, uma linha de paragem de cor branca, transversal à via, e com o símbolo STOP (artigo 13º da contestação);
Y) O falecido BB tripulava o indicado ciclomotor na Avenida de … e, chegando ao entroncamento formado entre esta artéria e a Avenida …, pretendia efectuar uma mudança de direcção à esquerda para seguir em direcção a Tondela (artigos 19º, 27º da contestação);
Z) Ao aproximar-se do referido entroncamento da Avenida de … com a Avenida …, e tendo do seu lado direito, atento aquele sentido, um sinal de STOP, o condutor do ciclomotor reduziu a velocidade de que vinha animado, para poder parar junto da linha de paragem (traço contínuo colocado logo a seguir a inscrição STOP no pavimento) existente na hemi-faixa de rodagem por onde conduzia (artigos 18º, 20º da contestação);
AA) O condutor do ciclomotor com a matrícula ...-EF-...deslizou o veículo por uma distância que em concreto não foi possível apurar, mas pelo menos de cerca de 20/30 cms, para além daquela referida linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP” (artigo 22º da petição inicial);
BB) Circulando pela Avenida …, sentido T…/Rotunda de N…, aproximou-se do referido entroncamento a condutora do veículo ligeiro de passageiros com a matrícula ...-37-..., a uma velocidade que em concreto não foi possível apurar (artigo 23º da petição inicial);
CC) Quando o GA se encontrava próximo do entroncamento, embora a uma distância que em concreto não foi possível apurar, o condutor do ciclomotor, que havia imobilizado o veículo junto da linha de paragem embora em local preciso que não foi possível apurar, mas pelo menos cerca de 20/30 cms para além da linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP”, iniciou a pretendida manobra de mudança de direcção à esquerda, circulando na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA (artigos 19º, 22º, 28º da petição inicial, 21º, 23º e 24º da contestação);
DD) O condutor do ciclomotor iniciou a manobra de mudança de direção à esquerda sem se certificar se circulava algum veículo na via onde pretendia entrar, e se dessa manobra resultava perigo ou embaraço para si e para o restante tráfego, atravessando a hemi-faixa de rodagem em que circulava o veículo GA (artigos 28º, 29º, 31º da contestação);
EE) Junto à Marca M8a, o condutor do ciclomotor avistava o trânsito que circulava na Avenida …, no sentido T…/rotunda de N… a uma distância de cerca de 80/90 metros (artigo 34º da contestação);
FF) A condutora do GA tinha habilitação para conduzir veículos ligeiros de passageiros desde 18 de outubro de 2013, possuindo carta de condução com data de validade de 2/10/2015 (artigo 26º da petição inicial);
GG) A condutora do GA, perante a circulação do ciclomotor na Avenida …, na hemi-faixa de rodagem da direita atento o seu sentido de marcha, no momento em que passava junto ao entroncamento supra referido, não imobilizou o seu veículo e não travou, mas desviou-se para a esquerda (artigos 30º, 34º da petição inicial e 18º, 25º, 35º, da contestação);
HH) Naquele momento, na hemi-faixa de rodagem da esquerda atento o sentido de marcha da condutora do veículo ligeiro não havia trânsito (artigo 29º da petição inicial);
II) Não obstante, o veículo de matrícula ...-37-... embateu com a parte da frente, lado direito do veículo na parte lateral esquerdo do ciclomotor com a matrícula ...-EF-..., o que originou a queda do ciclomotor, do seu condutor e da passageira, aqui autora (artigos 32º e 33º da petição inicial, artigo 36º da contestação);
JJ) Tal embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, considerando o sentido de marcha do GA (artigo 37º da contestação);
KK) Após o embate, o ciclomotor ficou imobilizado na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA, transversalmente a esta artéria, com o rodado traseiro sobre o centro da linha branca da sobredita marca M8a (cuja extensão se limitava à hemifaixa de rodagem direita, atendo o sentido do EF) pintada no pavimento da Avenida de …, e o rodado dianteiro a cerca de 1,90 metros do eixo da via da Avenida … (artigos 39º, 40º e 41º da contestação);
LL) No local onde ficou imobilizado, o ciclomotor deixou uma mancha de óleo/gasolina, a qual ficou visível no pavimento durante um período em concreto não foi possível apurar, mas superior a 15 dias (artigo 42º da contestação);
MM) - Por seu turno, o GA acabou por se imobilizar na hemifaixa de rodagem direita da Avenida …, atento o seu sentido de marcha, a cerca de 23,70 metros do local do embate (artigo 34º da petição inicial, e artigo 43º da contestação)
A partir da mesma factualidade dada como provada – uma vez que o inciso introduzido pela Relação no ponto CC) [ponto 6.28 da sentença] constava já do ponto AA) [ponto 6.26 da sentença], não constituindo assim uma alteração da matéria de facto – fizeram as instâncias juízos divergentes quanto à responsabilidade pelo acidente. A 1ª instância considerou que o mesmo se deveu à concorrência entre a culpa do condutor do ciclomotor, o falecido marido da A., e a culpa da condutora do veículo automóvel seguro na R., estabelecendo a proporção de 80% para o primeiro e de 20% para a segunda. Diversamente, a Relação atribuiu ao condutor do ciclomotor a culpa exclusiva pelo acidente.
