I. O artigo 71º, do Código de Processo Penal, impõe, como regra, o princípio da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal e, como exceção, a dedução do pedido civil fora do processo penal, que apenas é permitida nas situações, expressamente, previstas no artigo 72º do mesmo código.
II. Trata-se de uma opção de política legislativa que foi consagrada no nosso sistema jurídico-penal, atenta a complexidade do facto material (infração penal) que dá origem à ação penal e à ação cível e a necessidade de assegurar uma posição de equilíbrio entre os interesses públicos de segurança e certeza jurídicas, de celeridade e de proteção das vítimas, que ditaram a regra da adesão obrigatória da ação civil à ação penal, e os interesses dos lesados, permitindo-lhes, nas situações taxativamente previstas nas alíneas a) a i) do nº1 do artigo 72º do Código de Processo Civil, a dedução do pedido de indemnização civil, em separado, ou seja, a instauração, perante o tribunal civil, de ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime.
III. A exceção ao princípio da adesão prevista na alínea f) do nº1 do artigo 72º, do Código de Processo Penal, permite que, quando existe um sujeito com responsabilidade meramente civil que com o arguido responde, solidariamente, pelo pagamento da indemnização pelos danos decorrentes da infração penal, os lesados possam optar entre formular o pedido de indemnização cível no processo penal ou, em separado, através da instauração de ação cível.
IV. Tendo as autoras instaurado a ação cível apenas contra a ré seguradora, na qualidade de responsável meramente civil, com vista a obter o ressarcimento dos danos decorrentes da prática de um crime, face ao disposto na alínea f) do nº1 do artigo 72º do Código de Processo Penal, não estão as mesmas obrigadas a respeitar o princípio da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal, vigorando, antes, para elas o princípio da opção.
Não disponível.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
2ª SECÇÃO CÍVEL
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I. Relatório
1. As autoras AA e a M.A.C.I.F. ( Mutuelle Assurance des Comerçants et Industries de France et de Cadres) instauraram a presente ação declarativa contra a ré, Generali – Companhia de Seguros S.A, pedindo a condenação desta a pagar:
i) à autora AA, os montantes de € 55.000,00, de € 59.400,00 e de € 60.000,00, por ela peticionados a título de indemnização, respetivamente, pelo dano biológico que lhe adveio das lesões sofridas em consequência dos factos integradores do crime de ofensa à integridade física por negligência praticado pelo BB, pelas despesas que terá de suportar pelo facto de ter ficado dependente do auxílio de terceira pessoa e pelos danos não patrimoniais.
ii) à autora M.A.C.I.F., a quantia de € 23.622,34 por ela suportada e correspondente às despesas médicas e hospitalares relativas à autora AA e em cujos direitos ficou sub-rogada, nos termos do art. 593º, nº1, do C. Civil.
iii) juros de mora sobre cada uma das referidas quantias, devidos desde a data da citação até integral pagamento.
2. Citada, a ré Generali – Companhia de Seguros S.A contestou, excecionando, para além do mais, a incompetência material do tribunal cível com fundamento na preterição do princípio da adesão obrigatória do pedido cível à ação penal.
3. Foi proferido despacho saneador que, considerando verificada a exceção ao princípio da adesão obrigatória de pedido cível à ação penal, prevista na alínea f) do nº1 do art. 72º do Código Penal, julgou improcedente a exceção de incompetência material invocada pela ré Generali – Companhia de Seguros S.A.
2. Inconformada com esta decisão, dela apelou a ré Generali – Companhia de Seguros S.A para o Tribunal da Relação de Coimbra, que, por acórdão proferido em 28.01.2020, julgou o recurso procedente e, revogando a decisão recorrida, absolveu a ré Generali – Companhia de Seguros S.A da instância.
3. Inconformadas com esta decisão, a autora AA e a ré M.A.C.I.F. ( Mutuelle Assurance des Comerçants et Industries de France et de Cadres), dela interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Com genuína consideração pelo labor hermenêutico empreendido pelo douto Tribunal a quo, plasmado no Acórdão sub juditio, creem as ora Recorrentes que a decisão recorrida julgou sem o acerto e ponderação que se lhe exigia, o que nos termos infra explanados motiva o inconformismo das ora Recorrentes.
