Decisão Texto Parcial
Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.
I-RELATÓRIO:
As requerentes N... AG, e N... SA intentaram procedimento cautelar contra a requerida S... LDA, formulando os seguintes pedidos:
(i)Intimação da requerida para se abster de infringir directamente a EP 1296689, a EP 1591122 e o CCP 526, i.e. para intimar a requerida a abster-se de, em território português ou tendo em vista a comercialização nesse território, fabricar, importar, oferecer, armazenar, introduzir no comércio ou usar o medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva, em termos tais que a requerida saiba ou deva saber que o Ácido Zoledrónico Zentiva será usado no tratamento da osteoporose, enquanto a EP 1296689, a EP 1591122 e o CCP 526 se mantiverem em vigor;
(ii)Adicional ou alternativamente ao pedido do ponto (i.), intimar a requerida a abster-se de, em território português ou tendo em vista a comercialização nesse território, fabricar, importar, oferecer, armazenar, introduzir no comércio ou usar o medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva, em termos tais que exceda a estimativa do montante de unidades do medicamento de Ácido Zoledrónico Zentiva necessárias ao tratamento de doentes com doença de Paget em cada ano civil em Portugal (o que – e enquanto o Ácido Zoledrónico Zentiva for o único medicamento genérico no mercado tendo o Aclasta® como medicamento de referência no mercado português - corresponde a 470 unidades) enquanto a EP 1296689, a EP 1591122 e o CCP 526 se mantiverem em vigor;
(iii)Intimar a requerida a retirar imediatamente do mercado português, a expensas suas, as unidades do medicamento Ácido Zoledrónico Zentiva que a requerida saiba ou deva saber que serão usadas para o tratamento da osteoporose; ou, alternativamente, que retire imediatamente do mercado as unidades de Ácido Zoledrónico Zentiva – como o único medicamento genérico existente actualmente no mercado – que excedam, no ano civil em curso, o limite anual de 470 (quatrocentas e setenta) unidades necessárias para o tratamento dos doentes com doença óssea de Paget e a abster-se de, relativamente às unidades em excesso, praticar as actividades mencionadas no ponto i. em cima;
(iv)Intimar a requerida a informar as autoridades competentes e entidades no âmbito de concursos públicos e, ou, acordos, com efeitos no território português, nomeada mas não exclusivamente no âmbito da adjudicação que lhe foi efectuada no concurso nº 2015/64, que o fornecimento do medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva deve restringir-se ao uso no tratamento da doença de Paget e que não poderá ser usado no tratamento da osteoporose sob pena de constituir uma infracção à EP 1296689, à EP 1591122 e ao CCP 526 enquanto estes direitos se mantiverem em vigor;
(v)Adicional ou alternativamente ao ponto (iv.), intimar a requerida a abster de fornecer mais de 470 (quatrocentas e setenta) unidades por ano civil que se prevêem sejam usadas para o tratamento na doença de Paget, no âmbito das propostas já adjudicadas no âmbito de concurso públicos ou outros acordos, atendendo a que não há outro medicamento genérico no mercado português na presente data;
(vi)Intimar a requerida, enquanto as EP 1296689, a EP 1591122 e o CCP 526 se mantiverem em vigor, a fazer inscrever no Resumo das Características do Medicamento e no Folheto Informativo do medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva, bem como a dar publicidade a essa informação – no prazo de oito dias úteis contados da notificação da sentença que venha a ser proferida – nos mesmos canais de media em que foi divulgado e anunciado o seu medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva, que a utilização do mesmo para tratamento da osteoporose constitui uma violação não só dos direitos emergentes das Patentes e CCP mas também da própria AIM que lhe foi concedida pelo INFARMED, mais concretamente, intimar a Requerida a informar expressamente os Hospitais, armazenistas, médicos e farmacêuticos (através das respectivas ordens profissionais) bem como as associações destinadas à prevenção da osteoporose, de que o seu medicamento genérico não pode ser usado para o tratamento da osteoporose;
(vii)Intimar a requerida à divulgação expressa, em sede de observações, da indicação terapêutica do medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva em propostas que esta apresente em concursos públicos e, ou acordos para o fornecimento de medicamentos contendo Ácido Zoledrónico na dosagem de 5 mg/ 100 ml, na forma farmacêutica de solução para perfusão.
Requer-se, nos termos das disposições conjugadas do artigo 338º-I, nº 4 do CPI, do artigo 365º do CPC e do artigo 829º-A do CC, que seja fixada uma sanção pecuniária compulsória, a ser paga pela requerida, às requerentes, por cada dia de atraso no cumprimento da intimação que lhe vier a ser feita nos termos do acima requerido, em montante a ser fixado pelo tribunal, designadamente com base na equidade.
Mais se requer que seja a requerida condenada a suportar todos os custos e encargos decorrentes da presente providência cautelar, e ainda a reembolsar as requerentes relativamente aos honorários dos mandatários das requerentes e outras despesas que estas tenham tido com o presente processo.
Por último, requer-se que, à luz do disposto no artigo 429º do CPC, a requerida seja notificada para apresentar, nos presentes autos, documentação contabilística comprovativa do número de unidades de Ácido Zoledrónico Zentiva vendidas em 2015, para confirmar os factos alegados, bem como do número de unidades colocadas nos armazenistas e distribuidores, num prazo equivalente para a dedução da oposição.
Em síntese, alegaram que a 1ª requerente N... AG é titular da patente europeia EP 1296689 que tem por epígrafe “MÉTODO DE ADMINISTRAÇÃO DE BISFOSFONATOS”, cujo registo foi pedido ao Instituto Europeu de Patentes (IEP), em 18 de Junho de 2001, reivindicando a prioridade das patentes norte-americanas US 597135, de 20 de Junho de 2000, e US 267689, de 9 de Fevereiro de 2001, tendo sido concedida a 21 de Setembro de 2005.
