Conclusões da recorrida ...
A recorrida ... conclui o seguinte:
1.–Nos termos da cláusula 35 do Contrato, as partes pretenderam, de forma inequívoca, submeter todos os litígios dele emergentes ou com ele relacionados à exclusiva jurisdição de um tribunal;
2.–No decurso da execução do Contrato, a R. causou, alegadamente, danos à SPCG por perdas de exploração, sendo, segundo invoca a Apelante, responsável pela reparação dos referidos danos;
3.–A pretensão indemnizatória dos autos está, por isso, abrangida pelo âmbito objetivo da convenção de arbitragem inserida no Contrato;
4.–Além do mais, na medida em que a Apelante indemnizou a SPCG para ressarcimento dos referidos danos, ficou sub-rogada na posição jurídica daquela e, segundo alega, é credora do direito de indemnização originariamente detido pela SPCG, decorrente do alegado incumprimento contratual do Contrato pela R.;
5.–Ainda que a Apelante não fosse parte outorgante, nem interveniente no Contrato, sendo, por isso, um terceiro em relação a este último, certo é que, por via da sub- rogação legal, estava sujeita à convenção de arbitragem respeitante à situação transmitida;
6.–Havendo transmissão de contrato ou do direito, a cláusula compromissória segue a transmissão destes e considera-se incluída na transmissão, sendo aplicável à hipótese de sub-rogação legal do segurador nos direitos do sub-rogado;
7.–O fundamento legal face à lei portuguesa é o artigo 582, nº 1 do Código Civil, aplicável ex vi o disposto no artigo 594 do mesmo diploma;
8.–A doutrina e a jurisprudência dos nossos Tribunais superiores consideram, de forma pacífica, que a sub-rogação legal no direito de crédito implica a sujeição do adquirente à convenção de arbitragem respeitante à situação transmitida;
9.–Através da sub-rogação operada, in casu, pelo artigo 136, nº 1 do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril (“Regime Jurídico do Contrato de Seguro”), a Apelante está, necessariamente, sujeita à convenção de arbitragem, que consubstancia um acessório daquele direito;
10.–Neste caso, não há dúvidas, nas palavras de MARIANA FRANÇA GOUVEIA, em aplicar analogicamente o regime dos acessórios do crédito, previsto no artigo 582 do Código Civil;
11.–Ainda que assim não se considerasse, o que não se concede, sempre deveria a convenção de arbitragem ser considerada um dos elementos do crédito, pelo que a Apelante fica sub-rogada nos direitos dela resultantes;
12.–Não estando em causa uma convenção de arbitragem manifestamente nula ou ineficaz ou, ainda, celebrada intuitu personae, devia a Apelante ter demandado a Apelada perante um tribunal arbitral, tal como se o direito em causa fosse exercido pela SPCG, uma vez que foi a instância acordada no Contrato para o efeito;
13.–Persiste a Apelante em contrariar um entendimento devidamente sustentado e isento de controvérsia, tentando, de forma simplória, ressalvado o devido respeito, furtar-se à extensão da convenção de arbitragem ínsita no Contrato; 2426/31
14.–Assim, entende a Apelante que o credor (legalmente) sub-rogado não é parte do Contrato, porquanto não o celebrou e, por isso, não está vinculado à convenção de arbitragem nele inserida, podendo reclamar o seu crédito junto dos tribunais comuns - o que, naturalmente, não faz qualquer sentido, atenta a dinâmica do Contrato, devidamente apontada pelo Tribunal a quo - nem resiste a uma observação mais atenta;
15.–Mais gravemente, a Apelante ousa avançar este argumento quando, enquanto entidade seguradora de uma das partes outorgantes do Contrato, tinha o dever de o conhecer, sendo precisamente o seu incumprimento que daria lugar ao nascimento de um direito de crédito no qual ficaria sub-rogada;
16.–Frustrando as legítimas expectativas e a vontade expressa das partes outorgantes do Contrato, entende a Apelante poder reclamar o seu crédito fora da jurisdição arbitral, apenas porque “não aceitou a convenção de arbitragem”;
17.–Porém, apesar de a Apelante ser um terceiro em relação ao Contrato, certo é que existe uma norma especial que preenche a hipótese prevista no artigo 406, nº 2 do Código Civil, ou seja, que fundamenta que o Contrato e, em especial, a convenção de arbitragem nele aposta produzam efeitos em relação a si, e que é o artigo 582 do Código Civil, aplicável por força do disposto no artigo 594 do referido diploma [e este, por sua vez, do artigo 136 do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de abril (sub-rogação legal da entidade seguradora por via de contrato de seguro)];
18.–Não há, por isso, qualquer “violação ostensiva do princípio da relatividade dos contratos” (artigo 406, nº 2 do Código Civil) na hipótese de sub-rogação legal de um terceiro na posição do credor;
19.–É certo que a Apelante não adquiriu ou foi investida na posição contratual da SPCG no Contrato; mas não menos certo é que, ao ter cumprido o contrato de seguro, adquiriu, por via da sub-rogação operada, os acessórios do direito transmitido que não fossem inseparáveis do credor originário;
20.–Não assiste qualquer razão à Apelante, devendo, em consequência, considerar-se que a decisão contida na Sentença recorrida não merece qualquer censura;
21.–Bem andou o Tribunal a quo ao julgar procedente a exceção dilatória de preterição de tribunal arbitral voluntário invocada, designadamente, pela aqui Apelada, absolvendo-a da instância, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 96, nº 2, 99, nº 1, 576, nº 2 e 577, alínea a), todos do CPC.