Quid iuris?
Perante a factualidade dada como provada (e em especial, a existência, na via pela qual seguia o ciclomotor, de um “sinal de Stop”, assim como de um “traço contínuo colocado logo a seguir a inscrição STOP no pavimento”) é indubitável ter o condutor do ciclomotor desrespeitado as regras estradais respeitantes à cedência de prioridade (art. 29º, nº 1, do Código da Estrada), não assistindo razão à Recorrente quando pretende que se atribua a culpa exclusiva do acidente à condutora do veículo automóvel GA.
O ponto em que as decisões das instâncias não coincidem respeita à existência ou não de uma conduta culposa concorrente da condutora do referido veículo automóvel.
A 1ª instância pronunciou-se em sentido afirmativo pelas seguintes razões:
“Perante a factualidade apurada não é possível afirmar que a condutora do GA seguisse a velocidade instantânea superior à legalmente estabelecida para aquele local (50 km/h - cfr. artigo 27º CE). Porém, seguia em excesso de velocidade relativa, circulando a uma velocidade que evidenciou ser superior à adequada, porquanto não logrou imobilizar o seu veículo perante a interposição de um obstáculo.
De facto, haverá que ter presentes as caraterísticas da via, designadamente o facto de se tratar de uma reta com visibilidade à distância de cerca de 89/90 metros, em bom estado de conservação, encontrando-se o tempo seco, sendo de concluir que a velocidade a que seguia a condutora do GA não lhe permitiu o evitar o obstáculo existente na via, consubstanciado no acesso à mesma pelo condutor do ciclomotor, que necessariamente, em face dos factos apurados e da configuração da via, foi por si avistado quando se encontrava parado.
Ora, o que a norma contida no artigo 24º CE impõe é que: “(…) o condutor se assegure de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, fazer parar o veículo” pois que “nenhum condutor, em circunstância nenhuma, pode percorrer a estrada sem avistar o que se desenrola à sua frente” - Ac RC 21/12/2004
Acresce que a condutora também não logrou travar a sua viatura, e embora estivesse sem trânsito a hemi-faixa de rodagem da esquerda atento o seu sentido de circulação, não logrou para aí manobrar a viatura, em manobra de recurso, para evitar o embate. Assim, embora se tenha desviado, tal desvio revelou-se insuficiente para evitar o embate.”
O acórdão recorrido interpretou os factos provados em termos diversos, com a seguinte fundamentação:
“O acidente ficou exclusiva e unicamente a dever-se ao grosseiro desrespeito da regra da prioridade por parte do condutor do ciclomotor.
Em termos de velocidade instantânea, não estando provado que o GA circulasse a mais de 50 km/hora (no local era proibida a condução a velocidade superior a 50K/h), nenhuma censura pode ser feita à condutora do GA.
O que temos, nu e cru, é que o ciclomotor tinha sinais de Stop e que, não obstante, só imobilizou a sua marcha 20/30 cms após o sinal Stop colocado no pavimento e, “pior ainda”, colocou-se em marcha a atravessar a via no momento em que o veículo com prioridade ia passar à sua frente, veículo que se tentou desviar, mas não evitou a colisão no ciclomotor; pelo que, perante tais factos, apenas podemos/devemos censurar e atribuir culpa pela eclosão do acidente ao desrespeito da regra da prioridade por parte do condutor do ciclomotor.
Pressupõe a prioridade – e o direito de prioridade – que duas viaturas cheguem, em tempos muito próximos, a um cruzamento ou bifurcação de estradas e que os respectivos condutores os pretendam atravessar em trajectórias convergentes ou percorrendo zonas de intercepção; tendo-se, na impossibilidade das viaturas poderem passar ao mesmo tempo, estabelecido regras que conferem o direito de passar primeiro a um deles.
