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ECLI:PT:STJ:2021:611.16.2PALSB.L1.S1.F4

Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA

Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS COAÇÃO SEXUAL PENA PARCELAR DUPLA CONFORME CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS INADMISSIBILIDADE PENA ÚNICA MEDIDA CONCRETA DA PENA

Processo: 611/16.2PALSB.L1.S1

Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO (CRIMINAL)

Data do Acordão: 20/01/2021

Votação: UNANIMIDADE

Texto Integral: S

Nível de acesso: 1

Meio Processual: RECURSO PENAL

Decisão: NEGADO PROVIMENTO QUANTO À PENA ÚNICA E REJEITADO QUANTO AO DEMAIS

Indicações eventuais: TRANSITADO EM JULGADO

Sumário


I - Apesar dos argumentos que levariam a uma rejeição in totum do recurso, por manifesta improcedência, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 414.º, n.ºs 2 e 3 e 420.º, n.º 1, al. a) e 2 do CPP, por repetição, tautologia, ou similitude dos seus termos com os de um anterior recurso (cf. dos Acórdãos deste STJ de 7.10.2007 – Proc. n.º 07P3990 e de 22.10.2008 – Proc. n.º 08P3274), entendeu-se admiti-lo, em apreço à ampla recorribilidade. Cf. Ac. do STJ de 20.6.2018, proferido no Proc. n.º 3343/15.5JAPRT.G1.S2): «A repetição, no recurso para o STJ, da motivação recursória utilizada perante a Relação não tem como consequência a rejeição, pura e simples, do mesmo».

II - A pretensão na insistência da recorrente em alteração da matéria de facto e em absolvições tem de, obviamente, ser vista à luz do permitido e do não permitido pela Lei. Assim, além dos arts. 399.º do CPP e 432.º, n.º 1, al. b) do CPP, releva muito especialmente o comando do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP – (v. ainda Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, in DR I, de 11.12,).

III - O Acórdão Recorrido confirmou, numa parte, a decisão de 1ª Instância – confirmou todos os factos e todas as tipificações, meramente reduzindo a medida de todas as penas parcelares de prisão, as quais fixou em medida que não ultrapassa, para cada crime, os 5 anos (4 anos e 3 anos para os crimes de violência doméstica, 5 anos para cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças e 1 ano e 9 meses para o crime de coação sexual), e reduzindo ainda a pena conjunta, que fixaria em 10 anos de prisão. A Relação não aplicou qualquer pena parcelar de prisão superior a 5 anos, nem transmutou absolvição em condenação que já fora proferida 1ª instância, com base nos mesmos factos e nas mesmas qualificações jurídicas.

IV - Em consequência, a impugnação das penas parcelares em recurso para o STJ não é admissível, tendo presentes os arts. 399.º, 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), do CPP., cabendo por isso rejeição do recurso interposto nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, sendo ainda que, de acordo com o art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, é inadmissível recurso quanto às penas parcelares, pela ocorrência da dupla conformidade.

V - No tocante às penas parcelares, que são todas de prisão, nenhuma ultrapassa os 8 anos e nenhuma foi agravada – pelo contrário, todas foram atenuadas na sequência do recurso. Assim, por via do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, articulado com os arts. 399.º e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, o recurso não é admissível nessa parte. Com efeito, não é admissível recurso para o STJ de “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”. E a decisão condenatória in mellius integra-se cabalmente nesta situação (cf. Ac. deste STJ de 19.9.2019). Não pode deixar assim de haver lugar à rejeição do recurso nos termos dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1 als. e) e f), 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, no tocante à comprovação, figuração e imputação de todos os crimes por que a Recorrente foi condenada e à escolha e medida das respetivas penas parcelares.

VI - A intervenção do STJ no controle da proporcionalidade a considerar na medida concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa e jamais ilimitada, sobretudo versando sobre elementos objetivos do iter que concorreu para a formação da convicção do Tribunal e para a formulação da decisão (conforme discriminados em abundante jurisprudência, nomeadamente apud Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).

VII - A jurisprudência deste STJ tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido. No caso dos concretos crimes em presença, não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque aos bens jurídicos violados, violação geradora de escândalo, alarme e intranquilidade – reveladores da consciência jurídica geral da comunidade (cf. Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1; cf. ainda os  Acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97 (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214). Assim como é de salientar o particular sofrimento das vítimas, patente nos seus depoimentos, apesar de tantos anos passados sobre os factos, sendo, aliás, esta “erosão temporal” um dos fatores que foi tido em consideração pelo Tribunal recorrido.

VIII - Considerando as notórias necessidades de prevenção no caso em concreto (considerando já o elemento “erosivo” referido), o respetivo grau de culpa e de ilicitude, todo o comportamento de desculpabilização e minimização da sua conduta, e não vero, profundo e interiorizado arrependimento (que o Tribunal a quo  analisou - Cf. Ac. do STJ de 21-06-2007, Proc. n.º 2042/07) revelado pela escassa relevância da inserção social, profissional e familiar da arguida, no caso (igualmente assim avaliada pelo Tribunal a quo), entende-se que a pena única de 10 anos de prisão não excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade, sendo absolutamente necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, nomeadamente  tendo em atenção o caráter relativamente pretérito dos factos, mas não apagando a sua profunda gravidade e desconformidade com os valores, princípios e normas socialmente vigentes e legalmente acolhidos,  confirmando-se assim o Acórdão recorrido.

IX - Concordou-se assim em rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 399.º, 400.º, n.º 1, als. e) e f), 420.º, n.º 1, al. b) e 414.º, n.ºs 2 e 3, todos do CPP, quanto às ilicitudes e às penas parcelares; e quanto ao mais, negar provimento ao recurso, mantendo a pena única.

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça




I

Relatório




1.A arguida AA, devidamente identificada nos autos, interpôs recurso da sua condenação pelo acórdão de 7.5.2020 do Tribunal da Relação de Lisboa, que deu parcialmente provimento ao seu recurso, interposto da condenação do Tribunal de 1.ª Instância.

2. Com efeito, em 1.ª Instância, no Processo Comum Coletivo n.º 611/16.2PALSB do Tribunal Judicial da Comarca …, Juízo Central Criminal …. – Juiz …, havia a arguida sido condenada, inter alia, pela seguinte forma:

«- condenar a arguida AA pela prática, como autora, de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a filha BB, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de cinco anos de prisão;

- condenar a mesma arguida pela prática, como autora, de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a filha CC, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de três anos e oito meses de prisão;

- condenar a mesma arguida pela prática, como autora, de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.°, n.° 2, e 177.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de seis anos de prisão, por cada um deles;

- condenar a mesma arguida pela prática, como autora, de um crime de coacção sexual, previsto e punido pelo artigo 163.°, n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de dois anos de prisão;

- em cúmulo jurídico, condenar a arguida AA na pena única de treze anos de prisão;

- condenar o arguido DD pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a filha BB, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de três anos e oito meses de prisão;

- condenar o mesmo arguido pela prática, como autor, de um crime de violência doméstica, perpetrado contra a filha CC, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, na pena de três anos de prisão;

- em cúmulo jurídico, condenar o arguido DD na pena única de cinco anos de prisão, que se suspende por igual período de cinco anos, ao abrigo do disposto no artigo 50.°, n.°s 1 e 5, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro;

- condenar a arguida AA, nos termos do artigo 82.º A do Código de Processo Penal, a pagar à ofendida BB o valor de 2500 € (dois mil e quinhentos euros) e à ofendida CC o valor de 1500€ (mil e quinhentos euros);

- condenar o arguido DD, nos termos do artigo 82.º A do Código de Processo Penal, a pagar à ofendida BB o valor de 1500 € (mil e quinhentos euros) e à ofendida CC o valor de 1000€ (mil euros). (…)»

3.O teor da decisão recorrida, do Tribunal da Relação de Lisboa, é o seguinte, conforme o respetivo dispositivo (decisão), que se transcreve:

“Em face do exposto, acordam os Juízes da … Secção Criminal da Relação de Lisboa em:

- concedendo parcial provimento ao recurso interposto pela arguida AA, fixar as penas que lhe foram aplicadas, pela prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2, do CP, em 4 (quatro) anos de prisão (ofendida BB ) e 3 (três) anos de prisão (ofendida CC); em 5 (cinco) anos de prisão a pena imposta pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), ambos do CP (na redacção da Lei n.º 59/2007, de 04-09); em 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão a pena aplicada pela prática de um crime de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163.º, n.º 2, do CP (na redacção da Lei n.º 59/2007, de 04-09); e fixar em 10 (dez) anos de prisão a pena única;

- no mais, negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Sem tributação (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario).”

Ressalta, desde logo, que o quantum da pena única decidida pelo Tribunal da Relação foi diminuído relativamente ao decidido pela 1.ª Instância: de 13 (treze) para 10 (dez) anos de prisão.

4. Ainda inconformada com o Acórdão da Relação de Lisboa, a arguida interpôs recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, de cuja Motivação extraiu as seguintes Conclusões:

“1. O presente Recurso visa a alteração in totum (de Facto e de Direito) do douto Acordão Recorrido, não desconhecendo a Recorrente que o âmbito de apreciação do STJ se restringe às questões de Direito, como resulta do artº 434º, nº 2 do C.P.P. a amplitude da cognição do STJ comporta a excepção invocada nas presentes Alegações, conhecendo este Venerando Tribunal, ex officio, os vícios indicados.

2. Desde logo a clara violação do disposto no artigo 138º n.º 2 C. P.P, o modo como a inquirição estava a ser conduzida pelo tribunal feriu ainda o princípio da presunção de inocência;

3. A inquirição da testemunha-ofendida BB, pela Mma Juiz “Asa” foi de forma contrária às regras legais de inquirição das testemunhas, prejudicando a obtenção do depoimento, tornando-o tudo menos espontâneo, sucumbindo às sugestões submetidas sobre forma de perguntas, sendo demonstrativa daquilo que a audição de uma testemunha não pode ser.

4. A MMa Juiz tomou a dianteira na obtenção do depoimento, oferecem o com texto, sugestionam os factos que encaminharam a resposta da BB, ficando esquecidas e arredadas as elementares regras legais e boas práticas da condução da audiência visando a obtenção de prova por depoimento da testemunha, de forma a que o depoimento obtido não pode ser considerado livre, espontâneo e verdadeiro.

5. Decorre igualmente da lei que à testemunha não podem ser feitas perguntas sugestivas ou impertinentes nem quaisquer outras que possam prejudicar a espontaneidade e a sinceridade das respostas (art. 138.º, n.º 2), beneficiando até de regras legais de protecção (art. 139º do CPP).”,

Acordão do Tribunal da Relação de Évora, Processo n.º 120/09.6GBMMN.E1 in http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/5e6342af7bdac78780257 de10056f678

6. Também aqui o Acórdão recorrido, pese embora o muito respeito que nos merece, o necessário é referir que este não desceu aos factos, à sua apreciação e a articulação feita nem à fundamentação que nele é dada, ou dito por outras palavras, a falta de concretização das situações foi manifesta por parte deste acórdão.

7. Ora a prova que foi feita foi quase sempre arrancada capciosamente pela inquirição feita pela MMa Juiz Adjunta.


VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA:

8. Como alude o acórdão recorrido com menção a este Venerando Supremo Tribunal de Justiça “A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve deveria ter tido” – Acórdão do STJ de 14-04-2011,

9. O Acórdão afastou a versão da Arguida Recorrente que, com lógica e coerência explicou a sua intervenção, a coberto de que não tinha credibilidade desconsiderando o seu depoimento que deu as suas explicações e a forma como as viveu. O Acórdão continuou a não lhe dar crédito, mas por esse facto, não tendo a Arguida confessado mais do que o que disse, não pode repete-se, ser inculpada.

10. Como é que se pode acreditar piamente, pois de crença pia se terá que classificar o Douto Acordão, em pessoas que inconstantes e que mudam de opinião rapidamente… em menos de 10 minutos, uma vez dizem de uma maneira e depois de outra... nunca se sabe o que se vai ouvir como declaração. Tudo pode mudar. O incerto passa a incerto... o que se tinha a certeza já foi... assim não pode haver consequências.

11. Mais o douto Acórdão continua a valorar o depoimento da ofendida BB que não se cansou de apregoar para a quem a queria ouvir, mesmo durante o inquérito, que não gostava da mãe, que nunca tinha gostado, que ter relações pessoais com a mesma consistia numa obrigação quase forcada.

12. Poder-se-á nestas condições aceitar-se este tão grave depoimento, como isento, verdadeiro ou até verosímil?

13. Estranha-se ainda que no decurso do seu depoimento sempre deu mais enfase aos castigos físicos, não sexuais entenda-se, à comida (sopa estragada) ou do pouco que comiam, as molas nos mamilos, ao facto de ter de proceder às tarefas domésticas que era obrigada a cumprir e ainda ao facto de ter ficado com as mãos na rua.

14. Em detrimento em qualquer “abordagem sexual” que não preocupava a declarante do seu depoimento e a pouca importância que lhe dava, não enfatizando nada, não se mostrando minimamente incomodada o que não acontecia com a qualidade que por vezes teve que alegadamente ingerir.

15. Não há uma única prova produzida em audiência de julgamento que permita concluir que tais factos tivessem efectivamente acontecido.

16. Não o tendo feito não estava em condições de poder formular um juízo seguro de condenação.

17. Por outro lado, os factos dados como provados não permitem a aplicação segura do direito ao caso submetido a julgamento, com o preenchimento pela arguida/recorrente dos elementos constitutivos dos crimes.

18. Decorre do princípio basilar da presunção de inocência, o princípio contra a auto-incriminação (“ninguém está obrigado a se descobrir”, “ninguém está obrigado a se auto acusar”, “ninguém está obrigado a depor contra si próprio, porque ninguém é obrigado a revelar a sua torpeza”, “ninguém é obrigado a agir contra si mesmo”). Integram estes princípios o âmago da dignidade da pessoa humana que a Declaração do Homem e do Cidadão de 1948 – artº XI – e artº 6º da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e Constituição da República Portuguesa, - artº 32, nº 2.

