II. A cláusula de um contrato de seguro do Ramo Vida segundo a qual se verifica a “Invalidez Total e Permanente” quando o segurado, “em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”, abarca a situação em que a A. segurada apresenta uma Incapacidade Permanente Parcial para o Trabalho de 89,74% determinada por uma doença do foro oncológico de que resultou o desfiguramento do rosto (dismorfia facial) e uma efetiva incapacidade para realizar as tarefas de que estava incumbida, com uma forte vertente interpessoal.
III. Perante as graves repercussões de ordem física, estética e psicológica provocadas pela doença, o acionamento do seguro do Ramo Vida contratado não pode ser afastado pelo simples facto de se provar, a partir de um relatório do IML, que a segurada está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual, com exceção das que determinem contacto com o público, na medida em que não está demonstrado como e com que resultados poderia ser reajustada a sua vida profissional.
Não disponível.
I - AA
propôs ação declarativa sob a forma de processo comum contra COMPANHIA de SEGUROS ALLIANZ, SA,
alegando que aderiu a contrato seguro acordado entre a Ré e o BPI, S.A., com cobertura do risco de invalidez total e permanente, com o capital seguro de € 50.000,00.
Alega que é portadora, desde 2016, de incapacidade decorrente de carcinoma no nariz, que determinou a realização de cirurgia que a desfigurou e lhe dificultou a função respiratória bem como a afetou psiquicamente pelo que se encontra incapacitada para exercer qualquer profissão compatível com as suas habilitações e conhecimentos o que participou à seguradora que, todavia, declinou a responsabilidade.
Pede a condenação da R. seguradora no pagamento do valor do capital seguro acrescida de juros vencidos desde a participação.
A R. contestou alegando que a incapacidade da A. não está coberta pelo contrato de seguro por ela invocado já que não é definitiva, encontrando-se aquela numa situação de baixa temporária, devendo ser reavaliada em 2021 pela Segurança Social e sustentando, ainda, que a A. não está incapacitada para o trabalho.
Foi realizada a audiência de julgamento, no âmbito da qual foi facultado às partes exercício do direito ao contraditório sobre questão de direito que se entendeu poder configurar questão nova consistente no conhecimento oficioso da nulidade do contrato de seguro objeto dos autos no que tange às cláusulas contratuais constantes dos §§ 1. e 3. da al. B) do nº 3 do art. 7º do respetivo clausulado.
Ambas exerceram tal direito tendo a A. defendido a nulidade de tais cláusulas, e a R. defendido não haver fundamento para tal declaração de nulidade. Sustentou ainda que no que toca ao § 3. da al. B) do nº 3 do art. 7º, que, tendo a invalidez da A. sido avaliada nos autos por perícia médico legal, deve a mesma ser equiparada à realização de junta médica referida no clausulado contratual.
Seguidamente, proferiu-se sentença que julgou a ação procedente, condenando a A. no pagamento da quantia de € 50.000,00.
A R. apelou e a Relação revogou a sentença, absolvendo a R. do pedido, considerando que a A. está em condições de continuar a exercer a sua atividade, ainda que sem contacto com o público.
A A. interpôs recurso de revista em que alegou no essencial que:
A recorrente aderiu a um seguro de grupo que cobre o risco de invalidez total e permanente e que opera nas condições constantes do nº 2 dos fatos provados.
A recorrente encontra-se em estado de invalidez total e permanente preenchendo os requisitos constantes da apólice.
Em consequência de carcinoma e dos tratamentos a que teve de sujeitar-se para sobreviver, a recorrente que não tem 65 anos de idade ficou com invalidez de 89,74%, bem acima dos 60% previstos na apólice, desde 2016; está com o rosto deformado; não tem olfato; não tem paladar; não respira pelo nariz; não tem salivação, o que a obriga a estar constantemente a humidificar a boca; ficou com problemas oftalmológicos e com um quadro de perturbação depressiva persistente que a afasta do convívio humano.
A recorrente exercia a profissão de consultora financeira, e, está incapaz de exercer essa profissão.