Primazia/prioridade esta que não é absoluta, se com isso quisermos dizer que todo e qualquer acidente será sempre e em qualquer circunstância da responsabilidade do condutor do veículo não prioritário.
Mas que, evidentemente, anda lá perto.
Sem prejuízo de todos os veículos estarem obrigados a aproximar-se do cruzamento/entroncamento ou bifurcação de estradas com prudência, tal não pode significar e representar a “irrelevância” da regra da prioridade e que estejam na mesma e idêntica situação estradal um veículo prioritário e um veículo não prioritário.
Desde logo – e segundo o próprio legislador (cfr. art. 29.º/1 e 2 do C. da Estrada) – o não prioritário não deve tentar atravessar sempre que isso possa obrigar o prioritário a travar, a abrandar ou a mudar a direcção da marcha regular de que vem animado.
Se fosse doutro modo – seria caso para perguntar – onde é que estava a prioridade? Se fosse doutro modo, haveria sempre forma de pôr em crise a prioridade e de lançar culpa (ou parte dela) sobre o prioritário.
Todos os condutores devem aproximar-se de cruzamentos ou bifurcações de estradas com prudência; o excesso de velocidade do condutor prioritário pode acabar por trazer-lhe, é verdade, uma parcela de culpa/responsabilidade, porém, a circunstância de ter havido embate ou de ter sido necessário o prioritário mudar a direcção para evitar o embate é por si só um sinal seguro do condutor do veículo não prioritário haver ignorado o direito de prioridade, porquanto – se tal aconteceu, se houve embate ou se o prioritário teve de mudar de direcção para evitá-lo – o não prioritário já não dispunha de tempo bastante para atravessar (ou iniciar o atravessamento) o cruzamento ou a zona de bifurcação das estradas sem perigo.
Ora, é justamente isto – e apenas isto – que é possível retirar, como seguro, dos factos: o ciclomotor iniciou o atravessamento no momento em que o veículo ligeiro passava no local da via que o ciclomotor queria atravessar, isto é, o ciclomotor, ao estar em tal posição, estava a desrespeitar a regra da prioridade que lhe era imposta pelo sinal de Stop.
Perante o contexto de tal desrespeito, o que aconteceu a seguir, ou seja, não ter o veículo ligeiro realizado uma “manobra de recurso/salvamento” bem sucedida, não logrando evitar o embate, não faz ou permite que se diga que seguia em “excesso de velocidade relativa”.
Quando um automobilista prioritário vê ocupada a sua meia faixa de rodagem por um veículo não prioritário (que pretende atravessar a sua meia faixa e mudar de direcção à esquerda) e tenta mas não consegue evitar o embate (no não prioritário que se lhe atravessa), não passa, sem mais, ele próprio a concorrer com a sua culpa para o acidente, com o argumento de que se embateu é porque não regulava a sua velocidade de modo a “fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente” (art. 24.º/1 do C. da Estrada).
Concorda-se que o direito de prioridade só existe quando o prioritário transita dentro das normas regulamentares e com as indispensáveis precauções, porém, entre as “indispensáveis precauções” não está a necessidade/dever do prioritário prever manobras inesperadas, temerárias e “anti-regulamentares” por parte dos outros condutores (designadamente, dos não prioritários).
(…)
Não sendo extraível dos factos que o prioritário transitasse fora das normas regulamentares e/ou sem as indispensáveis precauções exigíveis num plano de normalidade/previsibilidade, não lhe pode ser regateado o seu direito de prioridade; e tendo este sido violado, dando lugar a um acidente, a responsabilidade cabe totalmente ao condutor não prioritário.
E, naturalmente, para haver uma tal violação do direito de prioridade não é necessário que o não prioritário ocupe a totalidade da largura da faixa de rodagem do veículo prioritário; pode a mera ocupação de cerca de um metro (numa via com 2,65 metros, como é/foi o caso) ser apropriada a não permitir uma manobra de recurso/salvamento bem sucedida e desencadear a colisão.
É que, dir-se-á para terminar, o ciclomotor não se comportou como um obstáculo fixo que era visível a ocupar 20/30 cms da hemi-faixa do veículo ligeiro e prioritário e que, justamente por isso, por ser/estar fixo e visível, não conferia à condutora do veículo o “direito” de não executar as manobras que evitassem o embate; diversamente, em face do que está dado como provado, o ciclomotor, no momento em que o veículo ligeiro passava junto ao entroncamento, transformou-se num obstáculo móvel, sendo justamente por isto que a condutora do veículo ligeiro não pode ser censurada por não haver logrado executar uma manobra que evitasse o acidente.”