19. Razão pela qual a Recorrente considera que por um lado que o Acórdão recorrido a coberto da livre apreciação da prova, decidiu à revelia dos Princípios in dúbio pro reo e viola o Princípio de presunção de inocência porquanto os factos vertidos na impugnação apresentada estão insuficientemente fundamentados

20. Pelo que deverá forçosamente de ser absolvida dos dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na redaccao introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e de um crime de coaccao sexual, previsto e punido pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro,


III - DA PENA

21. Como se já se disse a Recorrente não se conforma com a subsunção da matéria de facto ao direito discordando com a pena concreta aplicada, no que tange aos crimes de violência doméstica e dos castigos físicos que infligiu às ofendidas na parte em que não as impugnou.

22. A Recorrente não tem personalidade tendencionalmente criminosa, não era, como não é, uma cadastrada, alias até nem tem antecedentes criminais, nem quaisquer processos pendentes pelo que a pena aplicada pelo Tribunal “a quo” é de uma extrema violência.

23. Tem o seu marido e a sua filha, dispostos a acolhê-la e a ajudar em tudo o que vier a necessitar,

24. O Acórdão ao aplicar a pena já referida à Recorrente manteve essencialmente em consideração, salvo melhor opinião, o aspecto punitivo da pena e não ponderou com equidade o aspecto pedagógico que deve estar subjacente à aplicação da mesma.

25. Entende que a aplicação da pena de quatro anos e três anos de prisão por cada um dos crimes de violência doméstica continua a ser manifestamente exagerado, desproporcionado e desajustado – recorde-se que este crime é punido com uma pena de prisão de dois a cinco anos....

26. O mesmo se dizendo às penas de 5 anos que lhe foi aplicada pela prática de cada um dos crimes de abuso sexual de crianças...

27. Bem como à pena de 1 ano e nove meses de prisão pela prática de um crime de coação sexual

28. Caso V. Venerandos considerarem que a mesma deva ser condenada por estes últimos crimes.

29. O Douto Acórdão continuou a não dar o adequado relevo aos aspectos referidos pela recorrente, cujos contornos demandam seguramente a aplicação de penas cuja medida concreta terá de ser claramente inferior ao que se evidencia no acórdão, máxime no tocante às penas parcelares onde a desproporcionalidade se evidencia de uma forma mais grosseira.

30. Sempre diz que entende que a pena aplicada é excessiva quer porque os fins visados pelas penas de prevenção (artigo 40º do Código Penal), quer pela culpa enquanto medida de determinação da pena (artigo 71º do Código Penal).

31. Ora, ter-se-ia que reconhecer que a vontade da Recorrente não foi racional pelo menos nos factos relacionados com as agressões físicas, resultou de exaltação consequente dos tratamentos médicos e psicológicos acima explicados que tem conhecidos efeitos secundários, as situações criadas pelas ofendidas, que poderão criar as situações parecidas com as descritas em virtude de tal descontrolo psíquico as vezes momentâneo.

32. O Acórdão continua a não valorar na sua totalidade que as exigências de prevenção estão afastadas porque a Recorrente demonstrou ao longo do tempo está na actualidade integrada profissionalmente com trabalho, educando uma filha de 11/12 anos, não ter igualmente qualquer contacto com as ofendidas e os factos terem alegadamente sido cometidos há mais de 10 anos!

33. Logo, a aplicação da referenciada pena de prisão de 10?!?! Anos a quem esta integrado familiarmente, profissionalmente, como aliás resulta comprovado nos autos, contraria o ratio deste preceito legal e o verdadeiro fim das penas, sendo que confissão ainda que escassa no prisma do Douto Acórdão, não significa necessariamente que a Recorrente não reconheceu que a sua conduta merece ser censurada.

34. Por sua vez, o número 1 do artigo 71.º do Código Penal estipula que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção devendo, conforme previsto no seu no 2, atender-se às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente as aí enumeradas.

35. Considerando as atenuantes que acima se referem, não será descabido, nem resultará qualquer dano gravoso para a sociedade ou pelo menos prejudicial em demasia para a mesma, a aplicação da pena ser fixada ser no mínimo da sua moldura penal correspondente, afigurando-se adequado aos fins das penas e proporcional ao grau de ilicitude;

36. Razão pela qual a Recorrente discorda da dosimetria das penas parcelares dos crimes que lhe foi aplicada por ser manifestamente desajustada, exagerada e desadequada.

37. O sentido de justiça da comunidade face à culpa do agente ficará seguramente restabelecida com a pena fixada nos seus limites mínimos...

38. Dos factos apurados vê-se que a pena de substituição (suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova, mesmo que ainda sujeita a deveres e regras de conduta) seja suficiente para evitar que a Recorrente reincida (dissuadir o agente da prática de novos crimes).

39. Sendo pois possível formular um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão, ainda que com regime de prova (como a própria lei impõe no art. 53º, nº 3, do CP na versão atual) e sujeita a deveres e regras de conduta.“

40. Ao decidir da forma que decidiu o Acórdão - uma pena tão severa à arguida, não tendo em conta todos as circunstâncias que poderiam, como podem, favorecer a Recorrente, violou, entre o mais o art. 71.º do C.P..


NESTES TERMOS E DEMAIS DE DIREITO QUE V. EX.AS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, REQUER-SE QUE SEJA ADMITIDO O PRESENTE RECURSO E QUE SUFRAGADO SEJA:

DEVERÁ A RECORRENTE SER ABSOLVIDA DOS 2 CRIMES DE ABUSO SEXUAL DE MENORES, PREVISTOS E PUNIDOS PELO ARTIGO 171.º N.º 2 E 177.º N.º 1 ALÍNEA A) AMBOS DO CÓDIGO PENAL, NA REDAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI 59/2007 DE 4 DE SETEMBRO,

DEVERÁ SER IGUALMENTE ABSOLVIDA DE UM CRIME DE COAÇÃO SEXUAL PREVISTO E PUNIDO PELO ARTIGO 163.º N.º 2 DO CÓDIGO PENAL NA REDAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI 59/2007 DE 4 DE SETEMBRO,

- A PENA APLICADA AOS CRIMES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PREVISTO E PUNIDO PELO ARTIGO 152.º N.º 1 ALÍNEA D) E N.º 2 DO CÓDIGO PENAL NA REDAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI 59/2007 DE 4 DE SETEMBRO, APLICADA É EXAGERADA PELO QUE DEVE FAZER-SE A CORRECTA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DOS PRECEITOS CITADOS CONDENANDO A ARGUIDA EM PENA MAIS PRÓXIMA DO SEU LIMITE MÍNIMO, BENEFICIANDO IGUALMENTE PELA SUA SUSPENSÃO.

COMO O QUE SE CONFIGURA SER DE JUSTIÇA

PEDE E ESPERA DEFERIMENTO”


5. Respondendo, a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, considerou, em clara e sucinta peça, que:

“A arguida interpôs recurso do douto acórdão proferido pela … secção do Tribunal da Relação de Lisboa a 7 de maio de 2020, (fls. 508 a 533), que a condenou como autora de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art.° 152°, n.°s 1, al. d) e n.° 2 do C. Penal em quatro anos de prisão, (relativamente à ofendida BB) e três anos de prisão, (relativamente à ofendida CC), como autora de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art.°s 171°, n.° 2 e 177°, n.° 1, al. a) do C. Penal, na pena de cinco anos de prisão por cada um dos crimes e ainda na pena de um crime de coação sexual, p. e p. pelo art.° 163°, n.° 2 do C. Penal, na pena de um ano e nove meses de prisão.

Em cúmulo jurídico a arguida foi condenada na pena única de dez anos de prisão.

Na motivação do recurso a arguida pede:

- a sua absolvição pela prática dos dois crimes de abuso sexual de menores;

- a sua absolvição pelo crime de coação sexual;

- a redução das penas aplicadas pela prática dos crimes de violência doméstica, fixando-as em medida próxima do mínimo legal e suspensa na sua execução.

Fundamenta o pedido em três ordens de razões: -foi violado o disposto no artigo 138°, n.° 2 no que se refere à inquirição da ofendida BB pela Mma Juiz, condicionando o seu depoimento;

- foi violado o princípio da presunção de inocência, porquanto a prova produzida não permite formular um juízo de certeza sobre os factos, devendo ser valorizada a favor da arguida;

- as penas parcelares aplicadas são excessivas e, nessa medida desajustadas, quer à culpa do agente, quer às exigências de prevenção geral e especial.

Na motivação do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça a arguida suscita as mesmas questões que submeteu à apreciação deste Tribunal da Relação, não impugnando por qualquer forma, verdadeiramente, o douto acórdão deste Tribunal.

Assim sendo, o recurso será de rejeitar, face à inexistência ou falta de motivação por força do disposto nos artigos 414°, n.° 2 e 420°, n° 1, al. b) do Código de Processo Penal.

Na verdade, a repetição integral das razões de discordância com o agora decidido constitui-se como falta de motivação e, por via disso, como motivo de rejeição do recurso nos termos das disposições legais apontadas.

Pelo que se conclui:

- O recurso agora interposto para o Supremo Tribunal de Justiça repete o conteúdo da Motivação e Conclusões do recurso interposto para este Tribunal da Relação;

- Tal constitui falta de motivação, pelo que por força do disposto nos artigos 414°, n° 2, e 420°, nº 1, alínea b), ambos do Código de Processo Penal o recurso será de rejeitar;

- Rejeitando o recurso e mantendo o decidido, nos seus precisos termos, farão V. Excelências, aliás como sempre,

Justiça!”


6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, de forma douta e documentada, entenderia, em síntese, que o recurso não será de rejeitar pela eventual repetição do recurso já feito para a Relação, mas por vários outros motivos, que detidamente disseca, concluindo “pela improcedência do recurso no tocante à questão (sobrante) da espécie e medida concreta da pena conjunta, que entende que deve ser confirmada”.

7. Foi cumprido o disposto no art. 417, n.º 2 do CPP, sem que tenha havido manifestação da recorrente.

8. Tal é a Fundamentação do Acórdão recorrido:

1. Delimitação do objecto do recurso

Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.

In casu, de acordo com as suas conclusões, as questões colocadas pela arguida prendem-se, em primeiro lugar, com a matéria de facto, afirmando que a mesma foi erradamente julgada, tendo sido violado o preceituado no art. 138.º, n.º 2, do CPP bem como os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, e pugnando pela sua absolvição dos crimes de abuso sexual de crianças e de coacção sexual.

Considera, por outro lado, que as penas parcelares aplicadas pela prática dos crimes de violência doméstica são manifestamente exageradas, devendo ser fixadas em ponto próximo do seu mínimo.


*


2. Da decisão recorrida

Previamente à apreciação das questões suscitadas, vejamos qual a fundamentação de facto que consta do acórdão recorrido.

«1.1. Factos provados

Consideram-se demonstrados, com relevo para a decisão da causa, os factos seguintes:

1. BB é filha dos arguidos DD e de AA e nasceu em …..1993.

2. BB residiu com a avó desde bébé até aos 10 anos de idade.

3. A partir de tal idade passou a viver com os progenitores, ora arguidos.

4. Por motivos não concretamente apurados, sobretudo após BB ter completado os 11 anos de idade e até data indeterminada depois de ter completado 14 anos, os arguidos, por várias vezes, castigaram a ofendida, nos termos que em seguida se concretizam.

5. Assim, nesse período, a arguida obrigou a ofendida BB a fazer várias tarefas domésticas, nomeadamente a limpeza da casa e, com uma periodicidade quase diária, desferiu bofetadas na face, pancadas na cabeça com uso de uma vassoura e murros na ofendida, nomeadamente a pretexto de as tarefas atribuídas não terem sido bem realizadas.

6. Como forma de castigo, quando a ofendida BB tinha entre 12 a 13 anos, a arguida, mais do que uma vez, prendeu molas de roupa nos mamilos da mesma.

7. Durante o período referido em 4., a arguida obrigou BB a comer sopa estragada, várias vezes, sendo que, certa vez, nessa sequência, a ofendida vomitou e a arguida lhe esfregou o conteúdo do vómito na cara.

8. Quando a ofendida BB tinha 13 anos de idade, a arguida obrigou-a, certa vez, a ingerir detergente, afirmando que esta devia morrer.

9. Quando a ofendida BB tinha entre 13 e 14 anos, a arguida forçou-a a comer os dejectos da arguida.

10. Por motivos não apurados, quando a ofendida BB tinha 13 anos de idade, a arguida afirmou, perante vários familiares, que a mesma tinha mantido relações sexuais com o irmão.

No contexto dessa afirmação, menos de dois meses antes de a ofendida BB completar 14 anos de idade, quando a arguida se encontrava sozinha com a mesma, introduziu o cabo de uma gilette na vagina da mesma ofendida.

11. No mesmo período temporal, com uma dilação inferior a uma semana relativamente aos últimos factos relatados em 10., a arguida introduziu um dedo no ânus da mesma ofendida.

12. A propósito da mesma imputação referida em 10., a arguida apelidou a ofendida BB de “puta” e afirmou que, se a ofendida relatasse os factos ocorridos a terceiros, lhe cortaria o clítoris.

13. No mês de Dezembro em que a ofendida BB iria completar 14 anos de idade, a arguida impôs que esta dormisse na marquise, apenas com roupa interior e uma manta no chão, como castigo, tendo tal situação perdurado cerca de um mês.

14. No dia 14 desse mês de Dezembro, data de aniversário da ofendida BB, a arguida apenas lhe deu, como refeição, sopa fria, tendo obrigado a mesma a permanecer, durante um período não determinado, com as mãos no exterior da janela, sujeita à baixa temperatura que se fazia sentir.

15. A arguida disse, várias vezes, à ofendida BB, na sequência dos castigos que lhe impunha, o seguinte: “se fizeres alguma queixa, levas no focinho”

16. A arguida chegou a dizer a BB, no período referido em 4., que esta deveria cometer suicídio.

17. Em data concretamente indeterminada, após a ofendida BB ter completado 14 anos de idade, a arguida forçou a mesma a fazer-lhe sexo oral, lambendo-lhe a vagina, quando a arguida estava menstruada. Enquanto decorriam tais actos, a arguida, dirigindo-se a BB, disse: “o que o teu pai não me faz, fazes-me tu”.

