Decisão Texto Integral
Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO
MR, Réu na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, contra si foi intentada por OS interpôs o presente recurso de apelação da sentença que julgou parcialmente procedente tal ação.
Na Petição Inicial, apresentada em 08-02-2018, a Autora peticionou que fosse:
a) declarado que a Autora é a única dona e exclusiva proprietária da fração autónoma designada pela letra …, correspondente à Habitação …, no Piso Três, com dois lugares de estacionamento com os números … e … e uma arrecadação com o n.º 8, todos no piso menos três, do prédio urbano sito na Av. …, n.º … e Rua …, n.º …, … A e …B da Freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da dita Freguesia;
b) o Réu condenado a reconhecer o direito de propriedade da Autora;
c) o Réu condenado a entregar devoluta de pessoas a referida fração;
d) o Réu condenado a pagar a título de indemnização já líquida a quantia de 178.000,00 € (cento e setenta e oito mil euros) calculada até à data da entrada da presente ação, a que acresce a quantia mensal de 2.500,00 € até à entrega da fração, e juros de mora vencidos e vincendos;
e) o Réu condenado no pagamento da quantia a liquidar em execução de sentença correspondente ao pedido indemnizatório de pagamento do transporte da mobília da Autora de Bruxelas para a referida fração e dos custos em que incorreu e incorre com o pagamento do espaço físico onde essa mobília se encontra depositada.
A Autora alegou, para tanto e em síntese, ser a proprietária da referida fração autónoma, de que a sua irmã, falecida em 29-06-2010, era usufrutária e que o Réu, desde essa data, ocupa, sem que tenha qualquer título para tal, apesar de ter sido interpelado, incluindo através de notificação avulsa, para a entregar, impedindo que a Autora, que residia e trabalhava na Comissão Europeia, em Bruxelas, e se reformou em junho de 2011, tenha passado a residir e acomodar os seus móveis na aludida fração, como pretendia, bem como a beneficiar de ajudas de custo para essa mudança, mais obstando a que pudesse auferir, com o respetivo arrendamento, um rendimento, tendo em conta os valores de renda para uma fração com as caraterísticas daquela (entre 2010 e 2013 - 1.500 € mensais; durante o ano de 2014 - 2.000 € mensais; de 2015 até à data de propositura da ação - 2.500 € mensais).
O Réu apresentou Contestação, na qual se defendeu por exceção e por impugnação, alegando, em síntese, que ocupa a fração em causa com autorização expressa da Autora, até porque, se assim não fosse já há muito esta teria tentado que ele saísse do imóvel, dada a animosidade que a mesma teve contra o Réu, do qual tem um ódio visceral ao nunca o ter aceitado como companheiro e depois como marido da sua irmã, BS, com quem ele foi casado até à morte desta, há cerca de 8 anos; foi por razões fiscais que a compra foi efetuada pela Autora, tendo ficado consagrado o usufruto vitalício a favor daquela sua irmã; acedendo a uma das últimas vontades da irmã, a Autora, em janeiro de 2010, redigiu e entregou ao Réu e à mulher deste um documento (doc. 1), pelo qual declarou a favor de ambos o comodato gratuito, incondicional e sem prazo da fração, só caducando com a morte dos dois comodatários. O Réu também deduziu reconvenção (indicando para esta o valor de 475.000 €) e pediu a condenação da Autora como litigante de má fé.
A Autora replicou, defendendo a improcedência da exceção e da reconvenção.
Realizou-se em 13-02-2019 audiência prévia, na qual foi proferido despacho saneador em que se decidiu fixar o valor da causa em 653.000 € (178.000 € + 475.000 €), absolver o Réu da instância no tocante ao pedido referido em e), bem como rejeitar a reconvenção, mais tendo sido proferido despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Foi efetuada perícia pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária, tendo por objeto apurar (1.º) se a Autora apôs a sua assinatura no referido documento 1 e (2.º) se o texto constante do documento é temporalmente contemporâneo da assinatura ou posterior à mesma. O Laboratório informou que apenas era possível que a perícia incidisse sobre a 1.ª questão (ofício de 18-07-2019), tendo enviado o relatório pericial em 24-02-2020.