Não existe qualquer outra profissão que a recorrente possa exercer compatível com os seus conhecimentos e atuais aptidões, conforme resulta da classificação portuguesa de profissões (Ed. do Instituto Nacional de Estatística)
A recorrente perdeu capacidade física e mental para exercer uma profissão compatível com os seus conhecimentos, e nem o mercado de trabalho a aceita para exercer uma profissão remunerada de acordo com os seus conhecimentos por se achar inapta.
Nem lhe é possível exercer atividade remunerada por conta própria, atentas as deficiências de que ficou portadora.
A conclusão de que não pode exercer a sua profissão de … mas pode exercer outra que não tenha que contactar com o público é meramente teórica e de verificação impossível já que não há profissão que possa ser exercida sem contactar outras pessoas e por quem se achar inapta.
A recorrente preenche os requisitos previstos na apólice para ser paga do capital e juros vencidos.
O acórdão de que recorre, admitindo a verificação dos requisitos que preenchem o risco coberto pelo seguro, funda-se numa milagrosa e inexistente superação da realidade que improcede o pedido.
Houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
II – Factos provados:
1. A A., em 26-3-11, aderiu a um contrato de seguro contratado pelo Banco BPI S.A. com a demandada, que se rege pela Apólice nº ..., cujo teor é o do doc. nº 1 junto com a petição inicial.
2. No art. 3º, ponto 7, relativo às coberturas do referido contrato de seguro, consta:
“Em caso de Invalidez Total e Permanente de uma pessoa segura, objetivamente constatada antes desta atingir 65 anos, o segurador garante, ao abrigo desta cobertura complementar, o pagamento do capital seguro, definido no certificado de adesão.
A - Uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
B - É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
§ 1. Ser clinicamente constatada, com fundamento em elementos objetivos, por um médico do segurador, não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da pessoa segura;
§ 2. Corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e doenças profissionais em vigor à data do sinistro, não entrando para o seu cálculo quaisquer defeitos físicos pré-existentes à admissão da pessoa segura;
§ 3. Ser reconhecida previamente pela Instituição de Segurança Social pela qual a pessoa se encontra abrangida, pelo Tribunal de Trabalho ou por junta médica;
§ 4. Ser precedida por uma incapacidade absoluta, ou seja, completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação principal, e durar mais de 180 dias consecutivos.
C - A Invalidez Total e Permanente deverá reportar-se à data do seu reconhecimento pelo segurador, entendendo-se tal data como o momento em que lhe sejam facultados os elementos que, de acordo com o estabelecido na Apólice, sejam necessários para a regularização do sinistro.”
3. A A. nasceu a .../.../72.
13. Em 2016, foi detetado na A. um carcinoma no nariz que determinou que a 7-7-16 tenha sofrido intervenção cirúrgica no IPO ... para remoção do mesmo.
14. Posteriormente foi submetida a radioterapia.
15. Destas intervenções resultou ter ficado sem as cartilagens do nariz por remoção do septo nasal e ter ficado sem respiração pelo nariz, com perda do olfato e paladar e sem salivar.
16. Tem que beber água constantemente dada a falta de salivação.
17. Ficou com o rosto desfigurado.
19. Por causa do referido em 15. a 17. a A. mantém assistência psiquiátrica.
12. A A. foi sujeita a junta médica pela ARS ... em 19-1-17 que lhe reconheceu, em atestado médico de incapacidade multiusos, a incapacidade de 72%, suscetível de variação futura devendo ser reavaliada no ano de 2021.
20. Por Junta Médica foi emitido atestado médico de incapacidade, multiuso da A., de onde consta que padece de incapacidade permanente global de 72%, suscetível de variação futura e a ser reavaliada em 2021.
4. A A. participou o sinistro à R., através do Banco Tomador, por e-mail do Balcão do BPI, SA, de ..., a 31-1-17 com inclusão de atestado multiuso não definitivo e relatórios médicos.
5. A A. estava, nessa data, impossibilitada de trabalhar, com baixa médica, há 270 dias.
6. A R. solicitou à A. um comprovativo de reforma por invalidez bem como informação sobre a sua profissão.
7. Em 6-2-17 a R. recebeu e-mail da A. com informação de que não estava reformada porque se encontrava de baixa médica e que a profissão é ….
8. O sinistro foi recusado pela R., por carta de 13-2-17, que alegou que o mesmo não se enquadrava na definição de invalidez total e permanente.