18. Em datas não concretamente apuradas do período referido em 4., o arguido desferiu pancadas, mais do que uma vez, com um cinto e com um objecto semelhante a uma mangueira, no corpo da ofendida BB, sendo que, numa das vezes, o fez depois de a arguida ter despido a ofendida, provocando-lhe, pelo menos uma vez, hematomas na cara e nas costas.

19. O arguido tinha conhecimento que a sua esposa, no período referido em 4., agredia BB com frequência, vendo as marcas das agressões no corpo da menor, nada tendo feito para o impedir. Teve conhecimento também dos factos descritos em 13., nada fazendo para alterar a situação.

20. Os actos descritos foram praticados pelos arguidos em datas não concretizadas, no interior da casa de morada de família.

21. Quando já tinha 14 anos, BB foi acolhida em instituição, tendo aí permanecido até aos 18 anos de idade, sendo que ia a casa dos arguidos passar os fins-de-semana, férias e épocas festivas.

22. Durante o período referido em 21., algumas vezes, a arguida desferiu pancadas no corpo da ofendida BB.

23. CC é filha dos arguidos DD e de AA e nasceu em ……1991.

24. CC viveu com os avós maternos até cerca dos 12 anos de idade, sendo que, após, passou a residir com os arguidos.

25. Por motivos não concretamente apurados, em datas não aclaradas, mas que se situaram após CC ter completado os 12 anos de idade e até aos 18 anos de idade, os arguidos, por várias vezes, castigaram a mesma ofendida, do modo que a seguir se concretiza.

26. A arguida atribuía várias tarefas domésticas à ofendida CC, sendo que era esta juntamente com a irmã BB que, durante o período em que residiam com os progenitores, asseguravam praticamente todo o serviço doméstico.

27. Nesse contexto, sobretudo a pretexto de as tarefas não se encontrarem bem realizadas, a arguida, em datas não apuradas, no interior da casa de família, quando a ofendida CC tinha entre 12 e 13 anos de idade, várias vezes por semana, desferia bofetadas na cara da mesma ofendida, murros e pancadas no corpo, usando, para tal, as mãos, um cinto ou outros objectos.

28. No período compreendido em 25., igualmente no interior da casa de morada de família, a arguida arrastou, por várias vezes, CC pelos cabelos.

29. Em data não apurada, quando a ofendida CC tinha 12 anos, o director da escola que a mesma frequentava telefonou à arguida, devido às lesões que CC apresentava.

30. Em retaliação, quando CC regressou a casa, vinda da escola, a arguida ordenou-lhe que se ajoelhasse à sua frente.

31. Depois, a arguida desferiu um pontapé com o pé que tinha engessado, em CC, que caiu para trás com o impacto.

32. De seguida, a arguida pisou CC com o pé engessado e apertou o pescoço desta.

33. Quando CC tinha 16 anos, iniciou uma actividade laboral, por imposição da arguida, sendo que o dinheiro que auferia era entregue à arguida, que usufruía do mesmo.

34. Não obstante a ofendida CC ser obrigada a confeccionar as refeições para o arguido, seu pai, por imposição da arguida, esta última não permitia que as ofendidas BB e CC partilhassem tais refeições, apenas as deixando comer restos de outras refeições já existentes no frigorífico, nomeadamente alimentos com validade expirada, sopa fria e azeda, controlando a quantidade de alimentos que ingeriam, nomeadamente leite.

35. No período referido em 25., o arguido, por mais de uma vez, também desferiu pancadas no corpo de CC, nomeadamente utilizando um objecto semelhante a uma mangueira.

36. O arguido tinha conhecimento que a sua esposa, no período referido em 25., agredia a ofendida CC com frequência, vendo as marcas das agressões no corpo da menor, nada tendo feito para o impedir.

Igualmente tinha conhecimento dos factos descritos em 34., nada tendo feito para fazer cessar tal situação.

37. CC abandonou a casa dos arguidos quando completou 18 anos de idade.

38. Os factos descritos ocorreram em datas não concretizadas, no interior da casa de morada de família.

39. Como consequência directa e necessária da conduta dos arguidos, as ofendidas BB e CC sofreram lesões e dores.

40. A arguida actuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, com a intenção de afectar as ofendidas na sua saúde física e psíquica, o que conseguiu.

41. A arguida actuou com o propósito de manter o clima de terror no lar e, dessa forma, constranger as ofendidas a suportar os seus actos e afirmações, de forma a atormentá-las sem qualquer motivo aparente, provocando, nas mesmas, um mal estar psicológico de medo e inquietação constante.

42. O arguido, actuando do modo descrito em 18. e 35., agiu de forma livre, deliberada e consciente, querendo afectar as ofendidas na sua saúde física e psíquica.

Mais sabia o arguido que as menores, devido à idade e ao laço de parentesco que as unia aos progenitores, não eram capazes de se defender.

Aceitou o arguido, como resultado necessário da sua conduta omissiva, nos termos descritos em 19. e 36., que as menores fossem afectadas na sua saúde física e psíquica e que vivessem em permanente tensão e receio pela sua vida e integridade física.

43. Ambos os arguidos, progenitores das ofendidas, conheciam a idade das mesmas, quando ocorreram os factos descritos.

44. Bem sabiam os arguidos que os castigos descritos não se encontram compreendidos no dever de correcção dos progenitores para com os seus filhos.

45. Tinha conhecimento a arguida que, mercê dos comportamentos acima descritos, as menores viveram em permanente tensão e receio pela sua vida e integridade física.

46. Com os comportamentos acima descritas, os arguidos revelaram crueldade, egoísmo e uma profunda insensibilidade para os valores pessoais protegidos pelo direito, bem sabendo que as ofendidas, devido à sua idade, ao laço de parentesco que os unia, e ao facto de coabitarem com os arguidos, não eram capazes de se defender e que sobre eles impendia o dever de garantirem a segurança das mesmas.

47. Agiu, ainda, a arguida AA, nos termos descritos em 10., 11. e 17., com intenção de satisfazer os seus intuitos libidinosos.

48. Praticando os factos descritos em 10. e 11., bem sabia a arguida que BB, em razão da sua idade, não tinha a capacidade e o discernimento necessários a uma livre decisão, e que aqueles actos sexuais prejudicavam o normal desenvolvimento da mesma ofendida.

Igualmente sabia, praticando a conduta descrita em 17., que o clima de terror que incutia à menor BB, por causa dos maus tratos a que a mesma a sujeitava, e a sua dependência relativamente à arguida – decorrente da idade, do laço familiar e da coabitação - eram adequados a constranger a mesma ofendida à prática do acto sexual pretendido.

49. Mais sabia a arguida AA que, com as suas descritas condutas de cariz sexual, provocava em BB lesões físicas e psíquicas, resultado que igualmente quis atingir.

50. Os arguidos sabiam que as condutas descritas, que assumiram, eram proibidas e punidas por lei.

51. Nada consta dos certificados de registo criminal dos arguidos.

52. O processo de socialização de AA decorreu num contexto familiar constituído pelos progenitores e quatro filhos, sendo a arguida a mais velha. A família residia em ..., uma zona de … associada na altura a várias problemáticas sociais, como a delinquência, toxicodependência e carência económica.

53. O ambiente familiar era marcado essencialmente pela postura controladora da progenitora, que incentivava o progenitor a aplicar castigos físicos à arguida e aos irmãos perante a transgressão.

54. A arguida manteve, com a progenitora, uma relação tensa, de conflituosidade, tendo assumido o pai como figura de referência, não obstante alguns episódios de violência perpetrados pelo mesmo.

55. O contexto económico da família era equilibrado, sustentado pelo produto do trabalho dos progenitores, que exploravam um estabelecimento comercial (…../…..), situado na área de residência.

56. Estudou até ao 6.º ano de escolaridade e, após, iniciou actividade laboral, tendo trabalhado como ……  e como ……

57. Aos 17 anos casou com o arguido, ficando o casal a viver com os progenitores da arguida, situação que cessou por conflitos favorecidos pela problemática de toxicodependência do arguido.

58. Aos 19 anos, foi viver para ... com o arguido, ficando o filho do casal a viver com os avós maternos.

59. Em ..., a arguida laborou essencialmente em trabalhos ….. e nas…….

60. AA foi consumidora de estupefacientes (heroína e cocaína), hábito que adquiriu já adulta, quando se encontrava a viver em ... com o arguido, seu cônjuge, também toxicodependente.

61. Em 1999, quando o casal já vivia na rua, em condições muito deficientes, decidiu procurar ajuda, tendo integrado a comunidade terapêutica “...”, onde ambos os arguidos estiveram institucionalizados durante um ano.

62. O casal teve mais três filhas, que foram entregues aos avós maternos.

63. Em 2001, de regresso a Portugal, passou por várias colocações, nomeadamente na área …, sendo que, desde há 14 anos, trabalha como … com … na “sociedade …..” e “associação …”.

64. Entre 2001 e 2014, ambos os arguidos foram acompanhados pela ET ..., integrando o programa terapêutico com cloridrato de metadona, demonstrando motivação e empenhamento e tendo terminado o programa em 2014, altura em que ambos tiveram alta clínica no âmbito da sua problemática aditiva.

65. As três filhas do casal passaram a residir com os progenitores, após o regresso destes a Portugal, mantendo-se apenas o filho mais velho a residir com a avó.

Entretanto, nasceu mais uma filha do casal.

66. Neste momento, o casal reside apenas com a filha mais nova, ainda menor.

67. O arguido DD teve um processo de socialização num contexto familiar numeroso (progenitores e três irmãos mais novos do arguido, avós maternos e tios, totalizando 15 elementos), inserido numa zona ….. (...) conotada com problemáticas sociais (delinquência, toxicodependência, carência económica).

68. Posteriormente, os progenitores acabaram por se autonomizar para ..., mas o arguido permaneceu no agregado dos avós maternos, por frequentar a escola naquele local, tendo aí o seu círculo de amigos.

69. O arguido não foi alvo de uma supervisão parental adequada, verificando-se uma autonomia precoce, mas disfuncional, que se reflectiu no elevando nível de absentismo e baixo rendimento escolar, e no abandono dos estudos aos 13 anos, apenas com o 4º. ano de escolaridade concluído.

70. Aos 13 anos, começou a trabalhar num …, aprendendo a profissão ……

71. O arguido iniciou o consumo de estupefacientes, prática que se agravou a partir dos 18 anos, passando a consumir heroína e cocaína.

72. Não tendo conseguido concluir com sucesso uma primeira tentativa de desintoxicação e para fugir à pressão familiar para abandonar a adição, foi viver para ... com a arguida, nos termos já descritos.

73. Neste momento, o arguido trabalha como … no …, auferindo um rendimento mensal variável, entre os 600 e 700 euros.

74. A arguida aufere um rendimento mensal líquido de cerca de 629€, suportando as prestações de dois empréstimos, no valor mensal de 145 e 188 euros.

75. O casal vive em casa própria, pagando uma prestação mensal ao Banco de cerca de 235 euros.


*


1.2. Não se provou, com relevância:

- a ocorrência de outras condutas dos arguidos, além das dadas como assentes.


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1.3. Motivação

O Tribunal baseou-se, para a prova dos factos dados como assentes, sobretudo nas declarações das ofendidas BB e CC, que relataram a sua vivência com os arguidos, com espontaneidade, num discurso visivelmente comovido e vivenciado, demonstrando sofrimento na recordação dos factos de que foram vítimas.

As suas declarações lograram obter credibilidade, porquanto foram coerentes e conjugadamente concordantes.

Ambas explicaram as razões que as levaram a contar o martírio que sofreram, enquanto menores, embora com dilação relativamente à respectiva ocorrência, explicando que pretendiam evitar que a sobrinha fosse entregue aos cuidados dos arguidos e pudesse vir a experimentar o mesmo sofrimento. Foi perante esse perigo que decidiram narrar os maus tratos que lhes foram infligidos.

Apesar da dificuldade em localizarem no tempo os comportamentos agressivos de que foram vítimas, as ofendidas conseguiram, de forma satisfatória, reconstituir a cadeia temporal dos acontecimentos, reportando-os às suas idades aproximadas e contextualizando grande parte dos eventos.

Os tios das ofendidas, EE e FF, com os seus depoimentos, credibilizaram as declarações das ofendidas, nos limites das suas razões de ciência.

Na verdade, EE explicou que, das várias vezes que ficou com as ofendidas, verificou que as mesmas se mostravam ansiosas, comendo às escondidas, e demonstrando pânico perante a notícia do regresso a casa dos progenitores.

Igualmente FF explicou que a arguida era agressiva com as ofendidas, dirigindo-se às mesmas em termos ofensivos, e incumbindo-as de tarefas domésticas desadequadas para a idade, sujeitando-as a restrições alimentares injustificadas.

Os arguidos assumiram uma postura desculpabilizante, tendo a arguida apenas assumido, como castigos físicos, palmadas na BB, por se portar mal, e admitido que a obrigou a dormir na varanda coberta durante um ou dois dias. Quanto ao arguido, igualmente assumiu ter dado palmadas à BB, referindo que, mal se apercebeu que a mesma se encontrava a dormir na varanda coberta, a levou para a cama, fazendo cessar tal situação. Pretendeu convencer o Tribunal que não sabia de agressões infligidas pela esposa, porque se encontrava fora das 6h00 às 21h00, trabalhando.

A postura compreensivelmente desculpabilizante dos arguidos não logrou credibilidade, face à restante prova já analisada, sendo que, não obstante resultar, dos depoimentos das ofendidas, que a arguida agredia as mesmas sobretudo na ausência do arguido, igualmente resulta que, frequentemente, as mesmas ostentavam marcas das agressões, nomeadamente na cara, que não poderiam deixar de ser visualizadas pelo arguido e, pela sua frequência, associadas a agressões perpetradas pela esposa, já que mais ninguém coabitava com o agregado familiar. Refira-se, aliás, que a ofendida BB afirmou que o pai via as marcas das agressões ostentadas pela mesma e pela irmã CC e não dizia nada, afastando-se, comportamento que demonstra que o arguido não teria dúvidas sobre a autoria das agressões, optando por não intervir.