Em 23-04-2021, a Autora efetuou junção documental, que foi admitida por despacho proferido no decurso da audiência final de julgamento, a qual se realizou em duas sessões.
Em 09-01-2022 foi proferida a sentença recorrida, cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Em face do exposto julgo a acção parcialmente procedente e, em consequência, decide-se;
- reconhecer que a Autora é a proprietária da fracção autónoma designada pela letra …, correspondente à Habitação …, no Piso Três, com dois lugares de estacionamento com os números … e … e uma arrecadação com o n.º 8, todos no piso menos três, do prédio urbano sito na Av. …, n.º … e Rua …, n.º …, … A e …B da Freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da dita Freguesia;
- condenar o Réu a reconhecer a Autora é a proprietária da fracção autónoma designada pela letra I, correspondente à Habitação B, no Piso Três, com dois lugares de estacionamento com os números 13 e 14 e uma arrecadação com o n.º 8, todos no piso menos três, do prédio urbano sito na Av. …, n.º … e Rua …, n.º …, … A e …B da Freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da dita Freguesia;
- condenar o Réu a entregar à Autora a fracção autónoma designada pela letra I, correspondente à Habitação B, no Piso Três, com dois lugares de estacionamento com os números 13 e 14 e uma arrecadação com o n.º 8, todos no piso menos três, do prédio urbano sito na Av. …, n.º … e Rua …, n.º …, … A e …B da Freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da dita Freguesia;
- absolver o Réu do demais peticionado.
Custas pela Autora e pelo Réu, na proporção de metade para cada um.
Registe e Notifique.”
Inconformado com esta decisão, veio o Réu interpor o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
a) O tribunal a quo aceitou como facto provado decidiu que o documento exarado pela autora consubstanciava um contrato de comodato;
b) Foi provado a fidedignidade e genuinidade desse contrato nos termos da lei e com a perícia efectuada à letra e assinatura da autora;
c) O referido contrato corporiza um conjunto de termos e condições de entrega e de uso do imóvel pelo réu e sua falecida mulher, que a autora não pôs em causa;
d) Que no contrato em si ficou para o que mais aqui interessa em face da decisão do tribunal a quo, que não é válida a cláusula estipulada pela autora no nº 8 do documento, em que consagra a que o acordo é vitalício e que só caduca por morte do último dos comodatários, in casu, o réu;
e) Também é estipulado no referido acordo / contrato, que a autora renuncia á restituição do imóvel até que se verifique a morte do último comodatário, in casu, o réu;
f) Em sentido contrário, veio o tribunal a quo contrariar os fundamentos, a vontade e a liberdade contratual da autora e dos direitos consagrados por esta a favor do réu;
g) O tribunal a quo além de não contextualizar o envolvimento da situação social do réu em face dos seus anos 82 anos e de fazer do imóvel a sua casa de morada de família, estribou a sua decisão numa jurisprudência que se respeita e aceita mas que não encaixa na situação e no caso em concreto em face da realidade objectiva do réu;
h) O réu pelo documento exarado pela autora que o vincula e legitima a usar o imóvel da mesma até á sua morte, decorre do uso do mesmo um prazo até agora de 12 anos, determinando-se esse esse uso para o fim consagrado no art. 65º da CRP, de habitação e casa de morada de família;
i) Não pode, no nosso entendimento, o tribunal a quo determinar ou alterar a vontade e a liberdade contratual do autor de um documento, quando o mesmo quis e pretendeu os efeitos nele inscritos, e quando esse documento é aceite e validado pelo tribunal para efeito de prova material apresentada;
j) Por tudo o que se alegou e concluiu, entende o réu, que houve uma errada apreciação da norma jurídica aplicável, uma errada apreciação da vontade da parte que declarou e assumiu a formalização do comodato a favor do réu e de uma má interpretação do contexto e da situação factual do réu em face da necessidade do mesmo continuar a usar o imóvel na qualidade de comodatário, tendo por base o nº 1 do art. 1137º do CC,
l) em que notoriamente, apesar de não ter sido estipulado pela autora um prazo certo, foi no entanto definido um prazo com a morte do réu, tendo o citado o imóvel sido entregue ao mesmo para um uso determinado, tendo aquele que entregar esse imóvel logo que o uso finde, que, naturalmente ainda não aconteceu por não ter ocorrido o seu decesso,
Termina o Réu-Apelante, pedindo que seja concedido provimento ao presente recurso de apelação, devendo a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à entrega do imóvel pelo Réu à Autora ser revogada e substituída por outra que mantenha o continuado uso do imóvel pelo Réu, respeitando-se os termos do comodato em vigor e que este direito só caduque com a morte dele.