A EP 1296689 encontra-se em vigor, produzindo os seus efeitos em Portugal de acordo com o previsto no artigo 97º (3) da Convenção sobre a Patente Europeia de 5 de Outubro de 1973 (doravante “CPE”) e o artigo 79º nº 1 do CPI.
A invenção da EP 1296689 refere-se ao uso farmacêutico do ácido zoledrónico – que é um bisfosfonato –, ou seus derivados, para o tratamento da osteoporose, no qual o Ácido Zoledrónico ou seus derivados são administrados intravenosamente e intermitentemente em intervalos mais longos do que anteriormente se pensara possível.
Por sua vez, a 1ª requerente é titular da EP 1591122 que tem por epígrafe “MÉTODO DE ADMINISTRAÇÃO DE BISFOSFONATOS”, cujo registo foi pedido ao Instituto Europeu de Patentes (IEP), em 18 de Junho de 2001, reivindicando a prioridade das patentes norte-americanas US 597135, de 20 de Junho de 2000, e US 267689, de 9 de Fevereiro de 2001, tendo sido concedida a 26 de Setembro de 2012.
A EP 1591122 encontra-se em vigor produzindo os seus efeitos em Portugal de acordo com o previsto no artigo 97.º (3) da CPE e o artigo 79.º, n.º 1, do CPI.
A invenção da EP 1591122 refere-se ao Ácido Zoledrónico, protegendo em particular o uso farmacêutico do Ácido Zoledrónico, ou seus derivados, para o tratamento da osteoporose no qual o Ácido Zoledrónico, ou seus derivados, são administrados intravenosamente e intermitentemente em intervalos mais longos do que anteriormente se pensara possível.
A protecção da invenção constante da EP 1591122 foi estendida pelo Certificado Complementar de Protecção n.º 526 (doravante designado por “CCP 526” ou simplesmente por CCP) concedido à N... AG.
O CCP 526 foi concedido tendo por base a EP 1591122 e por referência à primeira autorização de introdução no mercado na Europa do medicamento contendo como substância activa o Ácido Zoledrónico para utilização no tratamento da osteoporose (com a marca Aclasta®), tendo o mesmo alargado o período de tempo de protecção da Patente até 27 de Setembro de 2022.
Por contrato de licença de exploração celebrado no dia 29 de Maio de 2013, que se encontra devidamente averbado junto do INPI, a primeira requerente N... AG concedeu à segunda requerente N..., uma licença de exploração para a EP 1296689.
Foi, ainda, celebrado um contrato de licença de exploração no dia 29 de Maio de 2013 entre as mesmas, que se encontra devidamente averbado junto do INPI, nos termos do qual foi concedida uma licença de exploração da EP 1591122.
É, ainda, de referir que se encontra também averbado junto do INPI um contrato de licença de exploração do CCP 526 entre a primeira demandante N... AG e a segunda demandante N... de 8 de Abril de 2014.
As formulações farmacêuticas do Ácido Zoledrónico são comercializadas, em Portugal, pela segunda requerente N... – devidamente autorizada pelo Infarmed – Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. (doravante “INFARMED”) para o efeito – sob as marcas Zometa® e Aclasta®.
O Aclasta® tem como indicações terapêuticas o tratamento da osteoporose (doença que fragiliza os ossos) em mulheres pós-menopáusicas e em homens com elevado risco de fractura, incluindo aqueles com fractura recente da anca causada por traumatismo ligeiro, o tratamento da osteoporose associada à terapêutica sistémica de longa duração com glucocorticoides em mulheres pós-menopáusicas e em homens com elevado risco de fractura e, ainda, o tratamento da doença óssea de Paget em adultos.
Para o tratamento da doença óssea de Paget durante um ano civil, em Portugal, estima-se que seja necessário o máximo de 470 (quatrocentas e setenta) unidades de medicamento.
As referidas invenções encontram-se patenteadas de acordo com as Swiss type-claims (reivindicação de tipo suíço) e de acordo com a reivindicação de produto limitada ao uso (EPC-2000 form). A reivindicação de tipo suíço reivindica a utilização do Ácido Zoledrónico para a produção de um medicamento para o tratamento da osteoporose que é administrado intermitentemente através de administração intravenosa. O escopo de protecção não está, pois, limitado, ao acto de uso do medicamento para a osteoporose. A reivindicação de produto limitada ao uso protege o Ácido Zoledrónico para o uso no tratamento da osteoporose.
No caso vertente, a requerida é a actual titular de uma AIM, concedida em 2 de Novembro de 2012, para um medicamento genérico, denominado Ácido Zoledrónico Zentiva, contendo Ácido Zoledrónico mono-hidratado, na dosagem de 5mg/ 100ml, na forma farmacêutica de solução para perfusão, tendo como medicamento de referência o Aclasta®, encontrando-se em infracção aos direitos industriais das requerentes.
Os actos de infracção incluem o fabrico, a oferta, a armazenagem e importação de produtos ou de produtos obtidos directamente por um processo patenteado. No caso vertente, a S... fabrica e comercializa um produto, Ácido Zoledrónico, para uso no tratamento da osteoporose tal como se encontra protegida nas Patentes e CCP.
Mais suscitam as requerentes o seguinte: QUESTÃO PRÉVIA. DA INEXISTÊNCIA DE CASO JULGADO. DA COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INTELECTUAL.
Neste âmbito, alegaram o seguinte:
Com fundamento em parte dos direitos de propriedade industrial acima invocados, as ora requerentes instauraram, contra a ora requerida, uma acção arbitral necessária ad hoc nos termos do disposto na Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro (doravante abreviadamente designada por “Lei n.º 62/2011”).
Seguidamente, as requerentes interpuseram recurso do acórdão proferido na mesma acção arbitral, a que foi negado provimento pelo Tribunal da Relação de Lisboa, interpondo sucessivo recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que foi rejeitado in limine pela segunda instância.
Do despacho que não admitiu o recurso para o STJ, apresentaram as requerentes uma reclamação para esta última instância, a qual foi indeferida, pelo que o acórdão proferido na referida acção arbitral já transitou em julgado.