9. Como a recusa foi contestada pela A., a R. esclareceu que não considerava enquadrado o sinistro por carta de 26-5-17, cujo teor é o doc. nº 1 junto com a contestação, em que sumariamente considerava que a incapacidade da A. não é definitiva e que a mesma não está incapaz de exercer qualquer profissão.
10. Após contacto do mandatário da A., por carta de abril de 2018, foi pela R. solicitado à A. a atualização da sua informação clínica.
11. Na resposta foi enviado o mesmo atestado multiuso, tendo a R. respondido a 10-4-18 comunicando manter a anterior posição de recusa por falta de critérios de ITP.
28. A R. nunca solicitou à A. para se submeter a exame dum médico seu.
30. A A. é portadora de sequelas que determinam uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 89,74% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais.
31. A A. é portadora de sequelas que determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 43,52 pontos de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil.
35. A A. é portadora de uma desvalorização estética avaliada em 6 pontos numa escala de 0 a 7 pontos.
32. A perda da acuidade visual - que incapacita a A., de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais em 6% (Capítulo V, 2.1, d) e em 7 pontos de acordo com a Tabela de Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil (II A) Sa 0103) – não é definitiva já que a A. poderá recuperar acuidade visual após cirurgia.
33. Todas as demais sequelas e correspondentes incapacidades de que a A. é portadora (que são as que constam descritas no relatório pericial do GML de 3-6-20), consolidaram-se definitivamente do ponto de vista médico-legal em 22-4-19.
18. A A. era uma pessoa saudável, alegre, jovial, profissionalmente ativa, competente no seu trabalho e de boa aparência.
21. A A. era funcionária da empresa O..., Ldª, onde ....
22. Estas funções por si exercidas exigem conhecimentos de elevado grau, não só da legislação nacional como comunitária, e um conhecimento muito aprofundado da contabilidade pública e empresarial.
23. A A., no exercício das suas funções, ....
24. O seu sucesso no desempenho dessas funções decorria da sua formação académica e profissional, equilíbrio psíquico, personalidade e boa aparência física.
25. A doença e os tratamentos a que teve de submeter-se desfiguraram a A. no seu rosto e levaram-na a um afastamento do convívio humano.
26. A A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam.
27. O facto de respirar apenas pela boca e ter deixado de salivar em resultado da radioterapia, faz com que os tecidos sequem, se colem e a bloqueiem, forçando a uma contínua necessidade de humidificação e à perda de voz por curtos momentos.
29. A A. espera poder vir a submeter-se a uma reconstrução cirúrgica que lhe permita reverter a incapacidade de respirar pelo nariz.
34. A A. está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público.
36. A A. não necessita de auxílio de terceira pessoa para quaisquer atos.
III – Decidindo:
1. A 1ª instância reconheceu à A. o direito de acionar o contrato de seguro tendo em conta a sua situação clínica, decisão que a Relação reverteu por considerar que não se encontravam verificadas as condições contratualmente fixadas para o efeito.
Está em causa fundamentalmente a aplicação do art. 3º, ponto 7 do contrato que se reporta à previsão e acionamento da cobertura complementar “Invalidez Total e Permanente”.
A respeito da referida cláusula, a sentença decidiu o seguinte:
“Ora é manifestamente abusiva a exigência cumulativa, para reconhecimento da incapacidade da A., de que a mesma seja reconhecida por médico da seguradora e por Instituição de Segurança Social, quer porque faz depender o cumprimento do contrato pela R. de dois requisitos de facto para os quais a A. não pode contribuir, ficando dependente da R. e de organismo estatal para o reconhecimento da sua incapacidade, quer porque a avaliação por Instituição de Segurança Social tem objeto e fim legal diferentes dos que presidem ao contrato de seguro a que aderiu a A.
Assim, pelos fundamentos acima expressos, julgo nulas as als. 1. e 3. da al. B) do nº 3 do art. 7º do contrato de seguro na parte em que exigem cumulativamente que a incapacidade seja constatada “por um médico do segurador” e “reconhecida previamente pela Instituição de Segurança Social pela qual a pessoa se encontra abrangida”, assim as julgando não escritas para efeitos do presente contrato.