Foi apresentada alegação de resposta pela Autora, com ampliação do âmbito do recurso, bem como interposto recurso subordinado, com as seguintes conclusões:
Das contra-alegações:
A) O Recorrente não tem razão ao alegar que o douto tribunal a quo aplicou incorretamente o regime jurídico do comodato;
B) O douto tribunal a quo andou bem ao interpretar o disposto no art.º 1137.º do CC, nomeadamente que nos casos de comodato vitalício não se aplica o n.º 1, mas sim o n.º 2 da referida norma, pelo que o comodatário tem de entregar a coisa ao comodante assim que este exigir a entrega;
C) Deve por isso ser negado provimento às alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente;
Da ampliação do âmbito do recurso:
D) Andou mal o douto tribunal ao ter dado como provados os factos provados 7.º e 8.º,
E) Andou mal por ter baseado a sua motivação apenas no relatório do Laboratório de Polícia Científica, por ter descurado em absoluto a análise criteriosa do próprio documento “contrato de comodato” e por não ter valorado como lhe competia os emails traduzidos juntos com o requerimento de 30/06/2021, não impugnados; os documentos em branco assinados pela irmã da Recorrida numerados como Docs. 5 e 6 e juntos com a Réplica, não impugnados; as declarações de parte do Recorrente; as declarações de parte da Recorrida, o depoimento da testemunha AS e o depoimento da testemunha JMS, que são os meios probatórios que impunham decisão diferente;
F) A Recorrida é a única pessoa, porque é um facto pessoal seu, que pode dizer com propriedade se assinou ou não assinou o “contrato de comodato” e o douto tribunal a quo desvalorou por completo o seu depoimento sem ter justificado sequer a razão;
G) Andou mal o douto tribunal a quo ao não ter usado as regras da lógica e do bom senso na análise desta questão, pois que ter dado como provado os factos 7.º e 8.º é o mesmo que aceitar todas as contrariedades que se provaram, nomeadamente:
· O documento refere que foi assinado em 18/10/2010, dizendo o Recorrente que foi assinado pela Recorrida à sua frente, só que, conforme emails traduzidos juntos com o requerimento de 30/06/2021, a Recorrida nessa data estava em Bruxelas em trabalho, não se encontrando em Lisboa para poder assinar o que quer que fosse à frente do Recorrente;
· A Recorrida alegou que deixou à irmã várias folhas assinadas em branco e provou tal alegação com os documentos juntos com a réplica como Docs. 5 e 6, mas o douto tribunal a quo nem fez caso de tal prova;
· O “contrato de comodato” é óbvia e nitidamente um texto feito à máquina e colado em cima de folhas assinadas em branco, tanto que as suas duas folhas estão ambas assinadas, quando a prática corrente e usual é rubricar as folhas e assinar a última;
· A Recorrida deu a sua casa de usufruto à irmã em 21/05/2017, logo não faria nenhum sentido dar-lhe depois um comodato;
· Se a Recorrida quisesse dar o uso da sua casa também ao Recorrente, poderia tê-lo feito em 2007, logo se não fez é porque não quis (assim como não quer) dar o uso da sua casa ao Recorrente;
· Se a Recorrida tencionava voltar para Portugal e viver na sua casa após a sua reforma que aconteceu em 2011, não daria nunca, um ano antes, a sua casa de comodato ao Recorrente.
· Se a Recorrida pediu ao Recorrente que lhe devolvesse a casa e que cessasse a ocupação ilegal em 2012, óbvio é que não lhe tinha dado, menos de um ano antes, qualquer tipo de direitos, quando muito comodato.