A mencionada acção arbitral foi desencadeada, nos trinta dias contados da publicitação, efectuada no dia 5 de Março de 2012, ao abrigo do disposto no artigo 15º-A do Estatuto do Medicamento, na página electrónica oficial do INFARMED, de um pedido de autorização de introdução no mercado (doravante “AIM”) para um medicamento genérico contendo como substância activa Ácido Zoledrónico mono-hidratado, na dosagem de 5mg/ 100ml, na forma farmacêutica de solução para perfusão e tendo como medicamento de referência o «Aclasta®».
Na mencionada acção arbitral, as então demandantes (ora requerentes) pretenderam evitar a infracção dos direitos emergentes da PT 86167, do Certificado Complementar de Protecção 100 e da EP 1296689, tendo ainda pedido a não transmissão a terceiros da AIM que fez desencadear o processo arbitral e que a então demandada (ora requerida) fosse condenada a pagar uma sanção pecuniária compulsória.
Não obstante a identidade dos sujeitos da presente providência com os da acção arbitral necessária referida, a causa de pedir e o pedido, dos presentes autos, são totalmente distintos da causa de pedir e pedido da acção arbitral necessária ad hoc iniciada contra a ora requerida que já transitou em julgado.
Em causa na presente providência cautelar, está a violação directa dos direitos de propriedade industrial acima invocados, pelo titular da AIM, decorrente da comercialização, no mercado português, do medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva, e a intimação da requerida a cessar a continuação dessa infracção.
Refere-se, ainda, que os presentes autos de providência cautelar respeitam a matéria – relativa à infracção de direitos de propriedade industrial – que as requerentes entendem ser da competência do Tribunal da Propriedade Intelectual nos termos do disposto no artigo 111º nº 1 alínea b) (“Acções em que a causa de pedir verse sobre propriedade industrial, em qualquer das modalidades previstas na lei;”) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto e não de um tribunal arbitral necessário, como à primeira vista poderia resultar de uma interpretação descontextualizada do disposto no artigo 2º da Lei n.º 62/2011.
Com efeito, o referido artigo deve ser lido conjuntamente com a previsão do artigo 3º nº 1, da Lei nº 62/2011, designadamente
quanto à imposição de um prazo de caducidade de trinta dias, contado da publicitação do pedido de AIM na página electrónica oficial do INFARMED, para os titulares dos direitos de propriedade industrial invocarem os seus direitos, dando início à acção arbitral necessária.
Afigura-se às requerentes que, uma vez que se encontra esgotada a via arbitral (à qual recorreram oportunamente), a sede adequada para reagir prontamente a uma violação efectiva dos seus direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência será, naturalmente, a via judicial, sob pena de uma interpretação contrária conduzir a uma falha grave na tutela efectiva dos direitos de propriedade industrial das requerentes.
Por DESPACHO de 18-12-2015, foi declarado o Tribunal da Propriedade Intelectual absolutamente incompetente e, em consequência, foi indeferido liminarmente o requerimento inicial, considerando-se que é manifesto que existe, no caso concreto, a preterição de tribunal arbitral necessário. A incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral necessário, é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que conduz, neste momento processual onde ainda não ocorreu a citação da requerida, ao indeferimento liminar (cf. arts 96º, alª b), 97º, nº 1, 99º, nº1, 226º, nº 4 alª b), 577º, alª a), 578º do CPC).
Não se conformando com a douta decisão, dela recorreram as requerentes, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES:
A.O presente recurso vem interposto da decisão proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual que julgou procedente a
a excepção dilatória de conhecimento oficioso de incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral necessário, a qual conduziu ao indeferimento liminar do requerimento inicial de procedimento cautelar e condenou as ora recorrentes nas respectivas custas.
B.É motivado pela impossibilidade de conformação das recorrentes com uma decisão que põe em causa a tutela efectiva dos direitos de propriedade industrial por si invocados, porquanto não colhem, relativamente à situação concreta descrita nos presentes autos, os argumentos esgrimidos pelo tribunal a quo para fundamentar a decisão recorrida.
C.As requerentes, ora recorrentes, interpuseram uma providência cautelar não especificada contra a requerida, ora recorrida, com fundamento no exercício dos direitos que, nos termos, nomeadamente, do artigo 101º do Código da Propriedade Industrial, lhes assistem e emergem das EP 1296689, EP 1591122 e CCP 526, peticionando, a final, que o procedimento cautelar fosse julgado procedente e, consequentemente, fossem decretadas determinadas providências cautelares não especificadas.
D.O referido procedimento cautelar foi intentado no Tribunal da Propriedade Intelectual pelo facto de as recorrentes entenderem que a causa de pedir dos presentes autos não é da competência de um tribunal arbitral necessário, tal como previsto na Lei nº 62/2011.
E.Com efeito, o que está em causa, nos presentes autos, não é uma acção especial de acertamento preventivo de direitos, como a que é visada pela Lei nº 62/2011, a qual é desencadeada por ocasião da publicitação de pedidos de AIM na página electrónica oficial do Infarmed.
F.Mas um procedimento cautelar fundamentado em novos factos e novos fundamentos de direito que evidenciam uma violação do exclusivo que é conferido às recorrentes pelos referidos direitos de propriedade industrial, decorrente da comercialização do medicamento genérico Ácido Zoledrónico Zentiva pela requerida, ora recorrida, em condições tais que infringem directamente tais direitos.
G.A questão jurídica a decidir pelo tribunal ad quem é a da tutela efectiva dos direitos de propriedade industrial após ter já transitado em julgado uma acção arbitral necessária ad hoc nos termos e para os efeitos do disposto na Lei nº 62/2011 e a de saber a que tribunal compete essa tutela, estando em causa os mesmos sujeitos, as mesmas AIMs de medicamentos genéricos, e mormente quando, depois de tal acção (i.e. uma vez esgotada a instância arbitral), se vêm a verificar factos concretos de uma infracção directa da patente, apurados aquando da comercialização dos medicamentos genéricos.