Ora, não sendo tais cláusulas de aplicar, resta aferir do preenchimento dos demais requisitos contratuais.
É manifesto que do transcrito preceito resulta que a cobertura contratada apenas opera caso incapacidade seja igual ou superior a 60% e definitiva, “não sendo possível esperar qualquer melhoria do estado de saúde da pessoa segura”.
Ora a incapacidade definitiva provada da A. é de 89,74%, pelas razões já elencadas em sede de decisão da matéria de facto.
Daí que se deva concluir que estão reunidos todos os requisitos cumulativos contratualmente previstos (validamente) como necessários e suficientes para a procedência da pretensão da A. – al. B) do ponto 7. do art. 3º das cláusulas contratuais relativas às coberturas do contrato de seguro -, a saber: incapacidade definitiva (insuscetível de melhoria), superior a 60% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais, precedida de uma incapacidade absoluta de exercer a sua profissão por período superior a 180 dias consecutivos.
Perde, assim, oportunidade a avaliação da questão relativa à (in)capacidade definitiva da A. para exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos ou aptidões”.
Decorre de tal decisão, sem qualquer equívoco, que o tribunal de 1ª instância considerou nula o art. 3º, na parte referente aos §§ 1. e 3. da al. B) do ponto 7.
É ponto assente que o objeto do recurso é integrado pelas conclusões formuladas, como decorre do art. 635º do CPC e da jurisprudência uniforme sobre o tema.
Ora, comparando a sentença de 1ª instância com as conclusões, na parte que poderiam ser relevantes, verifica-se que a R. Seguradora não impugnou a sentença na parte em que considerou nula a cláus. 3ª, ponto 7, al. B, nos seus §§ 1. e 3. Ao invés, deu como assente que tais pontos se encontram excluídos, e foi a partir da aplicação da al. A) que avançou para a dedução da pretensão de revogação da sentença.
Coerentemente, a Relação também não incidiu sobre tal aspeto, pois para integrar o caso limitou-se a aplicar o clausulado na precedente al. A) que contém a definição do que seja “Invalidez Total e Permanente”.
Nesta medida, para efeitos de apreciação do litígio, é de considerar definitiva a exclusão de tais pontos da referida cláusula (qualificados na sentença como “não escritos”), restando integrar nos segmentos remanescentes os factos que se apuraram.
2. Assim, os termos do art. 3º do contrato de seguro que relevam doravante são os seguintes
“Objeto do Contrato
Artigo 3º - Coberturas
Coberturas obrigatórias:
…
Coberturas facultativas
…
7. Complementar Invalidez Total e Permanente
Em caso de Invalidez Total e Permanente de uma pessoa segura, objetivamente constatada antes desta atingir 65 anos, o segurador garante, ao abrigo desta cobertura complementar, o pagamento do capital seguro, definido no certificado de adesão.
A - Uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões.
B - É condição necessária e suficiente para o reconhecimento da Invalidez Total e Permanente a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
§ 1. …
§ 2. Corresponder a um grau de desvalorização igual ou superior a 60%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e doenças profissionais em vigor à data do sinistro, não entrando para o seu cálculo quaisquer defeitos físicos pré-existentes à admissão da pessoa segura;
§ 3. …
§ 4. Ser precedida por uma incapacidade absoluta, ou seja, completa impossibilidade física, clinicamente comprovada, de exercer a sua profissão ou ocupação principal, e durar mais de 180 dias consecutivos.
C - A Invalidez Total e Permanente deverá reportar-se à data do seu reconhecimento pelo segurador, entendendo-se tal data como o momento em que lhe sejam facultados os elementos que, de acordo com o estabelecido na Apólice, sejam necessários para a regularização do sinistro.
…”.
3. O acórdão recorrido divergiu da sentença de 1ª instância, na parte que que esta considerou que o clausulado nas als. A) e B) era de aplicação alternativa e em que concluiu que a cláusula definidora da “Invalidez Total e Permanente” é a da al. A), constituindo a al. B) uma mera concretização dos critérios que devem ser aplicados para atingir a referida qualificação.