Não tendo sido provado que o veículo automóvel GA circulasse a velocidade superior ao limite legal, a divergência entre as instâncias centra-se em saber se foi ou não respeitado o dever de regulação da velocidade previsto no art. 24º, nº 1, do Código da Estrada (“O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.”), assim como o dever de cuidado imposto no art. 29º, nº 2, do mesmo Código, ao condutor com prioridade (“O condutor com prioridade de passagem deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito”).
A nosso ver a resposta a esta questão não pode ser dada, como pretende a Recorrente, com base num juízo presuntivo de falta de diligência da condutora do veículo por esta ter licença de condução há pouco mais de um ano (cfr. facto provado FF)), mas sim a partir da consideração do facto provado CC), com o seguinte teor:
“Quando o GA se encontrava próximo do entroncamento, embora a uma distância que em concreto não foi possível apurar, o condutor do ciclomotor, que havia imobilizado o veículo junto da linha de paragem embora em local preciso que não foi possível apurar, mas pelo menos cerca de 20/30 cms para além da linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP”, iniciou a pretendida manobra de mudança de direcção à esquerda, circulando na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA”.
Temos assim que a manobra de mudança de direcção do condutor do ciclomotor se deu em dois momentos: num primeiro momento avançou “cerca de 20/30 cms para além da linha contínua logo a seguir à inscrição no pavimento de “STOP”, imobilizando-se nesse local; num segundo momento – e “Quando o [veículo] GA se encontrava próximo do entroncamento, embora a uma distância que em concreto não foi possível apurar” – o condutor do ciclomotor “iniciou a pretendida manobra de mudança de direcção à esquerda, circulando na hemi-faixa de rodagem direita da Avenida …, atento o sentido do GA”.
Deste modo, entende-se ser correcta a apreciação feita pela Relação, segundo a qual “o ciclomotor não se comportou como um obstáculo fixo que era visível a ocupar 20/30 cms da hemi-faixa do veículo ligeiro e prioritário e que, justamente por isso, por ser/estar fixo e visível, não conferia à condutora do veículo o “direito” de não executar as manobras que evitassem o embate; diversamente, em face do que está dado como provado, o ciclomotor, no momento em que o veículo ligeiro passava junto ao entroncamento, transformou-se num obstáculo móvel, sendo justamente por isto que a condutora do veículo ligeiro não pode ser censurada por não haver logrado executar uma manobra que evitasse o acidente.”
Nestas condições, e não tendo sido feita prova da velocidade a que a condutora do veículo automóvel GA circulava (facto provado BB)) nem tampouco da distância a que tal veículo se encontrava em relação ao entroncamento quando o condutor do ciclomotor (re)iniciou a marcha (facto provado CC)), não é censurável o juízo da Relação segundo o qual não era exigível àquela condutora que evitasse a colisão com o ciclomotor.
Deste modo, conclui-se, como entendeu o acórdão recorrido, não ter existido culpa concorrente da condutora do veículo automóvel, não podendo por isso responsabilizar-se, a este título, a R. seguradora na qual o mesmo se encontrava segurado.
6. Subsidiariamente, suscita a Recorrente a questão da alegada atribuição de co-responsabilidade pelo acidente à condutora do veículo GA com base em concurso entre risco e culpa, invocando a este respeito a necessidade de “uma interpretação actualista ou progressista do artigo 505º do Cód. Civil e [d]a sua conjugação com o artigo 570º, nº 1 do Cód. Civil”.
Impõe-se uma clarificação.
A tese do concurso entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado – que tem vindo a ser defendida pela doutrina civilista nacional e acolhida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, em função da ponderação de argumentos de diversa ordem e da necessidade de uma interpretação conforme ao regime das directivas comunitárias em matéria de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (ver a síntese da relatora do presente acórdão em “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade civil por acidente de viação”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo da Gama Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 467 e segs.) – não respeita a situações, como a dos autos, de danos resultantes da morte de condutor de veículo (com culpa) envolvido numa colisão de veículos.