H.Mesmo que se entenda que caducou o direito de acção das recorrentes, tal entendimento deverá circunscrever-se ao direito de acção específico previsto na Lei nº 62/2011, pois nunca poderá entender-se caducado o direito à tutela efectiva que garante uma reacção pronta – e em tempo útil – a infracções directas dos direitos de propriedade industrial que eventualmente ocorram posteriormente a uma decisão arbitral nos termos da Lei nº 62/2011, sempre e enquanto os direitos de propriedade industrial se mantiverem vigentes que, no caso concreto, será até 27 de Setembro de 2022.
I.Em rigor, não decorre do regime jurídico previsto na Lei nº 62/2011 que fique prejudicado recurso ulterior aos tribunais judiciais, incluindo a tutela cautelar, nomeadamente numa acção de infracção baseada em novos factos e novos fundamentos de direito, como sucede no caso sub judice (vd. a este propósito o Acórdão do Tribunal
Constitucional nº 123/2015).
J.Tanto quanto é do conhecimento das recorrentes, esta precisa questão jurídica nunca foi suscitada ou abordada na jurisprudência.
K.Com o devido respeito, o tribunal a quo cinge – erroneamente – a apreciação dos presentes autos à questão do decurso do prazo de 30 dias previsto no artigo 3º da Lei nº 62/2011 e aos seus efeitos, omitindo pronúncia sobre a sua competência em acções de infracção em casos em que as titulares de direitos de propriedade industrial já esgotaram o recurso à acção arbitral nos termos e para os efeitos do disposto na Lei nº 62/2011.
L.Mais, o tribunal a quo ignora a factualidade subjacente aos presentes autos, a qual se distancia manifestamente dos casos em que o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciou em questões relativas à incompetência do Tribunal da Propriedade Intelectual e, ou, ao prazo de caducidade previsto na Lei n.º 62/2011 (a saber: o Acórdão da Relação de Lisboa de 30-09-2014 por si citado e no qual sustenta a sua decisão, mas também os Acórdãos da Relação de Lisboa de 11-07-2013 e de 22-10- 2015).
M.Em suma, a questão essencial dos presentes autos nada tem a ver com a questão tratada pelo tribunal a quo do prazo estabelecido no artigo 3º da Lei nº 62/2011 ser, ou não, um prazo de caducidade, a questão do mesmo ter já decorrido e dos efeitos do decurso do mesmo.
N.A seguir-se a tese enunciada na decisão recorrida, as recorrentes estariam impedidas de exercer os direitos conferidos pelas patentes sub judice, ante a sua infracção directa e consumada, com base em novos factos, sendo certo que a instância arbitral a que respeitam as AIMs do medicamento genérico da recorrida se encontra juridicamente exaurida.
O.Enquanto direitos fundamentais com natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias (vd. artigos 42º nºs 1 e 2 e 62º da CRP) e gozando do regime específico a estes aplicável, os direitos de propriedade industrial não podem sofrer restrições injustificadas por violação dos princípios da adequação, necessidade e proporcionalidade (artigos 17º e 18º da CRP).
P.A proibição do acesso à via judicial no caso concreto constituiria uma denegação da tutela jurisdicional efectiva e de garantia dos direitos das recorrentes e, desse modo, uma clara violação do disposto nos números 1 e 5 do artigo 20.º da CRP.
Q.Não se diga que a acção dos presentes autos difere de uma acção de infracção de direitos de patente que merece tutela, incluindo a cautelar, perante o Tribunal da Propriedade Intelectual, sob pena de se assistir a uma discriminação negativa dos titulares de patentes correspondentes a medicamentos de referência pela violação do princípio de igualdade no acesso à justiça e aos tribunais (vd. artigos 13º da CRP e 27º 1 do ADPIC/ TRIPS), entre titulares de direitos de patente e de outros direitos de propriedade industrial em geral pela exclusão dos titulares de direitos de patente correspondentes a um medicamento de referência.
R.Mesmo que se queira fazer um juízo de ponderação sobre os interesses em causa – por um lado, direito exclusivo de patente e, por outro, direito à saúde e acesso aos medicamentosa custos comportáveis bem como direitos dos consumidores e sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde – a mesma não poderá justificar um obstáculo ou restrição à tutela efectiva dos direitos das recorrentes atendendo à fundamentalidade dos direitos envolvidos (colhem-se aqui também os argumentos do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 123/2015).
S.Na análise e julgamento do caso concreto haverá, ainda que ter em devida atenção, as obrigações e normas decorrentes de tratados internacionais dos quais o Estado Português é contratante e que o vinculam directamente, a saber: a Convenção sobre a Patente Europeia, a Directiva do Enforcement e o ADPIC/TRIPS.
T.A possibilidade de acesso à justiça que foi vedada pelo tribunal a quo colide com os princípios previstos nos artigos 3º, 9º e 13º da Directiva do Enforcement e nos artigos 7º, 27º nº 1 e 41º nº 1 e 2 e 50º do ADPIC/ TRIPS.
U.Pelo exposto, não podem subsistir dúvidas de que o julgamento dos presentes autos cabe na competência do Tribunal da Propriedade Intelectual, tal como prevista no artigo 111º da Lei nº 62/2013 de 26 de Agosto, nº 1, alínea b).
V.A decisão recorrida é, pois, ilegal padecendo de erro de julgamento da matéria de direito, violando o disposto nos artigos 101º nº 2 e 338º-I do CPI, no artigo 111º, nº 1, alínea b) da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, no artigo 2º nº 2 CPC, nos artigos 7º, 27º, 41º nºs 1 e 2 e 50º do ADPIC/TRIPS, e nos artigos 3º, 9º e 13º da Directiva do Enforcement.