2. Na ótica das ora Recorrentes, o douto Acórdão recorrido incorre em erro de aplicação e interpretação de normas que respaldam a Decisão e, concomitantemente, em omissão de aplicação de normas que, imperativamente, caberiam na boa solução de direito que o caso encerra.
3. Atente-se desde logo, com o devido respeito que é muito, a previsão constante do artigo 72.º, n.º1 do Código de Processo Penal, que levou, e bem, a que o douto Tribunal de 1.ª Instância se tenha declarado competente em razão da matéria e da hierarquia para apreciar a factualidade vertida nos presentes autos, encontrando-se preenchida a previsão da alínea f) do n.º1 do supra citado artigo.
4. No entanto, a decisão sob recurso oblitera a aplicação do referido normativo legal, não devendo o Acórdão agora recorrido (i) ignorar as circunstâncias excecionais de cessação da obrigatoriedade de adesão ao processo penal, nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal; (ii) aplicar diretamente o artigo 72.º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, mormente atendendo à interpretação do preceito e aplicação ao caso em vertente.
5. Neste conspecto, o douto Acórdão afigura-se eivado de erro de determinação da norma aplicável com a consequente desconsideração da norma aplicável ao caso em concreto, a qual cominaria, necessariamente, em posição diferente da plasmada naquela decisão.
6. Conforme imposição legal, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no próprio processo penal, só o podendo ser em separado, no tribunal civil, nos casos excecionalmente, previstos na lei.
7. Nos termos previstos no artigo 72.º, n.º1 do Código de Processo Penal, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil.
8. Neste contexto, não se pode ignorar o facto de estar em causa uma pretensão, em face dos direitos reclamados e dos danos ocasionados, que recaem não apenas sobre o arguido, mas sim, sobre a ora Ré, por força da transferência do risco.
9. As ora Recorrentes não ignoram, que no âmbito do processo comum n.º 28/16.9…, que correu termos no Juízo Criminal de …, demandaram a ora Ré, peticionando os danos provocados em consequência dos factos que fundamentaram a condenação do Arguido.
10. Porém, fizeram-no quanto a danos de natureza patrimonial (danos morais próprios) e danos patrimoniais, correlacionados, única e especificamente, com a morte do ofendido, logrando as partes alcançaram transacionar nos termos dos direitos peticionados, e não tendo sido alvo do pedido de indemnização cível apresentado, nem, tampouco, matéria de transação, os valores a que nesta sede se arrogam.
11. Pois, não se vislumbra razão para que não pudessem separadamente, sem obrigação de reclamar tais danos no âmbito do processo crime em que figuravam como lesadas, peticionar nos termos do presente processo valores indemnizatórios decorrentes do dano corporal de que a ora Autora padece, e bem assim, despesas liquidadas pela Seguradora no âmbito do contrato de seguro válido e em vigor à data da factualidade em discussão.
12. A matéria agora em discussão, nomeadamente a da natureza e extensão do dano corporal de que a ora Autora AA ficou a padecer, e bem assim, do direito de reembolso que assiste à ora Autora MACIF por força das despesas que veio a suportar, não foram alvo de apreciação no processo crime!
13. Inexistindo, portanto, entre este e aquele processos identidade de pedido e de causa de pedir, haveria sempre lugar à aplicação da alínea f), do n. º1, do artigo 72.º do Código de Processo Penal.
14. Ou não fosse o facto, como ademais de explanou, de as ora Recorrentes não se terem arrogado aos direitos que agora, na presente instância, pretendem fazer valer, e a demandada ser pessoa com mera responsabilidade civil!
15. Por força de tal preceito as ora Recorrentes não se encontravam obrigadas e vinculadas ao processo penal in loco.
16. Efetivamente, não estando perante um caso de adesão obrigatória, por força da aplicação da exclusão prevista no artigo em discussão não perderam as ora Recorrentes o direito de, querendo e afigurando-se passível de enquadramento, como o é, deduzirem o seu pedido fora do processo penal.
17. No referido processo crime, vinha o Arguido acusado de um crime de homicídio negligente e de um crime de ofensa à integridade física, sendo que somente se peticionou um direito decorrente do efeito morte do ofendido.