A Relação deixou exarado a tal respeito que:
“Ao contrário do que sustenta a sentença recorrida, as als. A) e B) do referido nº 7. do art. 3º do contrato não são de aplicação alternativa, mas antes de aplicação cumulativa, tendo a primeira um âmbito mais genérico, definindo a segunda as condições concretas para o reconhecimento da incapacidade prevista na primeira, de cuja aplicação depende.
Com efeito, quanto ao estatuído nos vários pontos da al. B), não se cuida aí de definir o que deve ter-se por invalidez relevante, mas antes de apontar os critérios a atender para o reconhecimento dessa situação de invalidez, cujo conceito é fixado a montante desse procedimento, na referida al. A) do nº 7.
Afigura-se razoável e mesmo desejável que tenham sido fixados critérios concretizadores para o reconhecimento da situação de invalidez total e permanente, ao invés de se optar por uma cláusula aberta como a prevista na al. A)”.
É deste pressuposto que partiremos para a integração do caso concreto, uma vez que, na realidade, o disposto na al. B) §§ 2. e 4. integra tão só os procedimentos que deveriam ser observados para verificação da situação de invalidez total e permanente invocada pelo segurado.
4. Na jurisprudência deste Supremo a apreciação dos requisitos do acionamento de contratos de seguro em situações de incapacidade resultante de estados de invalidez não é unívoca.
Contudo, para além de a redação dos clausulados contratuais divergirem na definição das condições que são necessárias para acionar cada um dos contratos de seguro apreciados nos arestos, também existe uma variação das coberturas que são invocadas, pois nuns casos está em causa a verificação de uma situação de incapacidade absoluta e definitiva e noutros, como no caso concreto, a situação de invalidez total e permanente.
Ora, ainda que possam parecer semelhantes os dois conceitos, cláusulas como esta destinam-se a cobrir realidades diversas, como se comprova também no caso concreto.
Na verdade, segundo o ponto 2. do art. 3º referente às Coberturas da apólice, a situação de incapacidade absoluta e definitiva, mais grave, é prevista como cobertura obrigatória e sujeita a um diverso condicionalismo:
“Incapacidade funcional e irrecuperável igual ou superior a 75%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, com impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa”,
em cumulação com a
“Comprovada incapacidade irrecuperável para exercer qualquer atividade remunerada”.
Já no caso concreto está em causa uma cobertura complementar referente a incapacidade total e permanente que foi contratada facultativamente, sujeita a um diverso condicionalismo que não exige o estado de gravidade previsto para a primeira cobertura.
É também por isso que a jurisprudência deste Supremo apresenta para cada uma das situações apreciadas uma leitura que coloca na equação da exigibilidade do capital as diversas circunstâncias que rodeiam o sinistrado, desde a sua profissão, à situação económica e social.
Assim o revelam, por exemplo, os seguintes acórdãos:
- Ac. do STJ, de 17-10-19, 2978/15, www.dgsi.pt, sobre uma cláusula que previa a “Invalidez Absoluta e Definitiva”, mais grave do que a que está sob análise no caso concreto:
I – A previsão de invalidez absoluta e definitiva, constante de uma apólice de seguro, é suscetível de ser entendida por um declaratário normal como uma situação em que a pessoa afetada se encontra num estado que a deixa totalmente (completamente, sem restrição) incapaz, para o resto da vida, de exercer a sua atividade, designadamente laboral, em termos de obtenção de meios de subsistência.
III – A situação em que o segurado não pode continuar a desempenhar a atividade profissional anterior, mas pode desempenhar funções de natureza idêntica dentro da sua área de formação técnico profissional, desde que com menor intensidade e exigindo menor esforço físico, é conciliável com uma situação de incapacidade parcial.
- Ac. do STJ, de 19-6-18, 2300/15, www.dgsi.pt, também sobre uma cláusula que reportava “Invalidez Absoluta e Definitiva”:
I - Uma incapacidade absoluta e definitiva – enquanto risco coberto por contrato de seguro de vida, individual, celebrado entre a A., como tomador e pessoa segura, e a R., como seguradora, em que ficou designado beneficiário irrevogável, o banco, com quem aquela e o marido haviam celebrado contrato de mútuo para aquisição de imóvel – refere-se, segundo um declaratário normal, a uma incapacidade para todo e qualquer trabalho e para o resto da vida, ao que não se equipara uma IPP de 80%.