W.Acresce que, ao não interpretar correctamente o disposto nos referidos artigos e na Lei nº 62/2011, o tribunal a quo acaba por violar o disposto nos artigos 8º, 17º, 18º, 20º, nºs 1 e 5, 42º, 62º nº 1 e 204º todos da CRP, padecendo a decisão recorrida de inconstitucionalidade.
Termina, pedindo que seja dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a douta decisão recorrida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos.
A requerida contra-alegou, expressamente requerendo que seja negado provimento ao presente recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido nos seus precisos termos
Colhidos os vistos, cumpre decidir
II-FUNDAMENTAÇÃO.
A) Fundamentação de facto.
A matéria de facto a considerar é a que resulta do relatório que antecede.
B) Fundamentação de direito.
As questões colocadas e que este tribunal deve decidir, nos termos dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2 do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, em vigor desde 1 de Setembro de 2013, são as seguintes:
- Preterição de tribunal arbitral necessário;
- Inconstitucionalidade da decisão recorrida.
PRETERIÇÃO DE TRIBUNAL ARBITRAL NECESSÁRIO.
As apelantes alegam, em síntese, que intentaram a presente providência cautelar no Tribunal da Propriedade Intelectual por entenderem que a causa de pedir dos presentes autos não é da competência de um tribunal arbitral necessário tal como previsto na Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro, porquanto o que está em causa não é uma acção especial de acertamento preventivo de direitos, como a que é visada pela Lei nº 62/2011, mas um procedimento cautelar fundamentado em novos factos e novos fundamentos de direito que evidenciam, segundo as recorrentes, uma violação dos seus direitos de propriedade industrial decorrente da comercialização do medicamento genérico «Ácido Zoledrónico Zentiva», e porque se encontra esgotada a via arbitral.
A Lei nº 62/2011, de 12 de Dezembro, criou um regime de composição dos litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, procedendo à quinta alteração ao Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e à segunda alteração ao regime geral das comparticipações do Estado no preço dos medicamentos, aprovado em anexo ao Decreto-Lei nº 48-A/2010, de 13 de Maio.
No seu artigo 2º (Arbitragem necessária), preceitua que os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, na acepção da alínea ii) do n.º 1 do artigo 3º do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, ficam sujeitos a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada.
E no subsequente artigo 3º (Instauração do processo), refere no seu nº 1, que, no prazo de 30 dias a contar da publicitação a que se refere o artigo 15º-A do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção conferida pela presente lei, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efectuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.
Assim, os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionado com medicamentos de referência e medicamentos genéricos, são da exclusiva competência da arbitragem necessária, por força do disposto nos artigos 2º e 3º nº 1 da Lei nº 62/2011, quer se trate de uma alegada acção especial de acertamento preventivo de direitos, quer se trate de uma providência cautelar alegadamente fundamentada em novos factos e novos fundamentos de direito, pois, a Lei nº 62/2011 não distingue uma da outra.
Na presente providência cautelar está em causa, apenas e tão só, um litígio emergente da invocação, pelas recorrentes, de direitos de propriedade industrial (EP 1296689 e EP 1591122), e da alegada infracção dos mesmos, pela recorrida, relacionado com o medicamento de referência «Aclasta» e o medicamento genérico «Ácido Zoledrónico Zentiva», o qual, incluindo os procedimentos cautelares, é da exclusiva competência da arbitragem necessária, por força do disposto nos artigos 2º e 3º nº 1 da Lei n.º 62/2011.
Já o havíamos decidido no nosso acórdão de 22-10-2015, assim sumariado”:
“-Aquela lei instituiu um regime específico de composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial, quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, sujeitando a resolução de tais litígios a arbitragem necessária, institucionalizada ou não - cfr. os artigos 1º e 2º.
-O prazo para a proposição de acções é um prazo de caducidade, conforme resulta do disposto no artigo 298º nº 2 do Código Civil, perdendo o interessado o direito de a intentar se a acção não for proposta dentro do prazo estabelecido.
-A não propositura da acção arbitral no prazo de 30 dias a que se refere o artigo 3º nº 1 da Lei 62/2011, acarreta a caducidade do direito à invocação do direito de propriedade industrial das demandantes perante a demandada, deixando aquelas de poderem invocar contra esta aquele seu direito, quer perante um tribunal arbitral, quer perante um tribunal estadual, não havendo a violação da Directiva 2004/48/CE, nem do TRIPS, nem da Constituição da República Portuguesa”[1].
Assim, criando a Lei 62/2011, como já foi dito, um regime de arbitragem necessária para a resolução dos litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial relacionados com medicamentos de referência e genéricos (cfr. o artº 2º da citada Lei), foi propósito evidente do legislador subtrair aos tribunais estaduais (de 1ª instância, uma vez que, nos termos do nº 7, do artº 3º, da decisão arbitral cabe recurso para o Tribunal da Relação competente) aqueles litígios.
Como se diz no acórdão desta Relação de 30-09-2014[2]:
“Aliás, sempre o tribunal estadual careceria de competência para a causa, já que, nos termos do artº 96º alª b), do NCPC, a preterição de tribunal arbitral determina a incompetência absoluta do tribunal, a implicar, por força do artº 99º nº1 do mesmo Código, a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (nos termos do anterior CPC, a preterição de tribunal arbitral necessário era uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, a implicar, igualmente, a absolvição da instância – cfr. os artigos 493º nº 2, 494º alª j) e 495º.
Acresce que a posição ora em questão sempre implicaria a frustração dos fins da citada Lei, porquanto, como se diz na decisão recorrida, o titular da patente disporia de expediente fácil para, querendo, ultrapassar a imposição legal de uma arbitragem necessária neste domínio, bastando, para o efeito, que, ao 31º dia propusesse a acção no tribunal judicial competente.”