18. É precisamente o entendimento e interpretação do artigo 72.º, n. º1, alínea f) do Código de Processo Civil sufragado pelo douto Tribunal de 1ª Instância que valida a pretensão das ora Autoras submeterem livremente a apreciação judicial a matéria em discussão.
19. Se assim não fosse desvirtuar-se-ia em pleno a possibilidade de verem avaliados danos decorrentes de um ilícito merecedor da tutela do direito, e consequentemente, de lhe verem ser arbitradas indemnizações em função daqueles danos, quando formalmente, e nos termos da lei, tal direito não se encontrava prescrito.
20. As ora Recorrentes entendem, face a tal afirmação, que incorreu o douto Acórdão num desvalor de juízo, pois deliberadamente opta por não fazer o devido enquadramento do preceito em análise ao caso em epígrafe, porquanto, contrariamente ao douto Acórdão proferido, a adesão concretizada no processo penal, não implica uma concentração de alegação e do conhecimento dos factos relativos ao acidente unificador.
21. Pelo que, o facto das ora Autoras terem apresentado o competente pedido de indemnização cível nos autos do processo crime, aí tendo sido discutidos danos de natureza não patrimonial relacionados com o evento morte ali em discussão, não esgotou a discussão sobre danos de natureza distinta, também eles derivados da mesma factualidade controvertida.
22. A bem dizer da verdade, os danos em questão no presente processo, conforme ademais se retira do douto despacho recorrido, comportam uma série de diligências próprias dos pedidos formulados pelas ora Autoras.
23. A própria Recorrida quis fazer consulta de avaliação de dano corporal na pessoa da ora Recorrente, para apresentação de proposta extrajudicial de regularização dos danos a que esta nesta sede se arroga, no dia 21.11.2018, sendo esta a razão pela qual a ora Recorrente requereu na sua douta petição inicial que fosse junta a documentação clínica em posse da ora Recorrida.
24. A natureza do processo in casu obriga à prática de diligências que alastraria, o processo penal no tempo, ferindo, desta forma, a defesa e proteção do Arguido, e bem assim. o compromisso de celeridade de que se pretende investir a tramitação penal.
25. É precisamente a racio do normativo legal que se chama à colação no presente recurso e que erroneamente não foi considerado em concreto!
26. As ora Autora apresentaram a sua pretensão indemnizatória em tempo e em sede própria, aí peticionando danos decorrentes de uma factualidade não discutida no processo crime, por atos que os ocasionaram, encontrando-se a ser peticionados danos, por força do crime de ofensa à integridade física imputado ao ora Arguido, que não foram objeto de transação com a ora Recorrida no âmbito do processo crime.
27. Verificando-se a exceção prevista na alínea f) do n. º 2 do artigo 72.º do Código de Processo Penal, conforme as ora Autoras entendem e aceitam, não configura existir decurso do prazo para formulação do pedido cível, pelo que podia ser feito em separado.
28. Com arrimo em tal normativo, mal andou o douto Tribunal da Relação ao invalidar o presente processo.
29. A Decisão recorrida frustra as legítimas expectativas das ora Recorrentes, olvidando a análise da aplicação da exceção consagrada no artigo 72.º, n.º1, alínea f) do Código de Processo Civil, razão pela qual, em face do exposto, entendem as ora Recorrentes que a matéria do douto despacho saneador não merece censura, contrariamente à fundamentação da douta Relação, existindo, outrossim, violação de preceitos legais que implicam a revogação da decisão proferida.
30. Em suma, creem genuinamente as ora Recorrentes que o douto Acórdão recorrido deverá merecer agravo atentas as violações da lei substantiva em que incorre, revogando a prolação pelo douto Tribunal da Relação do Acórdão que venha a dar provimento à presente revista».
Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e confirmado o despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância.
4. A ré Generali Companhia de Seguros, S.A. respondeu, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1) O art.º 71.º do CPP consagrou o princípio da adesão obrigatória, i.e., o pedido de indemnização civil originado pela prática de um crime deve ser deduzido no processo em que decorre a ação penal, princípio este que comporta, uma regra de fixação de competência material em matéria de pedido de indemnização fundado em crime – vide, neste sentido, designadamente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 02/03/2010 (proc. 143/08.2TBOBR.C1) e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05/11/2018 (Proc. 2261/17.7T8PNF-A.P1), in www.dgsi.pt
2) Conforme refere o douto acórdão do Tribunal a quo, em ambos os processos (no processo crime que correu junto do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Local Criminal de Castelo Branco – Juiz 1, com o n.º 28/16.9… e no processo sub judice) as partes são as mesmas, o acidente de viação é o mesmo.