II - O contrato de seguro celebrado visou, em primeira linha, a defesa do principal beneficiário, o banco, e para este, a morte ou a invalidez equivalem-se sempre que isso signifique a perda de rendimentos que permitam o pagamento do capital e juros.
- Ac. do STJ, de 27-2-20, 125/13, www.dgsi.pt, no qual, sobre um clausulado que previa a “Invalidez absoluta definitiva”, mais grave do que a situação dos autos, se decidiu que:
“I - O conceito relevante de invalidez permanente (ou absoluta e definitiva), enquanto integrante de cláusula de contrato de seguro do Ramo Vida, associado a contratos de mútuo bancário em que o segurado é mutuário, assenta:
(i) na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial e
(ii) concretiza-se, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), em consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro.
II - Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a atividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida ativa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para atividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projeção na capacidade de ganho) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro”.
5. No caso concreto, a matéria de facto apurada demonstra que:
“18. A A. era uma pessoa saudável, alegre, jovial, profissionalmente ativa, competente no seu trabalho e de boa aparência.
21. A A. era funcionária da empresa O..., Ldª, onde ....
22. Estas funções por si exercidas exigem conhecimentos de elevado grau, não só da legislação nacional como comunitária, e um conhecimento muito aprofundado da contabilidade pública e empresarial.
23. A A., no exercício das suas funções, ....
24. O seu sucesso no desempenho dessas funções decorria da sua formação académica e profissional, equilíbrio psíquico, personalidade e boa aparência física”.
Porém, na vigência do contrato de seguro:
“25. A doença e os tratamentos a que teve de submeter-se desfiguraram a A. no seu rosto e levaram-na a um afastamento do convívio humano.
26. A A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam.
27. O facto de respirar apenas pela boca e ter deixado de salivar em resultado da radioterapia, faz com que os tecidos sequem, se colem e a bloqueiem, forçando a uma contínua necessidade de humidificação e à perda de voz por curtos momentos.
29. A A. espera poder vir a submeter-se a uma reconstrução cirúrgica que lhe permita reverter a incapacidade de respirar pelo nariz.
34. A A. está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público.
36. A A. não necessita de auxílio de terceira pessoa para quaisquer atos”.
Por outro lado, foi considerado não provado que:
“A A. espera poder melhorar a capacidade respiratória e o aspeto estético do rosto por cirurgia”.
6. Decorre da matéria de facto provada que quando a A. participou o sinistro, “estava impossibilitada de trabalhar, com baixa médica, há 270 dias (ponto 5.).
Por outro lado, nos termos do ponto 30., “a A. é portadora de sequelas que determinam uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 89,74% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais”.
É, aliás, este o elemento que, segundo o § 2. da al. B. releva para o efeito e não o facto que consta do ponto 31., nos termos do qual “a A. é portadora de sequelas que determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 43,52 pontos de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em Direito Civil”.
Ademais, está provado que a generalidade das “sequelas e correspondentes incapacidades de que a A. é portadora consolidaram-se definitivamente do ponto de vista médico-legal em 22-4-19”.
A única exceção, que, porém, não interfere na integração da cláusula contratual, resulta do facto de a redução da acuidade visual ainda não se encontrar consolidada, dependendo ainda de uma eventual cirurgia (ponto 32.).
Apesar disso, a incapacidade decorrente dessa falta de acuidade visual foi clinicamente quantificada em 6%, de modo que, mesmo sem consideração de tal sequela, a incapacidade restante ainda supera largamente a percentagem exigida no contrato para o acionamento da Seguradora e que é de 60%.
7. Foi da descrita realidade que a Relação partiu para negar à A. o direito ao capital coberto pelo contrato de seguro e que não pode ser confirmada.
Diz-se no acórdão recorrido que:
“É, pois, dado adquirido que, embora a A. não possa continuar a desempenhar a atividade profissional que desempenhava antes de apresentar as sequelas físicas que atualmente a afetam, acha-se apta a exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, desde que o exercício da mesma não exija contacto com o público, designadamente com os recursos humanos dos clientes da sua entidade empregadora, aos quais, no desempenho das suas anteriores funções, ....