Aqui chegados, só podemos concluir como na douta decisão recorrida, ou seja, é manifesto que existe, no caso concreto, a preterição de tribunal arbitral necessário. A incompetência absoluta por preterição de tribunal arbitral necessário, é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, que conduz, neste momento processual onde ainda não ocorreu a citação da Requerida, ao indeferimento liminar (cf. arts 96º alª b), 97º nº 1, 99º nº1, 226º nº 4 alª b), 577º, alª a) e 578º do CPC).
Por isso, decidiu com acerto o Tribunal da Propriedade Intelectual ao declarar-se absolutamente incompetente e, em consequência, indeferir liminarmente o requerimento inicial.
INCONSTITUCIONALIDADE DA DECISÃO RECORRIDA.
As apelantes alegam, ainda, que a interpretação e aplicação da Lei nº 62/2011 pelo tribunal a quo ao caso vertente viola o disposto nos artigos 8º, 17º, 18º, 20º, nºs 1 e 5, 42º, 62º nº 1 e 204º da Constituição da República Portuguesa.
O Tribunal Constitucional, já foi chamado a pronunciar-se sobre se era inconstitucional a interpretação segundo a qual a norma contida no artigo 2º da Lei nº 62/2011 consubstanciava um ónus imposto ao titular de direitos de propriedade industrial sobre medicamentos de referência de recurso (necessário) à justiça arbitral, vedando a opção de acesso aos tribunais judiciais, inclusivamente para efeitos de interposição de providências cautelares, tendo decidido negativamente no seu acórdão nº 123/2015, de 12 de Fevereiro de 2015, nos termos seguintes:
“Não julgar inconstitucional a dimensão normativa resultante do artigo 2º da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro, segundo a qual o titular de direito de propriedade industrial apenas pode recorrer à arbitragem necessária, precludindo o recurso directo ao tribunal judicial no que se refere a providência cautelar;”[3].
Esta questão já foi por nós também decidida no nosso acórdão de 22-10-2015, supra mencionado, nos seguintes termos:
“Alegam as apelantes que a procedência da excepção de caducidade coarcta a possibilidade de intentarem uma acção de condenação, sob pena de inconstitucionalidade por denegação de acesso ao direito, nos termos do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
Cumpre decidir.
A apreciação desta questão afigura-se-nos decisiva para se apurarem as consequências da não propositura da acção arbitral no prazo de 30 dias a que alude o citado artigo 3º nº1.
A decisão do tribunal arbitral não é materialmente inconstitucional, pois não impõe uma limitação à tutela jurisdicional efectiva de um direito fundamental protegido nos termos do artigo 42º, em violação do disposto no artigo 20º.
O direito de propriedade industrial é um direito fundamental tutelado pelo artigo 62º da CRP. O direito de propriedade privada a que alude o citado artigo 62º é garantido, como aí se diz, “nos termos da Constituição”.
O que significa que tal direito não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição e na lei, em certas circunstâncias.
A Lei nº 62/2011 visou obviar aos factores de estrangulamento que dificultavam a entrada célere de genéricos no mercado de medicamentos, através da instituição de um mecanismo alternativo de composição de litígios – arbitragem necessária – que, num curto espaço de tempo, profira uma decisão de mérito quanto à existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade industrial, visando um objectivo de sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e de acesso dos utentes a medicamentos a custos comportáveis. Pretendeu-se, com aquela lei, estabelecer a compatibilização considerada adequada dos direitos de propriedade industrial com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores.
Tal opção legislativa não fez depender a procedência do procedimento conducente à obtenção de uma AIM da verificação da existência de direitos de propriedade industrial, antes estabeleceu um vínculo indissociável entre o início do pedido de AIM e o procedimento arbitral necessário, uma vez que o prazo de 30 dias para o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial se conta a partir da publicitação, pelo INFARMED, daquele pedido.
Assim, considerando que o INFARMED dispõe do prazo de 210 dias para decidir sobre o pedido de AIM (artigo 23º nº 1 do DL nº 176/2006), a tutela imposta pelo legislador é, em princípio, prévia à decisão sobre a AIM, pretendendo-se, pois, uma resolução antecipada dos litígios.
Todavia, não se vê que daí resulte que tenham sido adoptadas medidas legais restritivas desproporcionadas em relação aos fins que se pretendem obter.
Nem se diga que, dessa forma, se impõe uma limitação à tutela jurisdicional efectiva de um direito fundamental protegido, em violação do disposto no artigo 20º da CRP.
Na verdade, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito de acesso aos tribunais não exclui nem o estabelecimento de prazos de caducidade, para levar as questões a tribunal, nem a obrigatoriedade de meios alternativos de resolução extrajudicial.
Desde que, acrescentam, relativamente aos prazos de caducidade, estes não sejam arbitrariamente curtos ou arbitrariamente desadequados, dificultando irrazoavelmente a respectiva acção[4].
Ora, o prazo de 30 dias não é, seguramente, no caso concreto, arbitrariamente curto, tendo em conta as finalidades que se pretenderam prosseguir, e que se deixaram atrás expostas.
Por outro lado, também não é arbitrariamente desadequado, uma vez que não dificulta irrazoavelmente a propositura da acção, já que esta não se nos afigura revestir-se de especial complexidade, sendo tal tarefa perfeitamente passível de ser realizada no prazo legalmente previsto de 30 dias.
Ou seja, o prazo em questão não se apresenta como exíguo, sendo que o mesmo visa permitir a resolução antecipada de litígios, por forma que os interesses em confronto sejam arbitrados e que as situações controversas não se arrastem demasiado no tempo, tendo em vista as finalidades prosseguidas pela Lei nº 62/2011.
Nos termos do citado artigo 20º nº 4 da CRP, o direito de acção ou de agir em juízo terá de efectivar-se através de um processo equitativo.