H) Além das contrariedades e da falta de razoabilidade na fixação dos factos 7.º e 8.º como factos provados, comete ainda o douto tribunal a quo o erro de se basear, apenas e só, no relatório da Polícia Científica, quando tal relatório apenas evidenciou o óbvio e já confessado pela Recorrida – de que a assinatura era dela, mas não tinha assinado nenhuma contrato de comodato – mas que quanto à questão de fundo – saber se o texto tinha sido implantado – já nada refere, logo não é prova idónea para provar o que quer que seja;
I) Andou mal o douto tribunal a quo ao não ter valorado os Docs. 5 e 6 juntos com a réplica e que demonstram que tanto a Recorrida como a falecida irmã deixaram a uma e a outra várias folhas assinadas em branco;
J) Pelo que o douto tribunal deveria ter dado como provado que a Recorrida nunca assinou qualquer contrato de comodato que fosse a favor do Recorrente, devendo os factos 7.º e 8.º passarem a ter a seguinte redação “A Autora não assinou o documento junto com a contestação como Doc. 1.”;
K) Ou então, caso não tivesse ficado plenamente convencido, então deveria ter dado tal facto como não provado, pois que, nos termos do disposto no art.º 414.º do CPC, quando o tribunal fica na dúvida deve resolvê-la contra a parte a quem aproveita o facto, sendo que aproveitando o contrato ao Recorrente, deveria ter sido contra este que se resolveria a questão – coisa que o douto tribunal a quo não fez – adicionando-se um facto à lista de factos não provados, com a seguinte redação: “A Autora assinou o documento junto com a contestação como Doc. 1.”;
Do recurso subordinado:
L) Andou mal o douto tribunal a quo ao ter dado como não provado o facto 1.º dos factos não provados;
M) Andou mal ao ter baseado a prova de tal facto somente no depoimento da testemunha IM, descurando por completo os dois relatórios de avaliação da Century21 e o print do site Imovirtual juntos com o requerimento datado de 23/04/2021, não impugnados e a caderneta predial junta com a petição inicial, que são os meios probatórios que impunham decisão diferente;
N) O douto tribunal a quo cometeu grave erro ao ter tomado a posição de que a única maneira possível de se poder chegar ao valor locativo de uma fração é entrando nessa fração – especialmente neste caso em que o Recorrente impede a entrada na fração a qualquer pessoa;
O) O douto tribunal a quo esquece-se que para se poder chegar ao valor locativo de uma fração pode-se basear nas descrições prediais, nomeadamente na composição, na localização, no valor patrimonial tributário e nas áreas e no conhecimento do prédio onde está inserida a fração, nas suas características construtivas e, por comparação, no conhecimento de outras frações do mesmo prédio – que foi o que a testemunha IM fez, a qual, até trabalha numa loja sito no mesmo prédio;
P) Mas o douto tribunal também o poderia ter feito, se o quisesse, pois que bastava valorar as provas que foram juntas, nomeadamente os dois relatórios de avaliação da Century21 e o print do site Imovirtual juntos com o requerimento datado de 23/04/2021, não impugnados e a caderneta predial junta com a petição inicial;
Q) E da análise da prova – que deveria ter sido feita e não foi – chegar-se-ia à conclusão de que o valor locativo da fração é de € 2.400,00;
R) Pelo que o douto tribunal deveria ter dado como provado que o valor locativo da fração é de € 2.400,00, devendo o facto não provado 1.º ser adicionado à lista de factos provados, com a seguinte redação: “Atenta a localização da fracção autónoma descrita no ponto 1º dos Factos Provados o valor de renda praticado para imóveis desta dimensão, com garagem, ronda os € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) mensais.”;
Além disso,
S) Andou mal o douto tribunal ao ter tomado a posição de que este caso era um caso de simples privação do uso de um imóvel e depois ter concluído que, como não tinha sido feita prova de que a Recorrida tinha intenção de usar a fração, então que não tem direito a indemnização;