22.–O presente recurso foi interposto fora do prazo de 15 dias aplicável ex vi artigo 638, nº 1 do CPC, devendo, em consequência ser indeferido, por extemporâneo.
Delimitação do objeto do recurso.
Salvo alguma questão de conhecimento oficioso, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 608.2, 635.4 e 639 do CPC. São somente essas as questões que serão aqui apreciadas.
Há que apurar, primeiro, se o presente recurso foi extemporâneo; e, em caso negativo, se a convenção arbitral vincula a autora, terceira no contrato de seguro; devendo assim a ré e a interveniente ser absolvidas da instância por preterição do Tribunal Arbitral.
O recurso não foi extemporâneo.
A recorrida ... alega que o recurso foi introduzido depois do prazo de 15 dias previsto para a apelação das decisões que apreciem a competência absoluta do tribunal – arts. 638.1, 644.2.b e 96.b do CPC. Acrescenta que, embora a decisão recorrida tenha posto termo ao processo, com absolvição total da instância, aplica-se este prazo reduzido de 15 dias, e não o prazo geral de 30 dias – o prazo reduzido é o que resulta da lei, pois não distingue situações onde foi posto termo ao processo (e onde a lei não distingue não deve o intérprete fazê-lo).
Responde a ... que na decisão recorrida não se discute se a recorrente se enganou no tribunal onde intentou a ação, mas sim uma questão material – saber se a convenção arbitral acordada estende a sua eficácia a um terceiro que fica sub-rogado legalmente na posição de uma das partes.
Vejamos.
A questão é discutível e não deve o Tribunal superior, por comodidade, abster-se de julgar somente com base numa posição doutrinal ou jurisprudencial que não está firmada. Isso equivaleria a recusar às partes o direito à decisão da causa, por uma consideração meramente formal.
Assim, concluímos ser aqui aplicável o prazo de 30 dias para interposição do presente recurso.
Ele é, pois, tempestivo.
O contrato em causa, o seguro e a convenção de arbitragem.
Entre a SPCG e a MECI / ... (consórcio) foi firmado um “Contrato de Conceção, Fabrico, Entrega, Construção, Montagem, Comissionamento, e Start-Up da Central de Cogeração”.
Paralelamente, a SPCG firmou com a Companhia de Seguros ... um contrato de seguro de perdas de exploração por avaria de máquinas na execução daquele contrato, de que resulta a sub-rogação legal da seguradora, conforme previsto no art. 136 do DL 72/2008 (com efeito estabelece-se aí que: “O segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro”).
Invocando a ... esta sub-rogação legal por efeito do contrato de seguro firmado com sua segurada, a causa de pedir é complexa, sendo integrada pelo contrato de seguro, a sub-rogação legal dele decorrente, e o incumprimento do contrato de cogeração.
Há responsabilidade da MECI / ... perante a SPCG e, por sub-rogação legal, daquelas perante a ....
O problema é que o contrato de cogeração estabelecia que qualquer litígio entre as partes devia ser resolvido por Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional.
Pergunta-se assim se a ..., terceira no contrato de co-geração, está sujeita àquela arbitragem por efeito daquela sub-rogação. Ou se pode dirigir-se aos tribunais comuns para defender os seus direitos dela decorrentes.
A ... deduziu a presente ação no tribunal comum; mas a MECI / ... opuseram-se alegando que deveria ter-se dirigido ao tribunal arbitral.
O tribunal de Instância Central (Sintra) da Comarca de Lisboa deu-lhes razão e absolveu-as da instância.
Caraterização jurídica da sub-rogação legal e seus efeitos.
A sub-rogação, já no direito romano era vista como uma substituição: uma entidade jurídica tomava o lugar de outra, com os mesmos ónus e atributos.
No direito romano, a ficção desempenhava um papel muito habitual, inspirando-se na representação religiosa e na representação teatral, ela própria recebida do teatro grego: assim surgiram, entre outros, os conceitos jurídicos de representação, personalidade jurídica, sub-rogação.
Ainda hoje, no moderno direito das obrigações, o dispositivo da sub-rogação traduz a substituição do credor na titularidade do direito a uma prestação fungível pelo terceiro que cumpriu em lugar do devedor (ou lhe facultou os meios necessários ao cumprimento).
Conforme observou o Ac.STJ de 12.09.2013, 749/08.0TBTNV.C1.S1, Cons. Moreira Alves (DGSI), resulta do art.592.1 :CC que na sub-rogação o crédito não se extingue, antes se transfere para o terceiro que cumpre em vez do devedor – mantendo-se assim esse crédito na titularidade do terceiro que cumpriu em substituição dele.