Segundo os mesmos autores[5]:
“A doutrina e a jurisprudência têm procurado densificar o princípio do processo equitativo através de outros princípios:
(1) direito à igualdade de armas ou direito à igualdade de posições no processo, com proibição de todas as discriminações ou diferenças de tratamento arbitrárias;
(2) o direito de defesa e o direito ao contraditório traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar as provas da outra parte, pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas;
(3) direito a prazos razoáveis de acção ou de recurso, proibindo-se prazos de caducidade exíguos do direito de acção ou de recurso (cfr. Ac. TC nº148/87);
(4) direito à fundamentação das decisões;
(5) direito à decisão em tempo razoável;
(6) direito ao conhecimento dos dados processuais;
(7) direito à prova, isto é, à apresentação de provas destinadas a demonstrar e provar os factos alegados em juízo;
(8) direito a um processo orientado para a justiça material sem demasiadas peias formalísticas”.
No caso dos autos, não se vislumbra afronta a qualquer daqueles princípios, nomeadamente o referido em (3), tendo em conta que já se entendeu atrás que o prazo de caducidade do direito de acção não é exíguo.
Assim, entendemos que a solução prevista no artigo 3º nº 1 da Lei nº62/2011 não viola a Constituição.
Temos, assim, que concluir que a consequência da não propositura da acção arbitral no prazo de 30 dias a que alude o citado artigo 3º nº 1 se traduz na caducidade do direito à invocação do direito de propriedade industrial das demandantes e oras apelantes perante a demandada, deixando aquelas de poderem invocar contra esta aquele seu direito, quer perante um tribunal arbitral, quer perante um tribunal estadual.
Mas a decisão do Tribunal da Propriedade Intelectual colide com a Directiva 2004/47/CE e viola o TRIPS?
Entendemos que não, seguindo de perto o acórdão por nós elaborado em 22-10-2015. Ali dissemos, para valer também aqui, que, começando pelo direito da União Europeia, verifica-se que quer o Acordo TRIPS (Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio), quer a Directiva 2004/48/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 29/4/2004, relativa ao respeito dos direitos de propriedade intelectual, tiveram em conta a necessidade de promover uma protecção eficaz e adequada daqueles direitos[6].
Assim, nos termos do artigo 41º nº 1 daquele Acordo:
“Os membros velarão por que a sua legislação preveja processos de aplicação efectiva conforme especificado na presente parte de modo a permitir uma acção eficaz contra qualquer acto de infracção dos direitos de propriedade intelectual abrangidos pelo presente acordo (…)”.
E o nº 2 do mesmo artigo acrescenta que:
“Os processos destinados a assegurar uma aplicação efectiva dos direitos de propriedade intelectual serão leais e equitativos. Esses processos não serão desnecessariamente complexos ou dispendiosos, nem implicarão prazos não razoáveis ou atrasos injustificáveis”.
Por seu turno, o considerando (13) da Directiva 2004/48/CE, refere expressamente:
“No plano internacional, todos os Estados-Membros, bem como a própria Comunidade, no que diz respeito às questões da sua competência, estão ligados pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (“Acordo TRIPS”), aprovado no quadro das negociações multilaterais do Uruguay Round pela Decisão 94/800/CE do Conselho e celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio”.
Acrescentando o considerando (14), parte final, que:
“A presente directiva não afecta as obrigações internacionais dos Estados-Membros, incluindo as decorrentes do Acordo TRIPS”.
O objectivo daquela Directiva, lê-se no considerando (19) é o de “aproximar essas legislações a fim de assegurar um nível elevado de protecção da propriedade intelectual equivalente e homogéneo no mercado interno”.
Quanto ao objecto da Directiva estabelece o artigo 1º:
“A presente directiva estabelece as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual. Para efeito da presente directiva, a expressão «direitos de propriedade intelectual» engloba os direitos da propriedade industrial”.
Por seu turno, o artigo 3º (Obrigação geral), determina no nº 1, que:
“Os Estados-Membros devem estabelecer as medidas, procedimentos e recursos necessários para assegurar o respeito pelos direitos de propriedade intelectual abrangidos pela presente directiva. Essas medidas, procedimentos e recursos devem ser justos e equitativos, não devendo ser desnecessariamente complexos ou onerosos, comportar prazos que não sejam razoáveis ou implicar atrasos injustificados”.
Acrescentando o nº 2, do mesmo artigo, que:
“As medidas, procedimentos e recursos também devem ser eficazes, proporcionados e dissuasivos e aplicados de forma a evitar que se criem obstáculos ao comércio lícito e a prever salvaguardas contra abusos”.
Finalmente, a Directiva refere que os Estados Membros devem garantir a aplicação de medidas provisórias e cautelares (artigo 9º), correctivas (artº 10º) e inibitórias (artigo 11º).
Ora, da conjugação de todos estes preceitos, podemos concluir que a não propositura da acção arbitral no prazo de 30 dias previsto artigo 3º nº 1 da Lei nº 62/2011 implica a caducidade do direito concreto de acção, e ainda que o processo aí estabelecido é leal e equitativo, e comporta prazo razoável, sendo eficaz e dissuasivo.
Note-se que, e ainda na esteira do citado a acórdão desta Relação, o que a Lei nº 62/2011 se propôs, fundamentalmente, como resulta dos respectivos trabalhos preparatórios, foi “estabelecer um mecanismo alternativo de composição dos litígios que, num curto espaço de tempo, profira uma decisão de mérito quanto à existência, ou não, de violação dos direitos de propriedade industrial”, para, desse modo, evitar as delongas na comercialização dos medicamentos genéricos, como vinha acontecendo, pelos motivos já apontados.
Aliás, procurou-se, através daquele diploma legal, dar cumprimento aos compromissos assumidos pelo Estado Português perante a Comissão Europeia, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Central Europeu no tocante à entrada no mercado de medicamentos genéricos.
Na verdade, constava do nº 3.60 do Memorando de Entendimento entre o Governo Português e aquelas instituições, de 17/5/2011, a seguinte medida: “Remover todas as barreiras à entrada de genéricos, especialmente através da redução de barreiras administrativas/legais, com vista a acelerar a comparticipação de genéricos”.