3) No âmbito do referido processo-crime, foi deduzida acusação contra o segurado da Ré, BB, tendo-lhe sido imputada a prática, como autor material e em concurso real, de um crime de homicídio por negligência (de CC), e um crime de ofensa à integridade física por negligência (de AA, ora Recorrente), pelos quais foi condenado.
4) No âmbito do citado processo-crime, a 1ª A. constituiu-se como assistente; e, ambas as AA., ora recorrentes, deduziram pedido cível contra o arguido e a Ré, ora Recorrida; tendo a Ré e as AA. apresentado requerimentos de transação no âmbito do Proc. 28/16.9…, que correu termos Juízo Local Criminal de … – Juiz 1, no âmbito do qual foram proferidas as respectivas sentenças homologatórias.
5) A partir do momento em que a 1ª Ré optou por constituir-se assistente, e ambas as AA. optaram por deduzir pedido cível no âmbito do processo crime, passaram a estar vinculadas ao princípio da adesão, pelo que estavam as AA., ora Recorrentes, a partir daquele momento, vinculadas a pedir a reparação de todos os danos no âmbito do processo crime.
6) Admitir, como pretendem as Recorrentes, a reparação parcial dos danos no âmbito do processo crime e, posteriormente, a reparação parcial de danos no âmbito do processo cível, levaria a um resultado anómalo e materialmente inadmissível, consubstanciado na violação do princípio da adesão, contrariando a segurança e a certeza jurídicas e bem assim a economia e celeridade desejadas pelo princípio da adesão.
7) A não inclusão de todos os danos do pedido de indemnização na acção cível processada nos autos em que o segurado da ora Recorrida foi condenado, em concurso real, pelos crimes de homicídio por negligência e ofensa à integridade física por negligência, não constitui excepção à regra do art. 71º do CPP.
8) As Recorrentes formularam no processo penal, o pedido cível que entenderam e se optaram por não reclamar todos os danos em sede própria, sibit imputat - neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. 143/08.2TBOBR.C1, de 02/03/2010, in www.dgsi.pt
9) Não bastaria a hipótese (académica no caso concreto) invocada pelo Tribunal de 1ª instância, e agora, pelas Recorrentes, de que seriam necessárias uma série de diligências próprias dos pedidos formulados que retardariam a tramitação do processo penal. Teria de ser o Juízo Local Criminal de …, tribunal competente, a fazer a avaliação do preenchimento dos pressupostos processuais, designadamente da existência de incidentes susceptíveis de causar o retardar intolerável da tramitação.
10) O interesse de protecção da celeridade do processo-crime seria, pois, alcançado por outra via, através do estatuído no n.º 3 do art. 82º do Cód. Proc. Penal, e não das excepções ao princípio da adesão, o que, reitera-se, no caso concreto não ocorreu.
11) As Recorrentes deduziram o pedido cível que entenderam no âmbito do processo crime, tribunal que se julgou competente, não tendo remetido as questões civis submetidas à sua apreciação para os meios comuns.
12) Ao fazerem-no as Recorrentes manifestaram inequivocamente a vontade de ver apreciado no processo crime o pedido cível, não se encontrando consequentemente preenchida qualquer previsão do n.º 1 do art. 72º do CPP, designadamente, a alínea f).
13) O supra exposto importa a consequente incompetência do tribunal de 1ª instância quanto à matéria, com a consequente absolvição da Ré da instância (artigos 96.º al. a), 97.º n.º 2 e 99.º, n.º 1, 1.ª parte, do CPC), (cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 21.3.2013, acórdãos da Relação de Lisboa, de 15.3.2007, processo 1412/07-2 e da Relação de Guimarães, de 07.6.2018, processo 1388/17.0T8BCL.G1., todos disponíveis em www.dgsi.pt), excepção dilatória que determina a absolvição da instância, nos termos do preceituado nos artigos 96º, al. a), 99º, 576º, n.º 2 e 577º, al. a), todos do CPC.