Igualmente resulta das regras de experiência comum que as restrições alimentares impostas às menores não poderiam deixar de ser do conhecimento do arguido, uma vez que o mesmo residia na mesma habitação e convivia com as ofendidas. Note-se, aliás, que outros familiares, nomeadamente FF, que tinha menor grau de convivência com as ofendidas, se aperceberam de restrições alimentares, razão por que estas não poderiam deixar de ser perceptíveis para o arguido, com maior completude.

Do comportamento objectivo dos arguidos, apurado nos termos supra, conjugado com as regras de experiência comum, inferiram-se os elementos subjectivos dados como assentes.

Foi ainda valorado o relatório social relativo a cada um dos arguidos, conjugado com as declarações dos mesmos, bem como o teor dos respectivos certificados de registo criminal.

Mais relevou o teor dos cartões de cidadãos das ofendidas juntos aos autos, bem como o assento de casamento dos arguidos.

Quanto aos factos não provados, não foi produzida prova positiva.»


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3. Da análise dos fundamentos do recurso

Como é sabido, e resulta do disposto nos arts. 368.º e 369.º, ex vi art. 424.º, n.º 2, todos do CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem o objecto do recurso pela seguinte ordem:

Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão.

Seguidamente das que a este respeitem, começando pelas atinentes à matéria de facto e, dentro destas, pela impugnação alargada, se tiver sido suscitada e, depois, dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP.

Por fim, das questões relativas à matéria de direito.

Será, pois, de acordo com estas regras de precedência lógica que serão apreciadas as questões suscitadas.


*


Alega a recorrente que determinados pontos da matéria de facto dada como provada na decisão recorrida foram incorrectamente julgados, tendo sido violado o preceituado no art. 138.º, n.º 2, do CPP, bem como os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

E, após tecer considerações sobre o conteúdo das suas próprias declarações e do depoimento de uma das testemunhas, conclui que a prova é insuficiente para dar como provados os factos que impugna, e que deveria ter sido absolvida dos crimes de abuso sexual de crianças e de coacção sexual pelos quais vem condenada.

No que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, cumpre, antes de mais, referir:

Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.

No primeiro caso, os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.

De acordo com este normativo, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar:

- os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

- as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

- as provas que devem ser renovadas;

A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação individualizada dos factos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.

Por seu turno, a especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico de meio de prova ou de obtenção da prova, com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida.

Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. art. 430.º do CP).

E o n.º 4 do art. 412.º estabelece que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», acrescentando o seu n.º 6 que «no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.»

Como se lê no Ac. do STJ de 12-06-2008, Proc. n.º 4375/07 - 3.ª[1], esta possibilidade de sindicância da matéria de facto sofre quatro tipos de limitações:

«- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;

- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;

- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;

- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.»


No caso, a recorrente indica – na motivação e nas subsequentes conclusões – os pontos de facto da decisão recorrida que, em seu entender, foram mal julgados (os pontos 6 a 16 da matéria de facto provada), e refere os elementos que, também na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida, a saber, as suas declarações e o depoimento da testemunha BB, aludindo a partes dessas declarações e depoimento e concretizando a sua localização nos suportes digitais da gravação da audiência de julgamento.

Irá, assim, este Tribunal conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Mas, como com clareza se explica no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-03-2014[2], «O recurso com base no disposto no art. 431º do CPP poderá ter como fundamento:

- a atribuição, pelo tribunal recorrido, aos meios de prova convocados como suporte da decisão, de conteúdo diverso daquele que efectivamente têm ou daquele que foi realmente produzido em audiência; ou

- a violação de critérios legais de valoração e apreciação da prova incorporada nos autos ou produzida oralmente em audiência): - pela valoração de meios de prova ilegais ou nulos; - pela violação de critérios de apreciação da prova vinculada (vg. prova documental e pericial) - pela violação de princípios gerais de apreciação da prova, designadamente o princípio da livre apreciação previsto no art. 127º do CPP e o princípio in dubio pro reo.

A reprodução da gravação dos depoimentos, no tribunal de recurso, como instrumento de garantia/comprovação da genuinidade dos mesmos e da eventual divergência entre o conteúdo material do depoimento prestado em audiência e o pressuposto na decisão recorrida, apenas tem sentido no caso de, segundo a motivação do recurso, a decisão recorrida ter atribuído, aos depoimentos prestados oralmente em audiência, conteúdo/afirmações relevantes, materialmente diversas daquelas que foram efectivamente produzido em audiência. Afinal quando o fundamento do recurso é o de que a testemunha ou o depoente afirmou em audiência “coisa” materialmente diversa daquela que é reportada/valorada como suporte da decisão recorrida e que, como tal, inquinou a decisão, impondo, por isso, a sua correcção pelo tribunal de recurso. Pois que, como instrumento de reprodução, apenas permite corrigir erros de “audição” do tribunal recorrido.

Competindo ao recorrente, em tal situação, especificar as “passagens” que confirmam a apontada desconformidade entre aquilo que foi dito em audiência e aquilo que foi valorado pelo tribunal recorrido como suporte da decisão impugnada.

A gravação (como instrumento de garantia da genuinidade dos depoimentos) nada adiantará quando o fundamento do recurso radica na violação de critérios de valoração – não reproduzidos pela gravação. Pois que, pela sua natureza, a gravação apenas reproduz e comprova o teor dos depoimentos gravados. Nada adiantando para efeito de apreciação da obediência aos critérios (legais) de ponderação/avaliação/valoração da prova - que resultam da lei e dos princípios gerais de direito processual penal.»

É precisamente esse o caso dos autos, em que a recorrente não afirma que o Tribunal não tenha compreendido ou tenha subvertido o teor ou sentido das declarações e depoimento a que alude.

O que põe em questão é a convicção formada pelo Tribunal, com base na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, da qual diverge, limitando-se a tecer considerações sobre a forma como foram valorados os diversos elementos de prova, sustentando que, perante as suas próprias declarações negatórias, aqueles a que o Tribunal atendeu não deveriam ter sido julgados credíveis e suficientes para ter como verificados os factos que impugna.

Impõem-se, assim, antes de mais, algumas considerações no que respeita ao princípio da livre apreciação da prova.

«A liberdade de apreciação da prova é uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a verdade material – de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral, susceptível de motivação e controlo. (…) A livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. (…) Se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal, mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto, capaz de impor-se aos outros»[3].

«Como ensina Figueiredo Dias (in Lições de Direito Processual Penal, 135 e ss.) na formação da convicção haverá que ter em conta o seguinte:

- a recolha de elementos – dados objectivos – sobre a existência ou inexistência dos factos e situações que relevam para a sentença, dá-se com a produção da prova em audiência;

- sobre esses dados recai a apreciação do Tribunal – que é livre, art.º 127.º do Código de Processo Penal – mas não arbitrária, porque motivada e controlável, condicionada pelo princípio da persecução da verdade material;

- a liberdade da convicção, aproxima-se da intimidade, no sentido de que o conhecimento ou apreensão dos factos e dos acontecimentos não é absoluto, mas tem como primeira limitação a capacidade do conhecimento humano, e portanto, como a lei faz reflectir, segundo as regras da experiência humana;

- assim, a convicção assenta na verdade prático-jurídica, mas pessoal, porque assume papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis – como a intuição.

Esta operação intelectual não é uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, e contra a dúvida, nem uma previsão com base na verosimilhança ou probabilidade, mas a conformação intelectual do conhecimento do facto (dado objectivo) com a certeza da verdade alcançada (dados não objectiváveis).

Para a operação intelectual contribuem regras, impostas por lei, como sejam as da experiência a percepção da personalidade do depoente (impondo-se por tal a imediação e a oralidade) a da dúvida inultrapassável (conduzindo ao princípio in dubio pro reo).

A lei impõe princípios instrumentais e princípios estruturais para formar a convicção. O princípio da oralidade, com os seus corolários da imediação e publicidade da audiência, é instrumental relativamente ao modo de assunção das provas, mas com estreita ligação com o dever de investigação da verdade jurídico-prática e com o da liberdade de convicção; com efeito, só a partir da oralidade e imediação pode o juiz perceber os dados não objectiváveis atinentes com a valoração da prova.

A Constituição da República Portuguesa impõe a publicidade da audiência (art.º 206.º) e, consequentemente, o Código Processo Penal pune com a nulidade a falta de publicidade (art.º 321.º); publicidade essa que se estende a todo o processo – a partir da decisão instrutória ou quando a instrução já não possa ser requerida (art.º 86.º), querendo-se que o público assista (art.º 86.º/a); que a comunicação social intervenha com a narração ou reprodução dos actos (art.º 86.º/b)); que se consulte os autos, se obtenha cópias, extractos e certidões (art.º 86.º/c)). Há um controlo comunitário, quer da comunidade jurídica quer da social, para que se dissipem dúvidas quanto à independência e imparcialidade.

A oralidade da audiência, que não significa que não se passem a escrito os autos, mas que os intervenientes estejam fisicamente perante o Tribunal (art.º 96.º do Código de Processo Penal), permite ao Tribunal aperceber-se dos traços do depoimento, denunciadores da isenção, imparcialidade e certeza que se revelam por gestos, comoções e emoções, da voz, p. ex..

A imediação vem definida como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de tal modo que, em conjugação com a oralidade, se obtenha uma percepção própria dos dados que haverão de ser a base da decisão.

É pela imediação, também chamado de princípio subjectivo, que se vincula o juiz à percepção à utilização à valoração e credibilidade da prova.

A censura quanto à forma de formação da convicção do Tribunal não pode consequentemente assentar de forma simplista no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção.

Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão.»[4]


Por outro lado, é um dado assente que a gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite o controlo e a fiscalização, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência, mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão dos outros meios de prova, a oralidade e a imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício permanente do contraditório[5].

Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1.ª instância naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja, quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum, reconduzindo-se assim o problema, na maior parte dos casos, ao da fundamentação de que trata o art. 374.º, n.º 2 do CPP[6].

Exigindo-se a convicção do julgador sobre a prática dos factos da acusação para além da dúvida razoável e radicando o princípio in dubio pro reo na mesma dúvida razoável, este situa-se no âmago da livre apreciação da prova, constituindo como que o “fio da navalha” onde se move a missão de julgar. Convicção “para lá da dúvida razoável” e “dúvida razoável” legitimadora do princípio in dubio pro reo limitam-se e completam-se reciprocamente, obedecendo aos mesmos critérios de legalidade da produção e da valoração da prova de apreciação vinculada e da livre apreciação dos restantes em conformidade com o critério do art. 127.º do CPP, sujeitos ambos à mesma exigência de legalidade da prova e da sua apreciação motivada e crítica, da objectividade, racionalidade e razoabilidade dessa apreciação.

No mesmo sentido podem ver-se diversos autores, designadamente Rodrigues Bastos[7], que refere que ao juiz «…não é permitido julgar só pela impressão que as provas oferecidas pelos litigantes produziram no seu espírito, mas antes se lhe exige que julgue conforme a convicção que aquela prova determinou e cujo carácter racional se expressará na correspondente motivação», Cavaleiro de Ferreira[8], que escreve que «o julgador é livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no direito probatório», e ainda Germano Marques da Silva[9]: «O juízo sobre a valoração da prova faz-se em diversos níveis. Num primeiro dependente da imediação, nele intervindo elementos não racionalmente explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova). Num segundo intervindo as declarações e induções que realiza o julgador a partir de factos probatórios, que hão-de basear-se nas regras da lógica, princípios de experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”».

De entre abundante jurisprudência quanto a tal matéria, quer das Relações quer do Supremo Tribunal de Justiça, cita-se apenas, pela sua particular clareza, o proferido por este último Tribunal em 23-04-2009, no âmbito do Proc. n.º 114/09 - 5.ª[10]: «(…) a avaliação da decisão é a resposta, enquanto remédio jurídico, para incorrecções e ilegalidades concretamente assinaladas. Não um novo apuramento global do acontecido, ou a reapreciação do objecto do processo, porque a garantia do duplo grau de jurisdição, em sede de matéria de facto, nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência, antes visando, apenas, a detecção e correcção de pontuais, concretos, e em regra excepcionais, erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da dita matéria de facto.

Quanto ao julgamento de facto pela Relação, uma coisa é não agradar ao recorrente o resultado da avaliação que se fez da prova, e outra é detectar-se no processo de formação da convicção desse julgador, erros claros de julgamento, incluindo eventuais violações de regras e princípios de direito probatório.

Ora, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no art. 127.º do CPP, ou seja, assenta (fora das excepções relativas a prova legal que não interessam ao caso), na livre convicção do julgador e nas regras da experiência. Por outro lado, também não pode esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá, e o julgamento da Relação não permite. Basta pensar, naquilo que, em matéria de valorização de testemunhos pessoais, deriva de reacções do próprio ou de outros, de hesitações, pausas, gestos, expressões faciais, enfim, das particularidades de todo um evento que é impossível reproduzir.

Serve para dizer, que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado.»

À luz destas considerações analisemos, então, a ponderação conjugada e exame crítico das provas de que resultou a fixação da «verdade histórica» vertida no texto da decisão recorrida, com vista a apurar se, como a recorrente sustenta, ocorreu erro de julgamento[11], ou seja, se foram dados como provados factos dos quais não foi feita prova bastante.

Porque o erro de julgamento se reporta à matéria de facto, o mesmo analisa-se em momento anterior à produção do texto, a fim de verificar se existem ou não os dados objectivos que se apontam na motivação ou se foram violados os princípios para a aquisição desses mesmos dados.

Assim, procedeu-se à audição integral das declarações da recorrente e do arguido DD, e dos depoimentos de todas as testemunhas inquiridas (e não apenas da mencionada pela recorrente), confrontando-os com o acórdão recorrida e a demais prova junta aos autos, quanto aos factos e sua motivação, a fim de analisar as razões de discordância daquela.