T) Andou mal porque decidiu que a Recorrida não tinha demonstrado interesse na utilização da fração, pois que cotejados os autos resulta precisamente o contrário, uma vez que a Recorrida alegou e demonstrou nos autos que tinha toda a intenção de usar a fração em causa, desde pelo menos da data em que se reformou em 2011, sendo provas disso a notificação avulsa e as cartas a interpelar o Recorrente a desocupar a casa e juntas com a petição inicial, o depoimento da testemunha AS acima transcrito e dois relatórios de avaliação, um especificamente vocacionado para o arrendamento, lá está, da fração – tudo nem sequer valorado pelo douto tribunal a quo;
U) Mas mesmo que tal não tivesse ficado demonstrado – o que não se concede e se admite por mero dever de patrocínio – ainda assim, aplicou o douto tribunal erradamente a lei, sendo claríssimo que a privação do uso do imóvel confere ao proprietário o direito a ser indemnizado, sendo vasta a jurisprudência, nomeadamente um acórdão recentíssimo, de Janeiro 2022, do Supremo Tribunal de Justiça, identificado nas alegações supra, que tem o seguinte sumário:
“I. A privação do uso de um prédio urbano, de rés-do-chão, com cinco divisões e com um valor locativo de €460,00, decorrente de acto ilícito de quem, não tendo título legítimo para o ocupar, persiste nessa actuação, mesmo depois de interpelado para o entregar, representa para os proprietários um dano autónomo.
II. Do facto de não terem provado a vontade de arrendar o prédio não deve retirar-se que os autores não pretendam dele extrair, como bem entenderem, na qualidade de proprietários, as utilidades que aquele estará em condições de lhes facultar, não se tendo provado qualquer circunstância que, não fora a ocupação que se vem registando, revele que não o possam levar a efeito.”
V) Pelo que a tese do douto tribunal a quo, além de não ter respaldo com a realidade pois que a Recorrida demonstrou – e bem! – que tinha todo o interesse em utilizar a fração, também não tem apoio na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, incluindo o Supremo Tribunal de Justiça que, ainda há poucos meses se debruçou sobre esta matéria em sentido diametralmente oposto à sentença aqui recorrida.
Termina a Autora defendendo que seja negado provimento ao recurso interposto pelo Réu, mantendo-se a douta decisão recorrida na respetiva parte, e que seja dado provimento à ampliação do âmbito do objeto do recurso e ao recurso subordinado.
O Réu não apresentou alegação de resposta à matéria da ampliação e do recurso subordinado.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir (pela ordem que nos parece lógica):
1.ª) Se deve ser modificada a decisão da matéria de facto, no tocante aos pontos 7 e 8 dos factos provados e ao ponto 1.º dado como não provado;
2.ª) Se entre Autora e Réu (e a falecida mulher deste) foi (ou não) celebrado um contrato de comodato vitalício e, na afirmativa, da validade do mesmo;
3.ª) A concluir-se pela inexistência ou invalidade do contrato de comodato, se é devida à Autora indemnização pela ocupação ilícita da fração em apreço.
Dos Factos
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos o que consta entre parenteses retos, por estar plenamente provado; assinalámos com asterisco os pontos impugnados):
1. Encontra-se inscrita a favor da Autora [mediante ap. 18, de 2007/05/28] a aquisição por compra a GL da fração autónoma designada pela letra I, correspondente à Habitação B, no Piso Três, com dois lugares de estacionamento com os números 13 e 14 e uma arrecadação com o n.º 8, todos no piso menos três, do prédio urbano sito na Av. …, n.º … e Rua …, n.º …, … A e …B da Freguesia de São Sebastião da Pedreira, Concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número … da Freguesia de São Sebastião da Pedreira.
2. Foi outorgada em 21 de maio de 2007, no Cartório Notarial de Lisboa, escritura pública de compra e venda, no âmbito da qual GL declarou vender à aqui Autora a propriedade de raiz da fração autónoma descrita no ponto 1., e a BS, irmã da Autora, o usufruto vitalício da referida fração autónoma, as quais declararam aceitar essas vendas.