14) E, não sendo os factos sub judice subsumíveis em nenhuma das excepções taxativamente elencadas no art. 72º do Cód. Proc. Civil, podiam e deviam as Recorrentes ter reclamado todos os alegados danos (e não apenas parte deles) no referido processo crime.
15) Ao deduzirem o pedido cível no âmbito do processo penal as AA., ora Recorrentes, manifestaram inequivocamente a vontade de ver apreciado o pedido cível no processo penal, e a ele passaram a estar vinculadas. (neste sentido o douto Acórdão recorrido e Acórdão da Relação de Coimbra, de 02/03/2010, Proc. 143/08, in www.dgsi.pt), termos em que, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que a adesão escolhida pelas lesadas deve ser levada até às suas últimas consequências. (…), revogando a decisão do Tribunal de 1ª instância e, consequentemente, absolvendo a Ré da instância.
16) Devendo-se manter-se integralmente o douto Acórdão recorrido, sob pena de violação, caso assim não aconteça, de quanto dispõem, entre outros, os artigos 64°, 96° ai. a), 99°, 193°, 278°, 576°, n.° 2, 577°, al. a) e b) do CPC e os artigos 71°, 72° e 82° do CPP.».
Termos em que requer seja julgado improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.
5. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso
Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].
Assim, a esta luz, a única questão a decidir consiste em saber se, no caso concreto, ocorre exceção ao princípio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil ao processo penal.
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III. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
Posto que o acórdão recorrido limitou-se a afirmar que dava por assentes os factos constantes do respetivo relatório, em face dos documentos constantes dos autos e ao abrigo do preceituado no art. 607º, nº 4 do CPC, 2ª parte, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663º, nº 2 e 679º, do mesmo código consideram-se provados os seguintes factos:
1º- No dia 10 de junho de 2016, ocorreu um acidente de viação entre o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ...-GF-..., conduzido por BB, e o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula …TM…, conduzido por CC e que, na altura, se fazia acompanhar da respetiva mulher, AA.
2º- Deste acidente resultou a morte do CC e lesões na pessoa da AA, tendo esta apresentado queixa crime contra o BB.
3º- Com base neste acidente e no processo comum n.º 28/16.9…, que correu termos no Juízo Local Criminal de …, o Ministério Público deduziu, em 26.04.2018, acusação contra BB, imputando-lhe, para além do mais, a prática, como autor material e em concurso real, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº1 e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº1, ambos do C. Penal.
4º- Constituídos assistentes no citado processo comum n.º 28/16.9…, a AA, DD e EE (estes últimos filhos da AA e do falecido CC) nele deduziram, contra a Generali-Companhia de Seguros, S.A., pedido de indemnização civil, no montante de € 177.835,00, pelos danos sofridos em consequência da morte do CC, sendo € 283,00, a título de danos patrimoniais, e € 175.000,00, a títulos dos danos não patrimoniais.
5º- No processo comum n.º 28/16.9…, a demandante civil, M.A.C.I.F. (Mutuelle Assurance des Comerçants et Industries de France et de Cadres) deduziu contra a demandada civil, Generali- Companha de Seguros, S.A., pedido de indemnização civil, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de € 952,08, acrescida de juros de mora, calculados desde a data de notificação do pedido de indemnização civil aos demandados, e vincendos, até efetivo e integral pagamento, por conta dos valores despendidos em consequência da morte do CC.
6º- No processo comum n.º 28/16.9…, quer as demandantes civis, AA, DD e EE, e a demandada civil, Generali – Companhia de Seguros S.A., quer a demandante civil M.A.C.I.F. ( Mutuelle Assurance des Comerçants et Industries de France et de Cadres) e demandada civil, Generali – Companhia de Seguros S.A, apresentaram transações quanto aos respetivos pedidos de indemnização civil, que foram homologadas, por sentenças proferidas em 24 de janeiro de 2018.
7º- Por sentença proferida, em 15.02.2018, no processo comum n.º 28/16.9…, foi o então arguido, BB, condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º, nº1 e de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº1, ambos do C. Penal.