De acordo com as suas conclusões, os segmentos factuais que a recorrente considera incorrectamente julgados são os acima transcritos pontos 6 a 16 dos factos provados, que, grosso modo, contêm algumas das condutas consideradas como integradoras do crime de violência doméstica e os comportamentos susceptíveis de preencherem o tipo objectivo dos crimes de abuso sexual de crianças relativamente à ofendida BB.

No corpo da motivação (a fls. 12 v.º) a recorrente afirma que pretende impugnar também os pontos 5, 17, 19, 20, 22, 25, 27, 28 e 30 a 34 da matéria de facto provada.

Sendo certo que no ponto 17 dos factos provados consta a matéria factual adequada a preencher os elementos objectivos do crime de coacção sexual do qual pretende ser absolvida, e no corpo da motivação refere, a propósito, excertos das suas declarações e do depoimento de BB, a ausência de indicação (também) desse ponto nas conclusões só poderá dever-se a lapso de escrita, pelo que não deixaremos de o considerar como impugnado.

Já no que respeita aos pontos 5, 19, 20, 22, 25, 27, 28 e 30 a 34 da matéria de facto provada, para além da mencionada afirmação da sua intenção de os impugnar a recorrente nenhuma outra referência lhes faz, mesmo no corpo da motivação, não indicando qualquer elemento de prova que imponha (ou sequer permita) convicção diversa da firmada pelo tribunal recorrido, pelo que, nesta parte, teremos de concluir que não existe impugnação da matéria de facto, na sua forma mais ampla.

Neste pressuposto, vejamos.


A recorrente afirma, para além do mais, que o Tribunal afastou a sua versão, que explicou «com lógica e coerência», «a coberto de que não tinha credibilidade», e «aceitou a personalidade “de vítima” das ofendidas e que falam a verdade, não valorando factos que evidenciam a experiência relacional desta família», acreditando em «pessoas que inconstantes e que mudam de opinião rapidamente… em menos de 10 minutos», e que «quis explicar que esta participação crime tinha surgido como uma espécie de estratégia para que os Arguidos não pudessem ficar com a sua neta, que esta não pudesse ficar entregue ao seu cuidado» mas lamentavelmente essa explicação foi usada contra ela.

Acrescenta que a inquirição da testemunha BB pela Senhora Juiz Adjunta foi efectuada «de forma contrária às regras legais de inquirição das testemunhas, prejudicando a obtenção do depoimento, tornando-o tudo menos espontâneo, sucumbindo às sugestões submetidas sobre forma de perguntas», e que, por isso, «o depoimento obtido não pode ser considerado livre, espontâneo e verdadeiro», tendo sido violado o preceituado no art. 138.º, n.º 2, do CPP bem como o princípio da presunção de inocência.

A recorrente esgrime a sua discordância, apontando à decisão, na parte que impugna, insuficiências de ponderação, utilizando e valorizando/desvalorizando (partes d)o que diz terem sido as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha a que alude de acordo com a sua própria interpretação ou “leitura” da prova e discordando da maior ou menor credibilidade que o Tribunal lhes atribuiu e das conclusões a que chegou.

Sustenta, em síntese, que os factos que impugna não têm suporte suficiente na prova produzida, uma vez que a sua afirmação pela mencionada testemunha nos moldes em que o foi não é suficiente para os demonstrar, pelo que o Tribunal não deveria tê-los dado como assentes, tendo sido violado o princípio do in dubio pro reo.

Mas, como já referimos, não afirma que o Tribunal tenha compreendido erradamente ou subvertido o teor das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento.

O que sucede é que não aceita que, perante os meios de prova que indica, o Tribunal tenha formado convicção diversa da que é a sua, pretendendo que aquele desvalorize determinados elementos e valorize outros, concretamente que descredibilize as declarações da testemunha BB e os depoimentos das demais testemunhas que parcialmente as corroboraram, e que considerou credíveis e elucidativos, e antes credibilize as suas próprias declarações, de negação dos factos em causa, e consequentemente os dê como não provados, discordando, em suma, da análise global que foi feita desses elementos de prova, à luz das regras da experiência comum.

Ora a prova testemunhal, que continua a ser, fatalmente, no nosso sistema processual penal, considerada a “prova rainha”, é uma prova sobejamente falível, deteriorável pelo decurso do tempo e facilmente contaminada pelas demais circunstâncias que envolvem o modo como cada ser humano estriba a forma de elaborar o seu processo de entendimento da realidade.[12]

Por isso, o Tribunal a quo, ao apreciar a prova (o que tem de fazer de uma forma lógica e racional, sempre segundo as regras da experiência comum), deve fazer uma análise dos elementos disponíveis, de forma conjugada e crítica, nada impedindo que, nessa conjugação, atribua crédito a parte de determinado depoimento mas já não estribe a sua convicção noutra parte do mesmo.

Por outro lado, também nada obsta a que a convicção do Tribunal se funde num único depoimento, desde que o mesmo ofereça credibilidade bastante.

Como é evidente, não é pelo facto de o arguido negar determinado facto e não haver testemunhas do sucedido, para além da própria vítima, que esse facto deve ter-se por indemonstrado, pois que, não sendo o Tribunal um receptáculo acrítico de declarações e depoimentos, tudo depende da credibilidade que as diversas declarações lhe merecem e da sua conjugação com outros elementos de prova que no caso existam.

De igual modo, não é por determinada versão ser sustentada por mais de uma pessoa que ela oferece necessariamente mais credibilidade do que uma outra, mesmo que “solitária”.

Nas sábias palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»[13], não vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio testis unus, testis nullus.

No caso em apreço, na fundamentação de fato do acórdão verteu-se, de forma bastante, a forma como o Tribunal chegou a determinadas conclusões sobre os factos em causa nos autos, à luz da avaliação de um homem médio, ou seja, de acordo com as regras da racionalidade e da experiência comum, permitindo concluir também que não houve uma apreciação e interpretação dos meios de prova que possa ser tida como ilógica ou arbitrária, efectuada à margem dessa exigível análise racional ou das regras da experiência.

Como se constata pela leitura dessa fundamentação, o Tribunal fez referência, para além do teor da documentação junta aos autos (designadamente as cópias do assento de casamento dos arguidos, os relatórios sociais e os certificados de registo criminal juntos aos autos), às declarações dos arguidos (que negaram a maior parte dos factos que lhes vinham imputados) e das testemunhas BB e CC (as ofendidas, que confirmaram os factos descritos na acusação), EE e FF (irmãos da arguida e, consequentemente, tios das ofendidas, com quem estas privavam), explicando em que medida foram ou não valorados e por que motivos lhe mereceram, ou não, credibilidade.

A convicção do Tribunal está, pois, explicada, de forma racional e motivada e formou-se, importa frisá-lo, para lá de qualquer dúvida fundada em razões adequadas.

É que se a prova tem como função a demonstração da realidade dos factos (art. 341.º, n.º 1, C. Civil) ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto, uma certeza absoluta, lógico-matemática, bastando que ela permita alcançar «um grau de certeza que as pessoas mais exigentes reclamariam para dar como verificado um certo facto» ou que permita afastar toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida mas a dúvida fundada em razões adequadas.

Como se reafirma no acórdão do STJ, proferido em 23-11-2017 no Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5[14], «Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».

E, como é sabido – apesar de não ser o caso – não é decisivo para se poder concluir pela realidade dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que haja provas directas do seu cometimento pelo arguido, designadamente que alguém tenha vindo relatar em audiência que o viu a praticá-los ou que o próprio arguido os assuma expressamente.

Condição necessária, mas também suficiente, é que os factos demonstrados pelas provas produzidas, na sua globalidade, inculquem a certeza relativa, dentro do que é lógico e normal, de que os factos se passaram da forma ali narrada.

Ouvida a prova gravada e analisados os demais elementos probatórios juntos aos autos, há que reconhecer, antes de mais, que a explanação pelo Tribunal recorrido, na fundamentação da sua convicção, do que resultou desses elementos tem correspondência com o respectivo conteúdo.

E da audição e avaliação conjugada desses mesmos dados conclui este Tribunal, sem qualquer reserva – como concluiu o Tribunal a quo – pela prova cabal da factualidade que foi dada como assente, não oferecendo a sua análise razões para divergir da convicção formada pelo Tribunal recorrido.

Pese embora as críticas que a recorrente alinha, com base na sua própria interpretação da prova, aludindo às suas próprias declarações e a excertos do depoimento da testemunha BB mas “esquecendo” outros excertos e outras testemunhas, ficaram claramente demonstrados os factos que pretende pôr em causa, pois que os mesmos decorrem inequivocamente da apreciação conjugada e crítica dos diversos elementos de prova, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, como vem devidamente explicado na fundamentação do acórdão recorrido, em moldes que merecem a nossa concordância e que dispensam, por isso, repetições.

Assim, e atentando apenas nas objecções vertidas na motivação de recurso que possam justificar que algo mais se acrescente a essa fundamentação, diremos em primeiro lugar que não assiste razão à recorrente quando se insurge contra o teor dos pontos 6 a 17 da matéria de facto provada.

Importará, antes de mais, ter presente que, estando em causa crimes de violência doméstica, de abuso sexual de crianças e de coacção sexual, em que, em regra, por força da sua própria natureza, os factos têm lugar longe de olhares alheios aos directamente neles envolvidos, a prova directa da sua verificação, para além do(a) arguido(a) e da vítima, normalmente é escassa ou mesmo inexistente.

Daí que assuma especial relevância o relatado pelo(a) queixoso(a), desde que não haja motivos para pôr em causa a sua credibilidade e o mesmo seja conforme às regras da experiência e do senso comum, pois só nessas condições poderá enformar a convicção do Tribunal.

No presente caso, embora a ora recorrente tenha negado a quase totalidade dos factos imputados (admitindo apenas, no que ora importa, alguns dos integradores do crime de violência doméstica relativamente à ofendida BB), esta última prestou depoimento em sentido conforme ao que constava no libelo acusatório, explicando em pormenor as circunstâncias em que os diversos factos ocorreram.

Nesse longo depoimento, rico em detalhes, tornou-se perfeitamente perceptível que a ofendida BB não trazia consigo um “guião”, tendo omitido, num relato inicial mais genérico, alguns dos factos narrados na acusação, que, mais adiante, numa narrativa mais detalhada e contextualizada, foi referindo.

Nesse relato, que inicialmente se pretendeu que fosse cronológico, foram irrompendo, num tom emocionado e quase gritado (que o Tribunal por mais de uma vez se viu na necessidade de interromper para que a ofendida se acalmasse), referências a outras situações de que se ia recordando (não podendo olvidar-se que decorreram mais de dez anos sobre o termo dos factos), sendo com a tentativa de, numa segunda abordagem do sucedido, situar no tempo e no espaço e contextualizar as diversas ocorrências que se prendem as questões colocadas pelo colectivo, designadamente pela senhora Juiz Adjunta, sem que nelas se vislumbre qualquer incorrecção ou sugestão, em suma, qualquer susceptibilidade de tolher a espontaneidade e genuinidade do depoimento que, de resto, foram manifestas.

Não se detecta, assim, a imputada violação do preceitado no art. 138.º, n.º 2, do CPP.

A ofendida BB descreveu, para além do mais, os termos em que se desenrolou a sua vivência (e a da sua irmã CC) com os arguidos no período a que se reporta a acusação, recordando, aos poucos, de forma circunstanciada e contextualizada, as agressões físicas e sexuais de que foi vítima e as palavras que lhe foram dirigidas nas circunstâncias de tempo e lugar aí referidas, revelando uma postura credível e verosímil, não deixando de admitir que por vezes tinha comportamentos de rebeldia e de fuga de casa dos pais (normalmente para casa da avó, com que tinha morado até aos dez anos de idade).

E questionada sobre o motivo pelo qual só vários anos mais tarde se decidiu a denunciar os factos agora em apreço explicou que após o nascimento da sua sobrinha GG, filha da irmã HH, porque esta não tinha condições para ficar com a bebé a assistente social falou-lhe na possibilidade de os seus pais ficarem com a guarda daquela, ao que respondeu que não seria uma boa decisão devido aos maus-tratos que havia sofrido por parte daqueles, tendo então relatado os factos àquela técnica e depois conversado com a sua irmã CC, decidindo ambas que teriam de denunciar os actos de que haviam sido vítimas para evitar que a sobrinha fosse entregue aos avós.

A propósito, caberá referir que apesar de a arguida afirmar na sua motivação de recurso que em audiência de julgamento quis explicar que a denúncia surgiu «como uma espécie de estratégia para que os Arguidos não pudessem ficar com a sua neta» tal não corresponde à verdade, pois que o que então afirmou foi exactamente o oposto: que quando a neta nasceu as ora ofendidas foram a sua casa tentar convencê-la a ficar com a guarda da neta, tendo declinado por não ter condições para tal, sendo a partir daí que cessaram totalmente os contactos com as ofendidas e foram apresentadas as queixas.

Tratando-se de, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, formular um concreto juízo de avaliação das declarações prestadas por determinada pessoa que, apesar de ser a queixosa, não se constituiu assistente, não formulou pedido de indemnização civil e está sujeita ao dever de verdade, por confronto com a singela negação quem não está sujeito a tal dever, podendo livremente declarar o que entender ou até nada dizer, a verdade é que, nesta matéria, a análise conjugada e crítica da prova não nos permite divergir da convicção firmada pelo Tribunal recorrido, pois que não se vislumbra motivo para duvidar da sinceridade das declarações da ofendida BB e pôr em causa a veracidade dos factos por si relatados, que resultariam demonstrados ainda que nenhuma outra testemunha os pudesse comprovar.

Pois, conforme já referimos, nada obsta a que o Tribunal funde a sua convicção num único depoimento, desde que o mesmo se revista de credibilidade, como no caso sucede.

De todo o modo, e como vem explicado na fundamentação da convicção, as declarações desta queixosa, para além da credibilidade que em si mesmas mereceram, foram ainda parcialmente corroboradas pelos depoimentos das testemunhas CC (com conhecimento directo de muitos dos factos e ela própria também ofendida), EE e FF (que, embora não tendo presenciado as condutas em apreço, se aperceberam de determinadas reacções das ofendidas, compatíveis com algumas das vivências por elas narradas), e não foram infirmadas por outros elementos de prova que se possam ter por credíveis e isentos.