Consideração que, por sua vez, implica mais um esclarecimento no sentido de que, embora na presente acção a A. peticione uma indemnização por diferentes categorias de danos não patrimoniais (dano de perda da vida do marido; sofrimentos deste que antecederam a morte; danos não patrimoniais próprios da A.), afigura-se ser aqui aplicável a orientação subjacente ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 12/2014 (publicado no Diário da República, Iª Série, de 08/07/2014) que – ainda que respeitando a uma situação não inteiramente coincidente com a dos autos, uma vez que aí a acção fora intentada contra a seguradora do veículo conduzido pelo falecido familiar dos autores – considerou que aquelas categorias de danos não patrimoniais não são danos próprios dos familiares sobrevivos, mas sim danos não patrimoniais decorrentes da morte do condutor, que, por o serem, não estão abrangidas pela tutela de responsabilidade civil por actos do mesmo condutor.
Quanto ao pedido formulado na presente acção de indemnização, no montante de € 150,00, pela perda e destruição do ciclomotor, apenas vem provado (facto DD)) que, à data do sinistro, era o mesmo propriedade do falecido marido da A. Não tendo sido alegado nem provado um direito próprio da A. sobre o mesmo bem, tal pedido sempre teria de improceder.
Tendo presentes estes esclarecimentos, retomemos a questão da aplicabilidade da tese do concurso entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado para efeitos de ponderação do pedido indemnizatório da A. por danos não patrimoniais resultantes da morte do cônjuge.
Se, no sinistro que deu origem à presente acção, o falecido marido da A. é um lesado que actuou culposamente, é-o enquanto condutor de um veículo motorizado e não na qualidade de qualquer das categorias de vítimas mais frágeis da circulação motorizada, a saber: os passageiros, os peões e os ciclistas (por contraposição, precisamente, à categoria dos condutores). Vítimas mais frágeis em relação às quais a tese do concurso entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado tem, efectivamente, sido admitida. Ver, a este respeito, Sinde Monteiro, “Direito dos Seguros e Direito da Responsabilidade Civil – Da legislação europeia sobre o seguro automóvel e sua repercussão no regime dos acidentes causados por veículos. A propósito dos Acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 142º (2013), págs. 82-131.
É certo que, teoricamente, se poderá formular a hipótese de que a concorrência de títulos de imputação (imputação por factos ilícitos e culposos e imputação pelo risco) venha um dia a ser ampliada a situações de colisão de veículos também quanto aos danos sofridos por condutores culpados (ver, a este respeito, o citado texto da relatora do presente acórdão, págs. 496-497). Presentemente, porém, a interpretação actualista do regime do art. 505º do CC, em conjugação com o regime do art. 570º do mesmo Código, não abrange tal situação nem tampouco outras hipóteses em que os riscos específicos do veículo sejam, em abstracto, convocáveis em conjugação com a culpa do condutor ou condutores (ver, por exemplo, o recente acórdão deste Supremo Tribunal de 17/12/2019, proc. nº 6610/16.7T8GMR.G1.S2, disponível em www.dgsi.pt, relatado pela aqui 2ª adjunta, no qual, num caso de morte de condutor de veículo, único culpado pelo sinistro, os autores pretendiam que os riscos do próprio veículo concorressem com a culpa do condutor lesado, pretensão que foi rejeitada).
A razão de ser última desta diferença de tratamento entre a situação do condutor e a situação das ditas vítimas mais frágeis (passageiros, peões e ciclistas) radica na ratio do sistema de tutela das vítimas de acidentes de viação que, no direito português, se mantém como um sistema de responsabilidade civil. Completado por um sistema de seguro obrigatório que se destina a dar cobertura a essa mesma responsabilidade, que, precisamente por isso, não abrange os danos sofridos pelos condutores (cfr. art. 14º, nº 1, e nº 2, alínea a), do Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de Agosto), o que se afigura conforme aos princípios das directivas comunitárias relativas ao seguro automóvel obrigatório (cfr. o nº 1 do art. 12º da Directiva Consolidada nº 2009/103/CE do Parlamento e do Conselho, de 16 de Setembro de 2009, nos termos do qual “(…) o seguro referido no artigo 3.º cobre a responsabilidade por danos pessoais de todos os passageiros, excepto o condutor, resultantes da circulação de um veículo”).
Deste modo, não havendo lugar à ponderação da aplicabilidade da tese da concorrência entre responsabilidade pelo risco e culpa do lesado, improcede também este fundamento do recurso da A.
A terminar assinale-se apenas que a improcedência da presente lide em nada afecta a possibilidade de tutela da A., nos termos gerais, enquanto passageira do ciclomotor envolvido no sinistro por consequências danosas de lesões da sua própria integridade psico-física, que, eventualmente, tenha sofrido, e que aqui não estavam em causa.
7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.
Custas pela Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2020
Maria da Graça Trigo (Relator)
Maria Rosa Tching
Catarina Serra