8º- Em 31 de maio de 2019, instauraram as autoras AA e a M.A.C.I.F. (Mutuelle Assurance des Comerçants et Industries de France et de Cadres) a presente ação declarativa contra a ré, Generali – Companhia de Seguros S.A, pedindo a condenação desta a pagar:
i) à autora AA, os montantes de € 55.000,00, de € 59.400,00 e de € 60.000,00, por ela peticionados a título de indemnização, respetivamente, pelo dano biológico que lhe adveio das lesões sofridas em consequência dos factos integradores do crime de ofensa à integridade física por negligência praticado pelo BB, pelas despesas que terá de suportar pelo facto de ter ficado dependente do auxílio de terceira pessoa e pelos danos não patrimoniais.
ii) à autora M.A.C.I.F., a quantia de € 23.622,34 por ela suportada e correspondente às despesas médicas e hospitalares relativas à autora AA e em cujos direitos ficou sub-rogada, nos termos do art. 593º, nº1, do C. Civil.
iii) juros de mora sobre cada uma das referidas quantias, devidos desde a data da citação até integral pagamento.
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3.2. Fundamentação de direito
Conforme já se deixou dito, o objeto do presente recurso prende-se apenas com a questão de saber se, tendo a presente ação ter sido instaurada apenas e tão só contra pessoa com responsabilidade meramente civil, ocorre exceção ao princípio da adesão obrigatória do pedido cível à ação penal prevista na alínea f) do nº1 do art. 72º do C. P. Penal.
No sentido afirmativo pronunciou-se o Tribunal de 1ª Instância, argumentando, no essencial, que a circunstância de, no âmbito do processo crime n.º 28/16.9…, os demandantes civis, AA, DD, EE e a seguradora M.A.C.I.F. terem formulado, contra a Generali – Companhia de Seguros S.A, respetivamente, pedido de indemnização civil para ressarcimento dos danos sofridos em consequência da morte do CC e para reembolso das despesas liquidadas ao abrigo do contrato de seguro, com base nos factos que ditaram a condenação do arguido, BB, pela prática do crime de homicídio por negligência, não impedia a dedução, em separado, contra a Generali – Companhia de Seguros S.A, do pedido de indemnização civil formulado pela ora autora, AA, com vista ao ressarcimento dos danos por ela sofridos em consequência da prática, pelo mesmo arguido, do crime de ofensa à integridade física por negligência, bem como do pedido de reembolso formulado pela autora M.A.C.I. F. relativamente às despesas hospitalares por ela suportadas ao abrigo do contrato de seguro.
Isto porque, para além de estamos perante uma situação de total autonomia entre os danos peticionados num e noutro processo, a demonstração dos danos advenientes para a autora AA da ofensa à sua integridade física poderia exigir a análise de documentos e a realização de exames periciais que, inevitavelmente, retardariam a tramitação do processo penal anteriormente instaurado, o que tudo legitima, com base na alínea f) do nº1 do art. 72º do C. P. Penal, a dedução, em separado, dos referidos pedidos.
Daí ter julgado improcedente a exceção de incompetência material do tribunal invocada pela ré Generali – Companhia de Seguros, SA.
Discordando deste entendimento, defendeu o acórdão recorrido que, no caso em apreço, nem sequer se trata «de procurar qualquer exceção ao princípio da adesão».
É que, «a partir do momento em que as Autoras optaram por deduzir pedido cível no âmbito do processo penal, elas passaram a estar vinculadas a este processo penal» e «a pedir a reparação de todos os danos emergentes do sinistro em causa, relativos aos crimes em julgamento, no âmbito do dito processo penal», pois a «adesão concretizada implica uma concentração de alegação e de conhecimento dos factos relativos ao acidente unificador, esgotando a discussão sobre eles».
Mais sustentou que a «admitir-se a discussão posterior, em processo civil, de outros danos resultantes de um dos crimes já julgados, decorrente do mesmo acidente já julgado, com transação feita no plano indemnizatório, seria contrariar a segurança e a certeza jurídica, a economia e a celeridade desejadas pelo princípio da adesão».
E, com base nesta argumentação, revogou a decisão apelada, absolvendo a ré da instância.
Vejamos.