Em suma, da audição integral das declarações e depoimentos gravados – que são por demais eloquentes e que ainda melhor se alcançam na sua audição (pois que a transcrição não conseguiria espelhar com exactidão), e da sua análise conjugada com a demais prova junta aos autos, e pese embora a ausência de imediação, não temos dúvidas em concluir que a “leitura” dos elementos de prova efectuada pelo Tribunal recorrido não se mostra incongruente ou violadora das regras da experiência comum e da normalidade da vida e das coisas, não colhendo as objecções que a recorrente lhe dirige, pois que nada impõe que o Tribunal confira credibilidade às declarações do arguido – que, como é sabido, não está sujeito ao dever de verdade – para infirmar o sentido em que aponta a análise global e crítica da prova, escorada, designadamente, nos depoimentos de testemunhas com conhecimento directo dos factos e que foram consideradas credíveis.

O Tribunal justificou a sua opção, alicerçando a sua convicção numa interpretação plausível das provas produzidas e segundo uma lógica que faz sentido, e que aqui este Tribunal subscreve sem qualquer hesitação, pois que nada nesses elementos de prova se vislumbra que imponha (ou sequer permita) decisão diversa da que foi tomada relativamente à factualidade que foi dada como provada ou sequer a dúvida razoável susceptível de desencadear a aplicação do princípio in dubio pro reo.


Na verdade, contrariamente ao que a recorrente afirma, não se vislumbra que o Tribunal tenha violado o princípio da presunção de inocência, consagrado no art. 32.º, n.º 2, da CRP, ou o princípio in dubio pro reo, sua emanação processual.

«O princípio da presunção de inocência é antes de mais um princípio natural, lógico, de prova. Com efeito, enquanto não for demonstrada, provada, a culpabilidade do arguido não é admissível a sua condenação. Por isso que o princípio da presunção de inocência seja identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, e que efectivamente o abranja, no sentido de que um non liquet na questão da prova deva ser sempre valorado a favor do arguido»[15].

Acerca do princípio in dubio pro reo, diz Maia Gonçalves[16]: «este princípio estabelece que, na decisão de factos incertos, a dúvida favorece o réu. É um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário».

E o Prof. Figueiredo Dias refere que «um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido»[17].

Relativamente à violação do princípio in dubio pro reo, importa acentuar que, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, a mesma só ocorre quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção[18].

Como expressivamente se afirma no Acórdão do STJ de 14-04-2011[19], «A dúvida é a dúvida que o tribunal teve, não a dúvida que o recorrente acha que, se o tribunal não teve, deveria ter tido.»

Analisado o texto da decisão recorrida, designadamente a passagem relativa à fundamentação da convicção do Tribunal, nele não perpassa qualquer dúvida sobre a matéria de facto que foi dada como assente.

E, por outro lado, da audição da prova gravada conclui-se, como já acima referimos, que o Tribunal recorrido ponderou cuidadosamente todos os elementos de prova disponíveis, de forma conjugada e crítica, no exercício do poder/dever que a lei lhe confere – de livre apreciação da prova, vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório – e que bem andou ao valorar a prova produzida em audiência de julgamento da forma como o fez.

Tendo o Tribunal a quo feito uma correcta avaliação dos meios de prova produzidos, decidindo, e bem, a nosso ver, que a prova produzida era cabal no sentido da verificação dos factos que deu como provados e evidenciado o percurso lógico utilizado para chegar às conclusões que alcançou, não merece tal apreciação qualquer censura nem tem cabimento pretender a recorrente substituir pela sua própria valoração das provas a efectuada pelo julgador, a quem incumbe, de acordo com o estabelecido no art. 127.º do CPP.

Não se detecta, pois, qualquer erro de julgamento, não havendo motivo para alterar a matéria de facto fixada nos pontos acima referenciados, pelo que improcede a impugnação da decisão proferida sobre essa matéria.

Doutro passo, analisado o texto decisório, também nele não vislumbramos qualquer dos vícios a que alude o n.º 2 do art. 410.º do CPP, pois que a decisão se mostra coerente, harmónica, destituída de antagonismos factuais, de factos contrários às regras da experiência comum ou de erro patente para qualquer cidadão, nela inexistindo também qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão, sendo, por outro lado, a fundamentação de facto suficiente para fundar um juízo seguro de direito.

A matéria de facto terá de considerar-se, pois, definitivamente assente nos termos em que o foi pelo Tribunal recorrido.

A recorrente pugna pela sua absolvição dos crimes de abuso sexual de crianças e de coacção sexual por que vem condenada.

Ora, não tendo sua pretensão de ver substancialmente alterada a matéria de facto merecido acolhimento por parte deste Tribunal, a apreciação da correcção da qualificação jurídica terá de fazer-se à luz da factualidade fixada pelo Tribunal a quo.

Perante essa factualidade, e tendo presentes os elementos típicos dos ilícitos pelos quais a recorrente foi condenada, que vêm devidamente analisados na decisão recorrida em termos que merecem a nossa concordância e que, por isso, nos dispensamos de aqui repetir, não oferece quaisquer dúvidas o preenchimento destes.

Todos os elementos típicos dos aludidos crimes de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2, do CP, de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos arts. 171.º, n.º 2, e 177.º, n.º 1, al. a), do CP, e de coacção sexual, p. e p. pelo art. 163.º, n.º 2, do mesmo diploma (na versão introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 04-09) se mostram plasmados na matéria de facto dada como provada, não se verificando qualquer causa de justificação da ilicitude da conduta da recorrente, nem de exclusão da sua culpa.

Não existe, assim, qualquer fundamento para a pretendida absolvição e não merece reparo a qualificação jurídico-penal operada no acórdão condenatório, improcedendo este segmento do recurso.


*


A recorrente questiona a medida concreta das penas de prisão aplicadas, no que se refere aos crimes de violência doméstica «e dos castigos físicos que infligiu às ofendidas na parte em que não as impugnou», afirmando, em síntese, que, não tendo antecedentes criminais e tendo em conta a situação pessoal que atravessava à data da prática dos factos, que decorreram mais de dez anos sobre os mesmos, que mostrou arrependimento e que está profissionalmente integrada, educa uma filha de 11/12 anos e já não tem qualquer contacto com as ofendidas, as mesmas se mostram manifestamente exageradas, desproporcionais e desajustadas, devendo ser fixadas em ponto próximo do seu mínimo.

Vejamos.


Dispõe o art. 40.º do CP que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» (n.º 1), e que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

É, pois, de acordo com as proposições fundamentais de política criminal sobre a função e os fins das penas condensadas nesta norma, que estabelece um modelo de prevenção, que haverá que interpretar e aplicar os critérios de determinação da medida da pena.

Como se escreve no Ac. do STJ de 16-01-2008 (Proc. n.º 4565/07 - 3.ª)[20], «O modelo de prevenção acolhido – porque de protecção de bens jurídicos – estabelece que a pena deve ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva, e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima – limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

Nesta dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente».

Assim, dentro dessa linha de orientação, o Tribunal terá de atender, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 71.º do CP, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele.

Depois de proceder ao enquadramento jurídico-penal das condutas da recorrente e de enunciar os critérios que presidem à escolha e determinação da medida concreta da pena, o Tribunal referiu (transcrição):

«(…)

No tocante à arguida, responde a mesma por dois crimes de violência doméstica, previstos e punidos pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea d) e n.° 2, do Código Penal, na versão introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro.

Cada um dos crimes é punido com uma pena de prisão de dois a cinco anos.

Relativamente ao crime perpetrado contra BB, pondera-se, contra a arguida, o grau de intensidade ofensiva dos comportamentos assumidos, nomeadamente a reiteração e periodicidade, que chegou a ser quase diária, quanto a agressões físicas, quando a ofendida era uma criança. Acresce a diversidade de comportamentos violentos, que incluíam, além das agressões físicas, a sobrecarga de tarefas domésticas, palavras e imputações ofensivas, bem como ameaças e mesmo sugestão de prática de suicídio. Com especial e chocante eloquência, releva o grau de perversidade e o conteúdo vexatório de alguns comportamentos ofensivos, como a sujeição da ofendida a ter molas presas nos mamilos ou a inqualificável sujeição a comer os dejectos da arguida.

O grau de perversidade e a solidez do desígnio criminoso da arguida é ainda revelado pela duração e intensidade do castigo imposto à ofendida de dormir na marquise, sujeita ao frio, em Dezembro, durante período mão inferior a um mês, mesmo durante o dia de aniversário.

No tocante ao crime perpetrado contra a ofendida CC, igualmente se pondera, contra a arguida, o grau de intensidade e a periodicidade das agressões físicas, que, quando a ofendida tinha entre 12 e 13 anos de idade, ocorreram várias vezes por semana e incluíam bofetadas, murros e pancadas com objectos. Especialmente agressivo se apresenta o acto de arrastar a ofendida pelos cabelos. Igualmente se pondera a diversidade de comportamentos ofensivos, que, além das agressões físicas, incluía sobrecarga de tarefas domésticas e a não partilha, com a ofendida, do produto da actividade laboral que lhe foi imposta.

Em relação a ambas as ofendidas, releva também o conteúdo intensamente vexatório relativo ao estado dos alimentos propiciados às mesmas.

A factualidade assente demonstra a criação de um clima continuado de terror, de que foram vítimas indefesas as ofendidas BB e CC.

O grau de violação dos deveres de zelo e protecção que impendiam sobre a arguida, como mãe e adulta cuidadora da menor, é intensíssimo.

A perversidade e censurabilidade expressas demonstram uma personalidade manifestada nos factos que se afasta, de forma flagrante, do que a comunidade espera, correspondendo a uma atitude de egoísmo, frieza, indiferença ou mesmo de prazer perante o sofrimento das filhas, que se apresenta como profundamente rejeitável.

Apesar da ausência de antecedentes criminais da arguida, a intensidade da ilicitude e da culpa são tão elevadas que, pelo crime de violência doméstica perpetrado contra BB, o Tribunal fixa a pena em cinco anos e, no tocante ao crime perpetrado contra CC, menos expressivo em grau de ofensividade, em três anos e oito meses.

Relativamente aos dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 171.°, n.° 2, e 177.°, n.° 1, alínea a), do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, a pena aplicável é de prisão de quatro anos a treze anos e quatro meses.

Contra a arguida, pondera-se que os factos foram praticados num contexto em que a ofendida já se apresentava especialmente vulnerabilizada pelo temor que a vivência com a agressividade da arguida lhe inspirava. A seu favor, apenas milita a ausência de antecedentes criminais.

Assim, por cada um dos crimes, considera-se adequada a fixação da pena em seis anos.

No tocante ao crime de coação sexual, a pena aplicável é de prisão até dois anos.

Contra a arguida, valora-se a circunstância de a mesma se encontrar menstruada na altura dos factos, o que demonstra a especial perversidade ínsita no acto de constranger a ofendida à prática de sexo oral, que implicava, nesse contexto, um particular conteúdo repugnante.

O grau de intensidade da ilicitude, tendo em conta o concreto acto envolvido e as circunstâncias particularmente penosas, e a culpa são tão elevados que o Tribunal considera necessária a fixação da pena em dois anos.

Encontrando-se os crimes praticados em concurso, impõe-se aplicar uma pena única, tendo em consideração, em conjunto, os factos e a personalidade da arguida.

Em cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal, tal pena única tem, como limite máximo, vinte e dois anos e oito meses e, como limite mínimo, a pena de seis anos.

A imagem global dos factos demonstra uma solidez nos desígnios criminosos e um especial desrespeito pela saúde e dignidade das suas filhas menores, bem como um elevado grau de egoísmo e perversidade.

A favor da arguida, apenas se pondera a inexistência de antecedentes criminais e a circunstância de a sua infância ter sido difícil, marcada por uma figura materna dominadora e castigadora, sendo o seu restante percurso de vida ligado à toxicodependência, de que recuperou, mas que indelevelmente marcou o afastamentos em relação às filhas durante os primeiros anos das mesmas. Tal afastamento, porém – acentue-se – deveria ter determinado uma vontade de compensar as menores, o que os factos eloquentemente infirmam.

Tudo ponderado, considera-se adequada a fixação da pena única em treze anos de prisão.

Mais se consigna que, não obstante as alterações legislativas ocorridas, nenhuma das versões subsequentes dos tipos legais em causa conduziu a um desagravamento das penas aplicáveis.

Nestes termos, nenhum dos regimes legais subsequentes se apresenta, em concreto e em bloco, mais favorável, razão por que é aplicável o vigente à data da prática dos factos, introduzido pela Lei 59/2007, de 4 de Setembro, ex vi artigo 2.º, n.º 1, do Código Penal.»

Verifica-se, assim, que, relativamente aos vários ilícitos, o Tribunal recorrido tomou em consideração o grau de ilicitude dos factos, no qual foram tidos em conta o dolo directo com que a arguida actuou, o período de tempo pelo qual perduraram os seus comportamentos ilícitos, a natureza destes, o grau de violação dos deveres que se lhe impunham e os sentimentos manifestados na prática dos crimes.

Foram também sopesadas as exigências de prevenção especial, referindo-se que a arguida não tem antecedentes criminais e, já na ponderação da pena conjunta, também que teve uma infância difícil e um percurso de vida ligado à toxicodependência, de que recuperou mas que gerou o afastamento das filhas durante os primeiros anos destas, que a arguida não procurou compensar, tendo antes enveredado pela prática dos factos aqui em causa.

E, apesar de não virem expressamente mencionadas na decisão recorrida, são sobejamente conhecidas as exigências de prevenção geral, quer no que respeita aos crimes de violência doméstica, que ocorrem diariamente, realidade dramática que, por ser do conhecimento público, desde logo por via da sua divulgação pelos órgãos de comunicação, dispensa ulteriores considerações, quer relativamente aos crimes de natureza sexual contra crianças e adolescentes, dada a preocupante frequência com que vêm ocorrendo e o sentimento de repulsa que suscitam na comunidade.