Por isso que, com o objectivo de se promover a celeridade, se estabeleceram prazos para a instauração do processo e para a oposição, mas tendo-se em conta a compatibilização considerada adequada dos direitos de propriedade industrial com outros de idêntica relevância, como é o caso do direito à saúde e ao acesso a medicamentos a custos comportáveis, bem como dos direitos dos consumidores (cfr. a Exposição dos Motivos da Proposta de Lei nº 13/XII).
Acresce que, como se refere nessa Exposição, as medidas constantes da Lei nº 62/2011 visam, também, contribuir “para a criação de condições de sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e de acesso dos utentes a medicamentos a custos comportáveis, bem como para o desenvolvimento dos meios alternativos de composição de litígios”.
Como escreve Dário Moura Vicente, in O Regime Especial de Resolução de Conflitos em Matéria de Patentes (Lei nº 62/2011), Revista da Ordem dos Advogados, Ano 72, Out./Dez. 2012, págs.978 e 979:
“Consagra-se assim um sistema mitigado de patent linkage, por força do qual a concessão de uma autorização de introdução no mercado e a introdução no mercado dos genéricos não são inteiramente desligadas da apreciação dos direitos de propriedade industrial sobre os correspondentes medicamentos de referência, sendo todavia o contencioso da propriedade industrial relativo a esses medicamentos remetido, pelo menos numa primeira fase, para tribunais arbitrais necessários”.
Acrescentando, ob.cit., pág.989, que:
“A Lei nº 62/2011 visou, como se disse, desbloquear a resolução do contencioso relativo à introdução de genéricos no mercado, atenta designadamente a morosidade dos tribunais estaduais e as contradições entre as decisões por eles proferidas, remetendo-o, nas circunstâncias por ela definidas, para instâncias extrajudiciais. Este diploma legal abriu, assim, novas perspectivas ao acesso dos consumidores portugueses aos medicamentos genéricos”.
Terminando, para concluir, diremos que não ocorreram as apontadas violações das normas mencionadas na conclusão T), U), V) e W) das alegações das apelantes, pelo que improcedem todas as conclusões das alegações das apelantes.
Mas deverão as apelantes ser condenadas como litigantes de má fé, como defende a apelada nas suas contra-alegações?
Alega a apelada que as recorrentes alteraram a verdade dos factos ou omitiram factos relevantes para a decisão da causa e fizeram-no com dolo, porque, como muito bem sabem, a sentença arbitral proferida em 13 de Maio de 2014 na referida acção arbitral ainda não transitou em julgado, contrariamente ao que referem ao longo das suas Alegações (cfr. fls. 7, 9, 14, 19, 21, 22), uma vez que o recurso de constitucionalidade por si interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03 de Março de 2015, que confirmou a sentença arbitral, ainda não foi objecto de decisão do Tribunal Constitucional;
Mais alega que as recorrentes alteraram a verdade dos factos ou omitiram factos relevantes para a decisão da causa, com dolo, pelo que devem ser condenadas como litigantes de má-fé em indemnização adequada a fixar pelo tribunal, de acordo com o seu prudente arbítrio, nos termos do disposto no artigo 543º nº 2 do Código de Processo Civil.
Cumpre decidir.
As apelantes responderam no seu requerimento que faz fls. 1149 e 1150, apresentado em 16-02-2016.
Cumpre decidir.
O artigo 542º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe (Responsabilidade no caso de má-fé - Noção de má-fé), preceitua o seguinte:
1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:
a)Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b)Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c)Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d)Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Da análise dos autos, onde se discutem arduamente as questões de direito, que são de elevada complexidade, não se colhem elementos suficientes para se condenarem as apelantes como litigantes de má fé.
SÍNTESE CONCLUSIVA:
-Nos termos do artigo 15º-A nº 1 do Decreto-Lei nº 176/2006, de 30 de Agosto, o INFARMED, I. P., publicita, na sua página electrónica, todos os pedidos de autorização, ou registo, de introdução no mercado de medicamentos genéricos, independentemente do procedimento a que os mesmos obedeçam.
-Segundo o nº 1 do artigo 3º da Lei nº 62/2001, de 12 de Dezembro, no prazo de 30 dias a contar da publicitação a que se refere o artigo 15º-A do DL nº 176/2006, de 30 de Agosto, na redacção conferida pela presente lei, o interessado que pretenda invocar o seu direito de propriedade industrial nos termos do artigo anterior deve fazê-lo junto do tribunal arbitral institucionalizado ou efectuar pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada.
-Aquela lei instituiu um regime específico de composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial, quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, sujeitando a resolução de tais litígios a arbitragem necessária, institucionalizada ou não - cfr. os artigos 1º e 2º.
-O prazo para a proposição de acções é um prazo de caducidade, conforme resulta do disposto no artigo 298º nº 2 do Código Civil, perdendo o interessado o direito de a intentar se a acção não for proposta dentro do prazo estabelecido.
-A não propositura da acção arbitral no prazo de 30 dias a que se refere o artigo 3º nº 1 da Lei 62/2011, acarreta a caducidade do direito à invocação do direito de propriedade industrial das demandantes perante a demandada, deixando aquelas de poderem invocar contra esta aquele seu direito, quer perante um tribunal arbitral, quer perante um tribunal estadual, não havendo a violação da Directiva 2004/48/CE, nem do TRIPS, nem da Constituição da República Portuguesa.
III-DECISÃO.
Atento o exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelas apelantes.
Lisboa, 5/5/2016
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Carla Mendes
[1]Processo nº 923/15.2YRLSB, in www.dgsi.pt/jtrl.
[2]Procº 512/14.9YRLSB-A-7 in ww.dgsi.pt/jtrl.
[3]DR nº 130/2015, II Série de 07-07-2015.
[4]Constituição da República Portuguesa, Anotada, Vol, I, pág. 409.
[5]Ob cit, pág. 415.
[6]Cfr Ac. RL de 30.09.2014, Pº nº 512/14.9YRLSB-A, in www.dgsi.pt/jtrl.
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