Avaliando este quadro circunstancial, ter-se-á de concluir que a A., não estando totalmente incapaz de exercer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões, não se acha em situação de invalidez total e permanente, condição de que depende, de acordo com o contratualmente estipulado no art. 3º, nº 7, al. A), do contrato de seguro que subscreveu, que a seguradora demandada garanta, ao abrigo da referida cobertura complementar, o pagamento do capital seguro”.
Uma cláusula de um contrato de seguro que, como a que estamos observando, se destina a cobrir situações de incapacidade que podem afetar segurados com diversos níveis de instrução, com diversas profissões ou com diversas aptidões não pode ser interpretada de forma puramente literal, antes deve ser adaptada a cada concreta situação, sempre sob a perspetiva de um declaratário normal, nos termos dos arts. 236º e 238º do CC e em função das regras da boa fé.
De outro modo, levando ao extremo uma interpretação literal do conceito de invalidez total e permanente previsto na al. A) do ponto 7. do art. 3º do contrato (“uma pessoa será considerada afetada de Invalidez Total e Permanente quando, em consequência de doença ou de acidente abrangido pela Apólice, ficar total e definitivamente incapaz de exercer qualquer profissão compatível com os seus conhecimentos e aptidões”), neste e na generalidade dos casos semelhantes, sempre se poderia concluir que qualquer sinistrado estaria apto a exercer alguma atividade, a não ser em casos muito limitados que se caracterizassem pela incapacidade absoluta decorrente de uma situação de paraplegia ou de outra sequela altamente incapacitante da mobilidade ou da utilização dos sentidos.
No caso concreto, ressalta, quanto à concreta segurada, a especificidade quer da atividade que exercia, quer das qualidades profissionais e pessoais que lhe eram exigidas e são exigíveis para o desempenho da mesma atividade, a par da gravidade das sequelas que já foram enunciadas em que, entre outros aspetos, se evidencia a dismorfia facial, com um relevo estético de grau 6 numa escala de 1 a 7, e cujos resultados são bem visíveis quando se comparam as fotografias correspondentes aos docs. nºs 10 e 11 juntos com a petição inicial.
É de notar ainda a habilitação específica que a A. detém, não apenas para ... numa área muito especializada, como também para ..., tudo associado à sua realização pessoal e profissional, o que esteve seguramente na base da sua contratação pela sociedade para quem trabalha, foi gravemente perturbada por um sinistro de todo imprevisto.
Em cada um dos referidos aspetos, que não podem ser facilmente separados, exercem uma forte influência negativa não apenas as sequelas físicas incapacitantes, como as de ordem estética muito graves e, não menos importantes, os efeitos de ordem psicológica que a situação criou na A. e que seguramente tenderão a agravar-se com uma solução que lhe recuse o acionamento do seguro, forçando-a a buscar uma outra atividade profissional ou a exigir da sua entidade patronal a atribuição de outras funções não ajustadas às suas reais aptidões profissionais.
Como é óbvio, num caso como este não se justifica exigir que a A. reconverta a sua atividade para uma qualquer outra indiferenciada. Por outro lado, para além de recusar a atribuição do capital garantido, a R. Seguradora não fez qualquer esforço no sentido de identificar alguma atividade alternativa que fosse exigível à A. neste quadro dramático para dar seguimento ao que emerge de um dos ponto da matéria de facto, ou seja, que a A. continua “apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público”. Acrese ainda que se apurou que, por causa da sua situação, “a A. tem receio de ser vista em sociedade e de que as pessoas das suas relações não a reconheçam”.
8. Neste quadro factual, o acórdão recorrido revela uma argumentação de carácter eminentemente teórico e que não consegue ultrapassar as dificuldades de aplicação ao caso concreto.
É atribuído um excessivo relevo ao facto que a 1ª instância considerou provado (34. “A A. está apta a exercer as funções da sua atividade profissional habitual com exceção das que determinem contacto com o público”), não devendo ignorar-se que tal a afirmação de tal facto assentou unicamente nas conclusões do relatório de medicina legal subscrito por perito médico, a que estava subjacente um outro relatório clínico da especialidade de psiquiatria, e nem um nem outro dos peritos subscritores estava a par das circunstâncias específicas em que poderia traduzir-se a reconversão da atividade profissional da A.