A arguida alega que «não era uma pessoa completamente normal nos comportamentos pois estava debaixo do efeito da metadona e de outras drogas que tomava para tentar libertar-se dessas dependências sem recair» e que mostrou arrependimento.

Da circunstância de se encontrar em tratamento da sua toxicodependência não resulta, por si só, qualquer relevo atenuativo quanto aos comportamentos demonstrados nos autos, cuja acentuada gravidade não encontra justificação ou sequer explicação numa invocada “falta de paciência” relacionada com as suas condições de saúde (que, segundo decorre da factualidade apurada, não obstavam a que levasse uma vida normal, tendo no período em questão trabalhado e dado à luz mais uma filha).

Quanto ao invocado arrependimento, dir-se-á que «Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir. Revela uma reinserção social, consumada ou prestes a consumar-se, pelo que as exigências de prevenção, na determinação da medida judicial da pena, são de diminuta relevância.»[21]

Por isso, não basta a sua verbalização, sem qualquer tradução em actos concretos, para dele convencer o Tribunal e o mesmo ser dado como assente.

Ora, se é certo que a recorrente verbalizou em audiência de julgamento que «hoje não faria aquilo que fiz», esclarecendo referir-se apenas ao facto de ter posto a ofendida BB a dormir na varanda, é também verdade que, para além de tal comportamento consubstanciar uma ínfima parte dos factos apurados, cuja prática negou na quase totalidade, a recorrente nunca procurou reparar as consequências dos seus actos, sequer apresentando um pedido de desculpas às queixosas, que acabaram por ser institucionalizadas até à sua maioridade e com quem não mantém presentemente qualquer contacto.

Bem se compreende que o Tribunal não tenha considerado credível o seu “arrependimento”, que não constando do elenco dos factos dados como provados, não pode ser tido em consideração na ponderação das necessidades de prevenção especial.

Regista-se a sua integração social e profissional, que, contudo, é de escasso valor no tipo de crimes aqui em causa.

Assim, contrariamente ao que pretende a recorrente, não há qualquer fundamento para fixar as penas no respectivo mínimo legal ou em ponto dele próximo, sob pena de serem postas em causa as finalidades visadas pelo legislador com a sua consagração, devendo as mesmas ser graduadas num plano que promova a consciencialização, por parte da arguida, da necessidade de conformar a sua conduta posterior com a vigência da norma, e se revista do necessário efeito dissuasor de idênticos comportamentos.

Afigura-se-nos, no entanto, que não teve adequado reflexo na medida das penas parcelares a circunstância de os factos se situarem num período de tempo compreendido entre meados do mês de Dezembro de 2005 e 2007/2008, no que respeita à ofendida BB (após esta ofendida, nascida a ……1993, ter completado os 11 anos de idade e até data indeterminada depois de ter completado 14 anos – cf. pontos 1 e 4 da matéria provada), e entre Agosto de 2003 e Agosto de 2009 no que concerne à ofendida CC (após esta ofendida, nascida a …-…-1991, ter completado os 12 anos de idade e até aos 18 anos de idade – cf. pontos 23 e 25 da matéria provada).

O período de tempo entretanto decorrido[22], de mais de dez anos desde a cessação da prática dos factos, comporta um “efeito erosivo” sobre as necessidades de prevenção geral[23] (que o Tribunal recorrido desconsiderou em absoluto, não lhe fazendo qualquer referência), não se justificando, salvo o devido respeito por opinião diversa, que as penas aplicadas sejam fixadas, como algumas delas foram, nos respectivos limites máximos.

Sopesados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, considera-se mais equilibrado, proporcional e ajustado à culpa concreta do agente, fixar em 4 (quatro) anos de prisão e em 3 (três) anos de prisão, respectivamente, as penas impostas à ora recorrente pela prática dos crimes de violência doméstica contra as ofendidas BB e CC; em 5 anos de prisão a pena que lhe foi aplicada pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual de crianças, e em 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão a pena que lhe foi imposta pela prática de um crime de coacção sexual.

Perante esta alteração na medida concreta das penas parcelares fixadas para os crimes em concurso, impõe-se desfazer o cúmulo jurídico efectuado pelo Tribunal recorrido e refazê-lo, agora considerando as novas penas estabelecidas.

Relativamente à pena única aplicada, fornecendo a lei um critério especial de determinação da medida concreta da pena, assente na ponderação da globalidade dos factos e na personalidade do agente – art. 77.º, n.º 1, do CP – esse critério «obriga a especial fundamentação da sentença, menos exigente quando comparado com o dever de fundamentação das sentenças, segundo os art. 374.º, n.º 2, do CPP, e 71.º do CP, no uso de um poder-vinculado do juiz, só assim se acautelando que a pena de concurso “surja como fruto de um acto intuitivo (…) ou puramente mecânico e, portanto, arbitrário” do julgador (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, §§ 420 e 421), funcionando os parâmetros de composição da pena como “guias” do concurso.

O conjunto dos factos fornece a gravidade do ilícito global e, na avaliação da personalidade do agente - enquanto suporte da medida da censura pessoal, exprimindo a desconformação entre o seu desvalor e o valor da personalidade jurídico-penalmente conformada, suposta pela ordem jurídica para o homem médio -, não pode abdicar-se da indagação sobre se o facto do agente fica a dever-se a uma “carreira criminosa”, a uma “autoria em série”, a uma “cadeia em gravidade crescente” ou a mera pluriocasionalidade (cf. op. e loc. cit.), caso em que, na última hipótese, se não justifica uma exacerbação da pena única. De relevar, ainda, ideais de prevenção especial, que demandam a formulação de um juízo sobre a incidência, em forma prospectiva, da ressocialização do agente, ou seja, da sua maior ou menor probabilidade de retorno ao tecido social, sem risco de hostilização»[24].

Nessa indagação, «são factores relevantes: a determinação da dimensão do bem jurídico ofendido e da intensidade da ofensa; se ocorre ou não ligação, conexão ou relação entre os factos em concurso, bem como a indagação da sua natureza, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas; a determinação dos motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados, e de eventuais estados de dependência; a determinação da tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade; na avaliação da personalidade expressa nos factos, a ponderação de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade; a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente»[25].

Contudo, quando a pena única é aplicada, não em sentença/acórdão resultante de conhecimento superveniente do concurso de crimes mas «face, tão-só, às penas parcelares que foram fixadas no próprio processo e no mesmo julgamento, há um menor grau de exigência na diferenciação entre a fundamentação destas e a daquela, pois os factos e a personalidade do agente são os mesmos.

Quando a sentença aprecia um certo número de crimes e lhes aplica penas parcelares que depois são englobadas numa pena única, a escolha das penas parcelares, de acordo com os critérios legais definidos nos arts. 70.º a 72.º do CP, já fornece a visão global necessária para a fixação da pena única nos termos do art. 77.º, n.º 1, e não é tão necessário repetir o que já se disse anteriormente»[26].

À luz deste critério, há que concluir que a fundamentação constante do acórdão recorrido é, neste particular, sintética mas adequada e demonstrativa da devida ponderação dos diversos factores em presença, à excepção do acima assinalado lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos.

De acordo com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (com os limites aí indicados), e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas.

No caso concreto, os limites abstractos da pena única a aplicar à recorrente oscilam agora entre 5 (cinco) anos de prisão, correspondente à pena parcelar mais grave, e 18 (dezoito) anos e 9 (nove) meses de prisão.

Para determinar a pena única, o Supremo Tribunal de Justiça vem seguindo[27] o «método de encontrar, entre aqueles dois limites, um ponto que se obtém pela adição, ao limite mínimo, duma fracção da soma das restantes penas, ponto a partir do qual, para cima ou para baixo, há-de ser calculada a pena, sem esquecer que, para garantir a proporcionalidade das penas, tem de fazer intervir um factor de compressão, que deverá ser tanto maior quanto a pena mais se aproxime do limite máximo de 25 anos.»[28]

Assim, em reavaliação global e conjunta das apuradas circunstâncias relativas aos factos e à personalidade da recorrente, não olvidando as exigências de prevenção geral, de tutela das expectativas comunitárias contra o facto, de dissuasão de potenciais delinquentes, nem as de prevenção especial, que reclamam, pela via da pena, a interiorização da consciência do acto ilícito, em termos de prevenção da reincidência, e levando em conta os critérios orientadores decorrentes da jurisprudência do STJ nesta matéria, considera-se adequado às exigências de prevenção e à culpa concreta da recorrente fixar a pena única em 10 (dez) anos de prisão.

Por todo o exposto, procede apenas parcialmente o recurso.


*”


Sem vistos, dados os constrangimentos decorrentes da situação pandémica em curso, em vigência de estado de emergência.

Cumpre, em conferência, apreciar e decidir (não foi requerida audiência) nos termos do art. 419, n.º 3 do CPP.



II

Fundamentação



1. São muito respeitáveis, plausíveis e até ponderosos os argumentos que levariam a uma rejeição in totum de um recurso, por manifesta improcedência, nos termos das disposições conjugadas dos art.os 414 n.os 2 e 3 e 420, n.º 1 al. a) e 2 do CPP, por repetição, tautologia, ou similitude dos seus termos com os de um prévio recurso pelo mesmo recorrente apresentado (cf. dos Acórdãos deste STJ de 7.10.2007 – Proc. n.º 07P3990 e de 22.10.2008 – Proc. n.º 08P3274).

2. Contudo, crê-se não dever sequer entrar na análise de se o presente é redundante, repetitivo, ou muito semelhante ao já anteriormente interposto, seguindo-se numa tese de ampla recorribilidade (com o limite de razoabilidade do postulado clássico ananké stenai, que leva a estancar o recurso conforme o estabelecido legalmente), e louvando-nos, especificamente, nos arestos que se podem sintetizar pela lição prevalecente neste Supremo Tribunal de Justiça em tal matéria, nos seguintes termos (do Ac. do STJ de 20.6.2018, proferido no Proc. n.º 3343/15.5JAPRT.G1.S2: «A repetição, no recurso para o STJ, da motivação recursória utilizada perante a Relação não tem como consequência a rejeição, pura e simples, do mesmo».

3. É bem sabido que, sem embargo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos).

4. Várias questões são suscitadas ainda neste recurso, as quais não podem sequer ser apreciadas.

Pede-se a alteração de decisão de facto, e mesmo absolvição dos crimes de abuso sexual de crianças e de coação sexual, assim como redução das penas pelos crimes de violência doméstica.

Ora já anteriormente o Tribunal da Relação havia confirmado a decisão de facto e todas as incriminações.

Contudo, alteraria, in mellius, as penas parcelares de todos os crimes em concurso. E cumulando tais penas, do mesmo modo reduziu a pena única, de 13 para 10 anos de prisão.

A insistência da recorrente em alteração da matéria de facto e em absolvições tem de ser vista à luz do permitido e do não permitido pela Lei, como ó óbvio. Assim, além dos arts. 399 do CPP e 432 n.º 1 al. b) do CPP, releva muito especialmente o comando do art. 400 n.º 1 e) do CPP, «não é admissível recurso […] de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos», salvo, neste último caso, se sobre decisão de absolvição da 1.ª Instância e em pena de prisão efectiva (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018, in DR I, de 11.12, que «declara, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro»).

Esta admissibilidade aplica-se separadamente para cada uma das penas parcelares  e para a pena única, e respeita não só à pena em si mesma considerada, como ao conjunto da ação decisória que preside e conduz ao resultado: à condenação (cf. ainda os acórdãos de 11.4.2012, no Proc. 3989/07.5TDLSB.L1.S1, de 25.6.2015, no Proc. 814/12.9JACBR.S1, de 3.6.2015, no Proc. 293/09.8PALGS.E3.S1, e de 6.10.2016, no Proc. 535/13.5JACBR.C1.S1).

Ora, como se sabe, o Acórdão Recorrido confirmou, numa parte, a decisão de 1ª instância – confirmou todos os factos e todas as tipificações, meramente reduzindo a medida de todas as penas parcelares de prisão, as quais fixou em medida que não ultrapassa, para cada crime, os 5 anos (4 anos e 3 anos para os crimes de violência doméstica, 5 anos para cada um dos dois crimes de abuso sexual de crianças e 1 ano e 9 meses para o crime de coação sexual), e reduzindo ainda a pena conjunta, que fixaria em 10 anos de prisão.

Portanto, a Relação não aplicou qualquer pena parcelar de prisão superior a 5 anos, nem transmutou absolvição em condenação que já fora proferida 1ª instância, com base nos mesmos factos e nas mesmas qualificações jurídicas.

Em consequência, a impugnação das penas parcelares não é admissível tendo presentes os art.os 399, 432, n.º 1 al. b) e 400 n.º 1 al. e) do CPP.  Assim cabendo rejeição do recurso interposto nos termos dos art.os 420 n.º 1 al. b) e 414 nºs 2 e 3 do CPP.

Ainda de acordo com o art. 400, n.º 1, al. f) do CPP é inadmissível recurso quanto às penas parcelares, pela ocorrência da dupla conformidade.

Com efeito, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de “acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”.

Ora, a decisão condenatória in mellius integra-se cabalmente nesta situação, como se pode ilustrativamente ver do Ac. deste STJ de 19.9.2019: «II - De acordo com a al. f) do n.º 1 do art. 400.º, do CPP, não é admissível recurso «De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a oito anos». A confirmação ou dupla conforme é perfeita, quando o tribunal de recurso (Relação) mantém a pena e o tipo de crime. Mas verifica se, do mesmo modo, a dupla conforme quando a Relação rejeita o recurso da 1.ª instância ou quando reduz a pena (confirmação in mellius). No caso concreto estamos, por isso, em face da redução da pena perante uma confirmação in mellius. Aplicando o disposto no mencionado arts. 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, verifica-se que o presente recurso do arguido para este STJ é inadmissível, pelo que se rejeita (arts. 414.º, n.º 2 e 3 e 420.º, n.º 1 al. b), ambos do CPP).»