3. BS faleceu em 29 de junho de 2010 [aos 74 anos de idade – certidão junta pelo Réu com o requerimento de 19-04-2018].
4. O Réu contraiu matrimónio com BS em 13 de março de 1989 em Las Vegas, Estados Unidos da América, sob o regime imperativo da separação de bens, sendo o matrimónio transcrito para Portugal em 15 de março de 2011.
5. A Autora através de notificação judicial avulsa, a qual correu termos no J3, do Juízo Local Cível de Lisboa sob o n.º …/…., e no âmbito da qual o Réu foi notificado em 25-10-2016, interpelou o mesmo para abandonar a fração autónoma descrita no ponto 1.
6. Até à presente data o Réu ocupa a fração objeto da presente ação.
* 7. A Autora assinou a frente do documento no qual se lê:
“OS
Rue de …, …
1050 Bruxelles
OS, divorciada, titular do bilhete de identidade …, NIF …, residente na Rue de …, …, 1050 Bruxelas, declara para os efeitos tidos por convenientes e de acordo com a sua vontade, que:
1. É legítima possuidora do da fracção autónoma individualizada pela letra “I”, correspondente á habitação B no piso 3, do prédio urbano sito na Avenida …, n.º … e Rua …, n.ºs …, …-A e …-B, freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa e descrito na Nona Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….
2. A ora declarante, sem prejuízo da escritura de compra e venda celebrada no dia 21 de Maio de 2007, no Cartório notarial de Lisboa, entregou e cedeu a partir de Maio de 2007, gratuitamente, a BS, casada, titular do bilhete de identidade …, NIF … e residente na Rua …, n.º … – …º B, em Lisboa e ao seu marido, MR”
* 8. A Autora assinou o verso do documento no qual se lê:
“MR, casado, titular do bilhete de identidade …, NIF …, residente na Rua …, n.º … – … B, em Lisboa, a fracção autónoma descrita em 1. para que dela exclusivamente se sirvam e usufruam nos termos legais.
3. Atendendo á idade dos comodatários, os quais, cada um deles tem nesta data mais de 70 anos e idade, o prazo do presente acordo é vitalício e só caduca pela morte do último dos comodatários, renunciando a declarante à restituição do imóvel até que se verifique a morte do último dos comodatários.
4. Os comodatários deverão cuidar e conservar o imóvel no estado em que o receberam, ficando às suas custas todas as despesas inerentes ao seu uso, nomeadamente, água, luz gás e condomínio e dos danos e prejuízos vierem a causar ao mesmo ou terceiros.
5. Caso a fracção autónoma venha a necessitar de obras interiores, ou o prédio aonde a mesma está integrada venha a sofrer danos, deteriorações ou quaisquer eventos que necessite de reparação ou reconstrução, tais obras correm por conta dos comodatários.
Bruxelas, 18 de Janeiro de 2010
OS”.
Na sentença foi considerado Não Provado o seguinte facto:
* 1.º Atenta a localização da fração autónoma descrita no ponto 1º dos Factos Provados o valor de renda praticado para imóveis desta dimensão, com garagem, ronda os 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros) mensais.
1.ª questão – Da modificação da decisão da matéria de facto
Pontos 7. e 8.
Na sentença recorrida, considerou-se provado que a Autora assinou o documento cujo original consta de fls. 183-184 dos autos, o que se motivou nos seguintes termos:
«A decisão do tribunal fundou-se na ponderação.
- do teor do documento cujo original se encontra a fls. 183 e 184, e constituído de duas folhas dactilografadas, ambas assinadas, e com o respectivo verso em branco;
- do teor do relatório elaborado pelos peritos do Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária que realizaram a perícia à assinatura aposta nas duas folhas do documento de fls. 183 e 184.
A resposta, que teve em conta que o ónus da prova da veracidade da assinatura incumbia ao Réu, fundou-se na circunstância de tendo sido arguida a falsidade da assinatura atribuída à Autora, o Réu produziu prova idónea à demonstração da veracidade dessa assinatura.