Por isso, o facto que foi sustentado em tais conclusões periciais não poderia deixar de ser contextualizado, cabendo também à Seguradora contrapor aos factos que a A. alegou outros que revelassem uma efetiva possibilidade de se efetuar a referida reconversão, sem afetar seriamente o seu equilíbrio físico e psicológico.
Foi, aliás, esta metodologia seguida num outro caso em que também estava em causa um clausulado referente a “Invalidez Total e Permanente” superior a 66,66% (2/3) e que foi apreciado no Ac. do STJ, de 24-1-17, 1237.14, https://jurisprudencia.csm.org.pt, com o seguinte sumário:
I - A cláusula do contrato de seguro que prevê, como objeto da cobertura, a invalidez total e permanente de 66,66% de uma das pessoas seguras e a define como a incapacidade total da pessoa segura, com carácter permanente e irreversível, que corresponda a um grau de desvalorização mínimo de 66,68% de acordo com a TNI e que a pessoa segura fique total e permanentemente impossibilitada de exercer a profissão indicada na proposta de seguro, pode colher no leigo destinatário o sentido de que a impossibilidade total é compatível com um grau de desvalorização de 66,68% e que releva a impossibilidade do exercício da profissão do segurado.
II - Reforça esse sentido, o facto de na interpretação do contrato de seguro dever ter-se em conta o fim prosseguido com a celebração do contrato e o seu efeito útil: em concreto, o tomador de seguro, empresa de venda de materiais de construção, celebrou um contrato de seguro de vida com uma proteção complementar para a pessoa segura, o seu gerente, pretendendo a cobertura do risco da sua morte ou da impossibilidade de exercer a gerência dessa mesma sociedade.
III - Tendo ficado provado que o segurado, gerente da tomadora, ficou com uma incapacidade permanente global definitiva de 68,7% e que enquanto gerente recebia diariamente clientes na sua empresa, tratava da documentação inerente à atividade comercial que aí desenvolvia e que procedia a cargas e descargas de matérias de construção e fazia transportes dos mesmos em veículos ao serviço da empresa, estão verificados os requisitos cumulativos da cobertura do seguro e o autor tem direito ao pagamento do capital contratado.
Para o efeito, num caso em que o sinistrado era gerente de uma sociedade e que ficou afetado na sua capacidade para o exercício dessa função, considerou-se que:
“Acresce que, como também refere Moitinho de Almeida, importa na interpretação do contrato de seguro ter em conta o fim prosseguido com a celebração dos contratos e o seu efeito útil: o tomador do seguro, a empresa de venda de materiais de construção, celebra um seguro de vida com uma proteção complementar para o seu gerente, a pessoa segura, tendo em consideração a eventual possibilidade de o seu gerente morrer ou ficar impossibilitado de exercer a gerência dessa mesma sociedade. O que é decisivo aqui não é o conceito jurídico de gerência que o segurador pretendeu configurar como válido universalmente, para todas as empresas, independentemente do seu objeto ou da atividade a que se dediquem, mas a realidade económica e social da gerência habitual de uma empresa, aliás de uma microempresa, de venda de materiais de construção civil”.
Ora, desempenhando a A. uma atividade que implicava quer o contacto com clientes, quer com outras pessoas, aspetos que subjetiva e objetivamente se mostram gravemente condicionados (note-se, por uma incapacidade permanente parcial para o trabalho de 89,74%, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades por Acidente de Trabalho e Doenças Profissionais), uma interpretação do clausulado em referência em função da impressão do destinatário e das regras da boa fé não pode levar a que se sujeite a A. a exercer uma atividade – por agora indefinida – que a mantenha afastada do contacto com os clientes, com os formandos ou com outras pessoas, ou a realizar trabalhos de mera retaguarda, com o risco de se agravar ainda mais, pela frustração que daí decorre, a carga psicológica que emerge da doença de que padece e dos efeitos que projetou na sua realização profissional e pessoal.
IV – Face ao exposto, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, repristinando a sentença de 1ª instância.
Custas da revista e nas instâncias a cargo da R.
Notifique.
Lisboa, 10-2-22
Abrantes Geraldes (relator)
Tomé Gomes
Maria da Graça Trigo