No tocante às penas parcelares, que são todas de prisão, nenhuma ultrapassa os 8 anos e nenhuma foi agravada – pelo contrário, todas foram atenuadas na sequência do recurso. Assim, por via do art. 400 n.º 1 al. f) do CPP, articulado com os art.os 399 e 432 n.º 1 al. b) do CPP, o recurso não é admissível nessa parte.

Não podendo deixar de se concluir pela rejeição do recurso nos termos dos art.os 399, 400 n.º 1 al.as e) e f), 420 n.º 1 al. b) e 414 n.os 2 e 3, todos do CPP, no tocante à comprovação, figuração e imputação de todos os crimes por que a Recorrente foi condenada e à escolha e medida das respetivas penas parcelares.

5. Pese a existência de dupla conformidade, in mellius («I - O requisito da dupla conforme também se verifica, para além dos casos em que o acórdão da Relação confirma integralmente a decisão de 1.ª instância, quando a Relação mantém inalterada a qualificação dos factos, embora reduza a medida da pena ou aplique uma pena menos grave (confirmação in mellius). Acórdão deste STJ de 20.3.2019), sempre haverá que apreciar o recurso da pena única.

6. Nesse sentido, ante a patente factualidade, e a douta argumentação já desenvolvida, como fundamentação do Acórdão recorrido, não cumpre desenvolver excessiva doutrina, nem invocar abundante jurisprudência.

Se é verdade que não haverá casos radicalmente claros (além da obra de Roberto Grau, v.g. Paul Van Den Hoven, Clear Cases: Do they Exist?, in “Revue Internationale de Sémiotique Juridique / International Journal for the Semiotics of Law“, Vol. III, n.º 7, 1990, pp. 55-63), há alguns que parece serem bastante evidentes e não consentir demasiado aparato teórico. Neles fala a dureza da realidade que encerram.

O douto Parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça é também sucinto quando a esta questão.

7. Na sentença da Relação terá pesado, inter alia, o facto de o período de tempo entretanto decorrido (por demora na apresentação de queixa – demora que é, aliás, muito compreensível), de mais de dez anos desde a cessação da prática dos factos, comporta, como nela é dito, um “efeito erosivo” sobre as necessidades de prevenção geral. Esta circunstância, releva para a fixação da pena abaixo dos respetivos limites máximos.

Recorde-se o Acórdão recorrido:

“Sopesados todos os elementos reunidos nos autos, em conformidade com o disposto no art. 71.º, n.º 2, do CP, e tendo em consideração que a medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites supra assinalados, considera-se mais equilibrado, proporcional e ajustado à culpa concreta do agente, fixar em 4 (quatro) anos de prisão e em 3 (três) anos de prisão, respectivamente, as penas impostas à ora recorrente pela prática dos crimes de violência doméstica contra as ofendidas BB e CC; em 5 anos de prisão a pena que lhe foi aplicada pela prática de cada um de dois crimes de abuso sexual de crianças, e em 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão a pena que lhe foi imposta pela prática de um crime de coacção sexual.”

Assim, havia que refazer a pena única, em conformidade.

Balizando o seu raciocínio judicatório nos parâmetros legais conhecidos, refere a Relação, especificamente:

“Contudo, quando a pena única é aplicada, não em sentença/acórdão resultante de conhecimento superveniente do concurso de crimes mas «face, tão-só, às penas parcelares que foram fixadas no próprio processo e no mesmo julgamento, há um menor grau de exigência na diferenciação entre a fundamentação destas e a daquela, pois os factos e a personalidade do agente são os mesmos.

Quando a sentença aprecia um certo número de crimes e lhes aplica penas parcelares que depois são englobadas numa pena única, a escolha das penas parcelares, de acordo com os critérios legais definidos nos arts. 70.º a 72.º do CP, já fornece a visão global necessária para a fixação da pena única nos termos do art. 77.º, n.º 1, e não é tão necessário repetir o que já se disse anteriormente»[29].

À luz deste critério, há que concluir que a fundamentação constante do acórdão recorrido é, neste particular, sintética mas adequada e demonstrativa da devida ponderação dos diversos factores em presença, à excepção do acima assinalado lapso de tempo decorrido desde a prática dos factos.”

Conclui o Acórdão recorrido com um feixe de razões que concorrem para a conclusão condenatória, in mellius:

“Assim, em reavaliação global e conjunta das apuradas circunstâncias relativas aos factos e à personalidade da recorrente, não olvidando as exigências de prevenção geral, de tutela das expectativas comunitárias contra o facto, de dissuasão de potenciais delinquentes, nem as de prevenção especial, que reclamam, pela via da pena, a interiorização da consciência do acto ilícito, em termos de prevenção da reincidência, e levando em conta os critérios orientadores decorrentes da jurisprudência do STJ nesta matéria, considera-se adequado às exigências de prevenção e à culpa concreta da recorrente fixar a pena única em 10 (dez) anos de prisão.

Por todo o exposto, procede apenas parcialmente o recurso.”

8. A nova pena única, determinada pelo Tribunal da Relação, parece bem equacionada de acordo com os parâmetros adotados. Parte-se, evidentemente, no juízo de apreciação, da consideração dos limites cognitivos deste Supremo Tribunal de Justiça, tais como desenhados antes de mais pela lei, e interpretados pela jurisprudência e pela doutrina.

Com efeito,

“A intervenção do STJ em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acordão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.ºn.º 10/08.0GAMGL.C1.S1).

9. Como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido.

No caso dos concretos crimes em presença não parecem ser controversas as elevadas necessidades de prevenção geral, dada a sensibilidade social generalizada ao ataque aos bens jurídicos violados, cuja violação é geradora de escândalo, alarme e intranquilidade – reveladores da consciência jurídica geral da comunidade.

Atente-se neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1:

 “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os  Acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, Novembro/Dezembro 1997, pág. 214).

Assim como é de salientar o particular sofrimento das vítimas, que, conforme o registado, evocaram os factos pretéritos “com espontaneidade, num discurso visivelmente comovido e vivenciado, demonstrando sofrimento na recordação dos factos de que foram vítimas”. Além de que “As suas declarações lograram obter credibilidade, porquanto foram coerentes e conjugadamente concordantes.

Ambas explicaram as razões que as levaram a contar o martírio que sofreram, enquanto menores, embora com dilação relativamente à respectiva ocorrência, explicando que pretendiam evitar que a sobrinha fosse entregue aos cuidados dos arguidos e pudesse vir a experimentar o mesmo sofrimento. Foi perante esse perigo que decidiram narrar os maus tratos que lhes foram infligidos.”

Apenas, no caso, merece ponderação a já aludida “erosão” temporal que, sem reiteração de ilícitos criminais por parte da arguida, poderá fazer acalentar algumas esperanças, ainda que moderadas, de uma futura adaptação social, depois de cumprida a pena – uma pena não tão severa quanto a determinada em 1.ª Instância. Mas, assim mesmo, não uma pena tão suave que deixasse de dar um sinal claro à sociedade (em sede de prevenção geral) no sentido da reação do sistema à violação de bens jurídicos valiosos, como é o caso. Ou seja, entende-se que o Acórdão recorrido encontra um dos possíveis caminhos do meio de justiça, com fidelidade ao Direito, sem cair nos exageros do laxismo ou do rigorismo penais (Cf. P. Ferreira da Cunha, Crimes & Penas, Coimbra, Almedina, 2020, máx. p. 149 ss.), já manifestando, porém, uma considerável magnanimidade.

É importante salientar-se que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada (não cabendo julgar ad libitum) e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). Ora é precisamente o que ocorre no caso, em que a malha hermenêutica utilizada se revelou consistente com os seus pressupostos, que são já, insiste-se, de alguma magnanimidade.

Como é sabido, a pena única deva determinar-se, como o foi, fundamentalmente pela ponderação de fatores do critério que consta do art. 77 n.º 1, in fine, do Código Penal:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Considerando as notórias necessidades de prevenção no caso em concreto (considerando já o elemento “erosivo” referido), o respetivo grau de culpa e de ilicitude, todo o comportamento de desculpabilização e minimização da sua conduta e não vero, profundo e interiorizado arrependimento (que o Tribunal analisou, considerando-o meramente verbal - Cf. Ac. do STJ de 21-06-2007, Proc. n.º 2042/07) revelado pela arguida ((…) “postura desculpabilizante, tendo a arguida apenas assumido, como castigos físicos, palmadas na BB, por se portar mal, e admitido que a obrigou a dormir na varanda coberta durante um ou dois dias”, o que não persuadiu o Tribunal a quo), e a escassa relevância da inserção social, profissional e familiar, no caso (igualmente assim avaliada pelo Tribunal a quo) entende-se que a pena única não excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e é adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, revelando-se, pois, justa. Na verdade, como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (e vária jurisprudência com ele é concorde), há um critério holístico na escolha da medida da pena única. Assim,

“(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 291).   

10. Tudo ponderado, dificilmente não se poderá deixar de aderir ao conjunto da ponderação feita, considerando-se que a atenuação efetuada é significativa (nomeadamente, insiste-se, tendo em atenção o caráter relativamente pretérito dos factos, mas não apagando a sua profunda gravidade e desconformidade com os valores, princípios e normas, socialmente vigentes e legalmente acolhidos), não cabendo nenhuma alteração do Acórdão recorrido, legal e absolutamente coerente nos seus pressupostos.



III

Dispositivo



Nestes termos, acorda-se na 3.ª Secção (Criminal) do Supremo Tribunal de Justiça em:  a) rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos art.os 399, 400 n.º 1 al.as e) e f), 420 n.º 1 al. b) e 414 n.os 2 e 3, todos do CPP, quanto às ilicitudes e às penas parcelares; b) quanto ao mais, negar provimento ao recurso, mantendo a pena única.

Custas pela recorrente, fixando-se, face ao segmento de negação de provimento do recurso, em 5 UCs a taxa de justiça. E condenando-se ainda em 5 UCs pelo segmento de rejeição do recurso, relativamente a ilicitudes e penas parcelares, nos termos do art. 420, n.º 3 do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 20 de janeiro de 2021.


Ao abrigo do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.º 20/2020, de 1 de maio, o relator atesta o voto de conformidade da Ex.ma Senhora Juíza Conselheira Adjunta, Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida.


Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

________

[1] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[2] Proferido no Proc. n.º 811/12.4JACBR.C1, in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, pág. 202.
[4] Cf. Ac. do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in www.tribunalconstitucional.pt.
[5] Cf. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, págs. 233-234.
[6] Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. II, págs. 126-127, que, por sua vez, cita o Prof. Figueiredo Dias.
[7] In Notas ao Código de Processo Civil, vol. III, pág. 221.
[8] In Curso de Processo Penal, vol. I, Reimpressão da Universidade Católica.
[9] In Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, págs. 126-127.
[10] In www.dgsi.pt.
[11] «O erro de julgamento existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem que ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP», lê-se no Acórdão do STJ de 12-03-2009, Proc. n.º 3781/08 - 3.ª, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[12] O depoimento testemunhal e o acto de reconhecimento visual de uma pessoa ««têm em comum o fundo: memórias empíricas» que, por meio da recordação podem emergir como informação disponível. Sustentados, pois, na complexa actividade mnemónica, ambos os meios de prova são particularmente vulneráveis a múltiplos factores de distorção e engano que ocorrem ao longo de todo o itinerário da cognição, da memorização e da evocação.», nota Alberto Medina de Seiça, in Legalidade da prova e reconhecimentos «atípicos» em processo penal, Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora 2003, págs. 1413-1414.
[13] Psicologia do Testemunho, in Scientia Iuridica, pág. 337.
[14] In www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[15] Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., pág. 105.
[16] Em anotação ao art. 126.º do Código de Processo Penal, 9.ª ed., pág. 320.
[17] In Direito Processual Penal, 1.º Vol., pág. 213.
[18] Cf. entre muitos outros, os Acs. do STJ de 08-07-2004, Proc. n.º 1121/04 - 5.ª, de 30-03-2005, Proc. n.º 552/05 - 3.ª, de 22-10-2008, Proc. n.º 215/08 - 3.ª, de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª, e de 07-04-2010, Proc. n.º 2792/05.1TDLSB.L1.S1 - 3.ª, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos).
[19] Proferido no Proc. n.º 117/08.3PEFUN.L1.S1 - 5.ª, ibidem.
[20] In www.dgsi.pt.
[21] Cf. Ac. do STJ de 21-06-2007, Proc. n.º 2042/07 – 5.ª, ibidem
[22] Que in casu não se deveu, como por vezes sucede, à demora na investigação ou ao comportamento processual dos arguidos mas sim à circunstância de as ofendidas só terem apresentado queixa em 30-10-2016 (cf. fls.
[23] Como se refere no acórdão do STJ de 04-07-2019, proferido no Proc. n.º 1872/16.2JABRG.G2.S1 - 3, in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de acórdãos).
[24] Cf. Ac. do STJ de 23-11-2005, Proc. n.º 2865/05 - 3.ª, ibidem.
[25] Cf. Ac. do STJ de 02.04.2009, Proc. n.º 580/09 - 3.ª, ibidem.
[26] Cf. Ac. do STJ de 31-01-2008, Proc. n.º 121/08 - 5.ª, ibidem.
[27] Embora sem deixar de sublinhar não serem de aceitar quaisquer critérios matemáticos alheios a uma valoração normativa – cf., a propósito, a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 07-01-2016, Proc. n.º 606/07.7PHLRS.S1 - 5.ª, e de 27-01-2016, Proc. n.º 178/12.0PAPBL.S2 - 3.ª, ibidem.
[28] Cf. Ac. do STJ de 08-01-2009, Proc. n.º 3925/08 -5.ª, ibidem.
[29] Cf. Ac. do STJ de 31-01-2008, Proc. n.º 121/08 - 5.ª, ibidem.

Descritores:
 RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO REPETIÇÃO DA MOTIVAÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS COAÇÃO SEXUAL PENA PARCELAR DUPLA CONFORME CONFIRMAÇÃO IN MELLIUS INADMISSIBILIDADE PENA ÚNICA MEDIDA CONCRETA DA PENA