Com efeito, o relatório elaborado pelos peritos do L.P.C. concluiu “como provável que a escrita suspeita das assinaturas” em causa seja da autoria da Autora, o que, tendo em conta os especiais conhecimentos destes peritos, que nenhuma relação têm com as partes, e estão inseridos num organismo estadual de polícia científica, que justificaram as conclusões a que chegaram, expondo a metodologia utilizada e juntando os elementos de que se socorreram para o efeito, constituiu o elemento decisivo da formação da convicção do tribunal.
O tribunal teve ainda em conta que as testemunhas arroladas pela A. nada sabiam sobre este documento, não presenciaram a sua assinatura pela A. nem tinham conhecimento das circunstâncias em que esta ocorreu, não sendo deste modo feita prova de que a assinatura fora aposta em folhas em branco.
Por último, sendo certo que as declarações prestadas pela Autora e pelo Réu foram frontalmente opostas, e dado o respectivo interesse na decisão da causa a seu favor, e sendo certo que no âmbito destas as partes não reconheceram nenhum facto que os desfavorecesse, as mesmas não revestiram qualquer relevância probatória.»
A Autora-Apelante (em sede de ampliação do âmbito do recurso) defende que seja considerado provado que a Autora não assinou o documento junto com a Contestação como doc. 1 ou, pelo menos, que seja considerado não provado que a Autora assinou o documento junto com a Contestação como doc. 1.
Conforme previsto no art. 662.º, n.º 1, do CPC, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Para tanto, foi ouvida neste Tribunal da Relação a gravação integral da prova produzida em audiência de julgamento, analisado o relatório pericial, bem como todos documentos juntos aos autos, tendo o conjunto da prova sido analisado à luz de regras de experiência e segundos juízos de normalidade.
Da maior relevância se revestiu a análise do original do referido documento, sendo certo que não se discute (já) que a assinatura aí aposta é da autoria da Autora; não só esta admitiu, logo na Réplica, essa possibilidade, alegando que tanto ela como a irmã dispunham de folhas em branco assinadas (pela outra) para a eventualidade de uma delas precisar (e juntando folhas assinadas pela irmã), como sobretudo, nas declarações prestadas em audiência, confirmou serem suas as assinaturas no doc. 1, afirmando que a sua irmã guardava folhas em branco que ela (Autora) tinha assinado.
Observámos com toda a atenção as duas folhas do referido documento, numa análise que não foi, sublinhe-se, objeto da perícia, constatando-se, desde logo, que se tratam de duas folhas de papel, não se tratando, pois, da frente e verso de uma única folha; tais duas folhas apresentam características diferentes, até na coloração, o que é visível a olho nu; de igual modo, as assinaturas (além de algumas caraterísticas diferentes) têm uma coloração distinta, aparentando não terem sido feitas com a mesma caneta ou, pelo menos, com a mesma caneta na mesma ocasião (para o que não se vê qualquer explicação, até porque nada indica que numa das assinaturas a caneta tenha começado a “falhar”); são duas páginas/folhas A4, constando da primeira um pequeno “cabeçalho”, em tom mais escuro, no canto superior esquerdo com o nome e morada da Autora; nessa primeira página consta uma assinatura completa, ao fim de 17 linhas de texto (em carateres impressos), que termina quando existem ainda cerca de 10 cm de espaço livre na página (ou seja, 1/3 do espaço da folha), seguindo-se, na página seguinte, quase 7 cm de espaço em branco, depois outras 17 linhas de texto, seguidas das menções “Bruxelas, 18 de Janeiro de 2010 e, na linha seguinte, OS, tudo em carateres impressos, e infra a assinatura manuscrita.
Ora, o normal teria sido, no contexto que nos foi dado perceber - em que a Autora é descrita pelas testemunhas, amigos de longa data (AS, economista, JMS Advogado, e PL, que foi Diretora de empresa onde a Autora antes trabalhou), como uma pessoa culta, funcionária da Comissão Europeia em Bruxelas (logo habituada a lidar com questões burocráticas) - que as folhas usadas fossem idênticas, que o texto da primeira página ocupasse um espaço maior, com mais linhas na parte inferior - ao invés de ser abruptamente interrompido, ainda com 1/3 de espaço em branco, para ser aposta uma assinatura (isto quando o normal até seria uma rubrica no canto superior ou inferior) - e que tivesse sido usada a mesma caneta para assinar (em ato contínuo).