No presente caso, o terceiro é a seguradora, que por sub-rogação legal (at. 136.1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro), que se torna titular do crédito em substituição do seu segurado.
Mas a seguradora não recebe só o crédito, recebe toda a situação jurídica nele envolvida, e nomeadamente os ónus e poderes jurídicos que competiam ao obrigado.
É esta a lógica económica da atividade seguradora: a companhia de seguros fica a substituir o segurado em todos os ónus, poderes jurídicos, privilégios e garantias (cf. arts. 592, 593.1 e 594 :CC) que lhe cabiam na situação jurídica que foi objeto do seguro.
Bem pode a ... – porventura interessada em escapar à arbitragem que foi convencionada pela sua segurada – esgrimir com o princípio res inter alios acta, ou com o regime da cessão de créditos do direito civil numa visão novecentista, senão oitocentista, ou até com uma interpretação restrita e formalista do art. 136.1 do Regime Jurídico do Seguro: está sujeita a todos os poderes jurídicos e sujeições da sua segurada no contrato original, como resulta da lógica económica da atividade seguradora.
Esta conclusão jurídica resulta diretamente da análise económica do direito dos seguros como passa a expor-se:
A moderna análise económica do direito (ver Referências bibliográficas no fim desta nota) desloca a questão da responsabilidade civil, do regime do tratamento do comportamento dos agentes jurídicos para o regime do tratamento do próprio sistema de justiça que é chamado a intervir em situações de conflito.
Põe-se assim a questão não só de reparar a situação particular, o conflito que é levado à apreciação do tribunal, mas sobretudo a questão de corrigir o sistema legal e de justiça que intervém em situações de conflito. A análise económica do direito é, pois, desde logo uma prática crítica do direito.
Esta análise crítica parte das considerações da teoria económica do bem-estar, ela própria um ramo importante da micro-economia (a micro-economia é a parte da análise económica que se refere à tomada de decisões por pequenos grupos: indivíduos, famílias, associações, empresas, organismos do Estado; estuda o modo como os recursos escassos são por eles atribuídos em situações de utilização alternativa).
A análise micro-económica assume que os indivíduos, nessa tomada de decisões, se movem por considerações racionais. No entanto, só é possível um desenvolvimento jurídico destes pressupostos económicos nos limites e no quadro do direito vigente. Os indivíduos actuam normalmente nesse quadro jurídico como actores racionais.
Sobretudo, a primeira preocupação da análise económica do direito é eliminar os regimes jurídicos economicamente ineficientes. Aqui, o dispositivo legal da responsabilidade civil do nosso direito civil revela-se em muitos domínios economicamente ineficiente porque não contém um mecanismo suficientemente dissuasor da prática de ilícitos.
O sistema adotado pelo Regime Jurídico do Contrato de Seguro faz intervir contratualmente uma seguradora para suportar o risco de danos decorrentes da execução de contratos. Ao fim e ao cabo, quem suporta o risco não são as partes desses contratos, mas sim a seguradora, e isso explica a ânsia com que a ... quer aqui escapar à jurisdição de um tribunal arbitral especializado, confiando antes nas demoras e inexperiências da jurisdição comum.
Mas, no fundo, quem socialmente suporta aqui os prejuízos da inexecução dos contratos, não é a concessionária, e não é sequer a seguradora, é a sociedade no seu conjunto, isto é, os cidadãos que pagam os seus impostos e em particular os segurados que pagam os prémios dos seguros.
Este sistema só pode ser ponderado a partir de dados estatísticos sobre os seus efeitos, dados que não podemos analisar aqui. Só a ponderação dos resultados poderá fazer-nos partir para a análise crítica da solução legislativa encontrada.
Referências bibliográficas.
1960. RH. Coase, “The problem of social cost” – Journal of Law and Economics 3:1-44.
1970. G. Calabresi, The costs of accidents: a legal and economic analysis. Yale Univ. Press, New Haven, Conn.
1999. Werner Z. Hirsch, Law and economics. An introductory analysis. 358 pp., Academic Press, N.York
2003. R. Posner, Economic analysis of law. 6ª ed., Little, Brown, Boston.
2013. Th. Piketty, Le capital au XXIe siècle. 970 pp., Seuil, Paris.
Dúvida não pode aqui haver, portanto, de que uma interpretação do direito economicamente eficiente, e a única à face da lei e da jurisprudência, é a que resulta da sentença recorrida. Improcedendo inteiramente, pelo exposto, as conclusões da recorrente. Sentença que aqui se confirma na íntegra.
Decisão.
Assim, e pelo exposto, acordamos em julgar improcedente o recurso e confirmamos na íntegra a sentença recorrida.
Custas pela recorrente, com a taxa de justiça da tabela I-C anexa ao Regulamento respetivo – art. 13.3 do mesmo Regulamento e lista de ações do Portal Citius..
Lisboa, 2017.10.17
João Ramos de Sousa
Manuel Ribeiro Marques
Pedro Brighton