Como refere M. Maia Gonçalves[2], «A prática de uma infracção criminal é possível fundamento de duas pretensões dirigidas contra os seus agentes: uma acção penal, para julgamento, e, em caso de condenação, aplicação das reacções criminais adequadas, e uma acção cível, para ressarcimento dos danos patrimoniais e não patrimoniais a que a infracção tenha dado causa. …»
Estamos, neste último caso, perante um pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime que, por força do princípio da adesão consagrado no art. 71º [3], do CPP, tem de ser deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
Tal como é pacífico na doutrina e na jurisprudência, este artigo, contempla, como regra, o princípio da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal e, como exceção, a dedução do pedido civil fora do processo penal, que apenas é permitida nas situações, expressamente, previstas no art. 72º do CPP.
Trata-se de uma opção de política legislativa que foi consagrada no nosso sistema jurídico-penal, atenta a complexidade do facto material (infração penal) que dá origem à ação penal e à ação cível e a necessidade de assegurar uma posição de equilíbrio entre os interesses públicos, subjacentes ao princípio da adesão obrigatória, e os interesses dos lesados.
Como sublinha Henriques Gaspar[4], a lei processual acolheu o sistema da interdependência das duas ações ou da adesão, que tem como elemento essencial a obrigatoriedade de «juntar a acção civil à acção penal, permitindo que a jurisdição penal se pronuncie sobre o objecto da acção civil, mas cujos objetos, «não obstante a identidade do facto material que constitui a referência dos pressupostos respetivos, mantém-se distintos e autónomos, valendo para cada um as regras substantivas[5] e, mesmo processuais[6], que são próprias da natureza de cada um».
E fê-lo, quer por razões práticas de economia processual, que exigem que « o mesmo tribunal e no mesmo processo, decida sobre os danos originados pelo mesmo facto», quer por razões de segurança e certeza jurídicas, de celeridade e de proteção das vítimas, na medida em que a «adesão constitui um mecanismo processual apto a promover o resultado de uniformização de julgados», a «permitir uma realização mais rápida e eficaz do direito do lesado à indemnização» e «a assegurar uma eficaz protecção a muitas vítimas de uma infracção penal»[7] .
Mas se é certo terem sido estes os interesses públicos que ditaram a regra da adesão obrigatória da ação civil à ação penal, a verdade é que, como salienta ainda Henriques Gaspar[8], este princípio «mostra-se temperado por exceções no sentido da alternatividade ou da opção».
Isto porque, tal como já se deixou dito, o legislador não foi indiferente aos direitos e interesses dos lesados, permitindo-lhes, nas situações taxativamente previstas nas alíneas a) a i) do nº1 do art. 72º do CPP, a dedução do pedido de indemnização civil, em separado, ou seja, a instauração, perante o tribunal civil, de ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime.
É o que acontece, designadamente no caso previsto na al. f) do nº1 do citado art. 72º, que, considerando a possibilidade da responsabilidade pelo ressarcimento dos danos ocasionados pelo crime recair não apenas sobre o arguido, mas também sobre outras pessoas alheias à responsabilidade criminal ou até somente sobre estas, consagra exceção ao princípio da adesão, quando «for deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido ».
Daí ter-se por certo que, quando existe um sujeito com responsabilidade meramente civil que com o arguido responde, solidariamente, pelo pagamento da indemnização pelos danos decorrentes da infração penal, a adesão da ação civil ao processo penal torna-se facultativa[9].
Ora, tendo as autoras, AA, ofendida e queixosa na ação penal, e a seguradora M.A.C.I.F, instaurado a presente ação cível apenas contra a ré Generali - Companhia de Seguros, S.A., na qualidade de responsável meramente civil, com vista a obter o ressarcimento dos danos decorrentes para a AA da prática do crime de ofensa à integridade física, por negligência, e pelo pagamento das despesas médicas e hospitalares suportadas pela autora M.A.C.I.F com o tratamento das lesões sofridas por aquela mesma autora, não há dúvida, face ao disposto na al. f) do nº1 do citado art. 72º, que as ora autoras não se encontravam obrigadas a respeitar o princípio da adesão, vigorando, antes, para elas o princípio da opção, isto é, tanto podiam formular o pedido de indemnização cível no processo penal como o podiam fazer em separado através da instauração de ação cível própria.
E nem se diga, como o faz o acórdão recorrido, que esta solução contraria «a segurança e a certeza jurídica, a economia e a celeridade desejadas pelo princípio da adesão», posto que, tal como se deixou dito, foi opção do próprio legislador fazer prevalecer os interesses dos lesados determinando, nesta situação (como nos demais casos contemplados nas restantes alíneas do nº 1 deste art. 72º), a cessação da obrigatoriedade da adesão.
Acresce que os danos cuja indemnização é peticionada nesta ação cível nem sequer foram objeto do pedido cível deduzido no processo crime n.º 28/16.9…, não havendo, por isso, qualquer risco de duplicação ou de contradição de julgados.
Não há dúvida, portanto, não se encontrar a situação concreta submetida ao princípio da adesão, pelo que, enquanto não ocorrer a prescrição do direito das autoras, nada obsta a que as mesmas instaurem ação cível com vista a obter o ressarcimento dos danos para si resultantes do crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo art. 148º, nº1, do C. Penal, perpetrado na pessoa da autora AA pelo BB mesmo após a condenação deste arguido no processo crime n.º 28/16.9… pela prática do referido crime.
Questão bem diversa desta é a suscitada pela recorrida Generali - Companhia de Seguros, S.A. e que consiste em saber se a eventualidade da análise de documentos e a realização de exames periciais com vista à demonstração dos danos advenientes para a autora AA da ofensa à sua integridade física implicar um retardamento na tramitação do processo penal anteriormente instaurado, legitima a aplicação do disposto na al. f ) do nº1 do art. 72º do C. P. Penal, tal como considerou o tribunal civil de 1ª instância.
Mas ainda que, neste plano, se reconheça assistir razão à ora recorrida, pois dúvidas não restam que a decisão de remeter as partes para os tribunais civis, com base naquele fundamento, sempre caberia ao tribunal criminal nos termos do art. 82º, nº 3 do CPP, a verdade é que isso não altera em nada tudo o que se deixou dito.
Termos em que procedem todas as razões invocadas pelas recorrentes, impondo-se, por isso, a revogação do acórdão recorrido.
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IV – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em conceder a revista interposta pelas autoras e, em consequência, revogar o acórdão recorrido, julgando-se improcedente a exceção de incompetência material invocada pela ré Generali – Companhia de Seguros S.A.
As custas devidas em ambos recursos ficam a cargo da recorrida.
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Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este coletivo.
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Supremo Tribunal de Justiça, 7 de maio, de 2020
Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)
Catarina Serra
José Manuel Bernardo Domingos
[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respetivamente.
[2] In Código de Processo Penal, Anotado, 10ª ed. , nota 5 ao art. 71º, pág. 214.
[3] Cuja constitucionalidade foi apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão nº 451/97, que considerou que esta norma não viola o direito fundamental de acesso aos tribunais.
[4] In “ Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, pág. 228.
[5] No plano substantivo, a autonomia da ação civil enxertada no processo penal está expressa no art. 129º do C. Penal, onde se afirma que «A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil».
[6] A autonomia da ação civil enxertada no processo penal revela-se « nomeadamente, na suscetibilidade de intervenção e pessoas com mera responsabilidade civil, nos conceitos e estatutos processuais de demandante (lesado), demandado e intervenientes na ação civil enxertada, força de caso julgado da ação civil, partes civis e penal da sentença, potencial maior amplitude do direito de recurso da parte civil da sentença, atentas, respetivamente, as normas dos artigos 73º, nºs 1 e 2, 74, nºs 1 e 3, 84º, 377, nº1 e 400º, nº3, do CPP». Neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in, “Comentário do Código de Processo Penal”, Universidade Católica Editora, Lisboa, 4ª edição, 2011, pág. 229 e Cristina Dá Mesquita, in, “ Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal», in “Julgar Online”, janeiro de 2018, pág. 4.
[7] Neste sentido, Henriques Gaspar in “ Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, págs. 228 e 229.
[8] In “ Código de Processo Penal, Anotado”, 2016, 2ª ed. revista, pág. 228.
[9] Neste sentido, Lopes do Rego, “ As partes civis e o pedido de indemnização deduzido no processo penal”, in Revista do Ministério Público. Lisboa. V Encontro Nacional de Magistrados, caderno 4, 1989, págs. 61-70 e Manuel Simas Santos e Leal Henriques, in “ Manual- Código de Processo Penal, anotado, 3ª ed., Lisboa 2008, I. Vol. , pág. 502.