Ainda quanto à prova documental, atentou-se: (1) na escritura pública de compra e venda da fração em apreço (doc. junto com a PI), outorgada em maio de 2007, em que BS figura como divorciada, fazendo-se menção ao seu bilhete de identidade n.º …; (2) no seu assento de óbito n.º 5801 do ano 2010 (docs. juntos com a PI e pelo Réu a 19-04-2018); (3) na escritura de habilitação de herdeiros outorgada no dia 29 de outubro de 2010 (doc. junto pelo Réu no seu requerimento de 19-04-2018), na qual consta ter comparecido a ora Autora, cabeça de casal da herança e única herdeira da sua irmã BS, falecida “no estado de divorciada de HC”; (4) na carta de 01-06-2011 enviada pelo Banco Santander Totta, S.A. à Autora (doc. junto pelo Réu no seu requerimento de 19-04-2019), informando-a que, “Com referência ao assunto em epígrafe, e na sequência da rectificação efectuada à certidão de óbito da Senhora BS apresentada nesta instituição, no que ao estado civil da mesma diz respeito, somos a informar que em virtude de V. Exa. não ser herdeira da mesma, não nos será possível disponibilizar os referidos saldos a V. Exa.”.
Constatou-se que somente após o óbito, certamente por iniciativa do Réu, foi efetuada a transcrição do casamento, resultando do conjunto destes documentos como muito improvável que a Autora tivesse conhecimento de que a sua irmã era casada com o Réu, tanto mais que logo após o óbito da irmã fez diligências, incluindo junto do Banco Santander Totta, S.A., como se fosse cabeça de casal e única herdeira. Ora, sendo este o convencimento da Autora, desconhecendo que a sua irmã e o Réu fossem efetivamente casados, não se compreende a referência formal feita no aludido doc. 1 ao estado civil de BS, como casada, muito menos a referência ao Réu como seu marido e ao estado civil do mesmo.
Ademais, não se compreende (nem foi avançada explicação alguma para isso) que, a tratar-se de um contrato de comodato, celebrado em documento que o Réu até disse ter sido assinado pela Autora à sua frente, ficasse a constar que havia sido emitido em Bruxelas, quando nem o Réu, nem a irmã da Autora aí se encontravam; sobretudo não se compreende que os identificados comodatários não tivessem igualmente assinado tal documento, tanto mais que estariam, por via do mesmo, a assumir um conjunto de obrigações (cf. pontos 4. e 5).
As testemunhas DP e JFC, amigos do Réu há 18 e 40 anos, respetivamente, prestaram depoimento de forma que se nos afigurou sincera, referindo o primeiro que o MR lhe disse que “havia um documento que lhe dava posse da casa” e o segundo que embora existisse preocupação por parte da BS quanto à casa e depois pressão da Autora para o Réu sair “mais tarde o Senhor MR conseguiu ter um documento que lhe permitia ficar na casa”, aludindo a um documento que este tinha em seu poder. Ora, a ter existido um contrato de comodato celebrado em janeiro de 2010, o normal seria que o Réu, confrontado pela Autora para lhe entregar a casa, desabafando com os seus amigos, como estes disseram que fez - e também foi referido pela testemunha RLA (que disse ser amigo do Réu há mais de 35 anos) -, lhes desse conta da sua indignação e revolta perante a atitude desta, “dando o dito pelo não dito”, pelo que não se compreende que estas três testemunhas não tenham presenciado uma tal reação, sendo certo que acompanharam a vida do Réu e o problema com que este foi confrontado, tendo inclusivamente a testemunha JC aludido ao casamento de Las Vegas como uma “brincadeira” e dito que o casamento “depois foi registado cá”.
Os depoimentos das testemunhas AS, JMS e PL foram prestados de forma que se nos afigurou isenta e merecedora de credibilidade. O primeiro explicou ter sido colega de trabalho da Autora na Comissão Europeia, que a sua mulher era amiga da BS, deu sucintamente conta da compra da casa, situada em frente do prédio onde ele próprio reside (perto do antigo Hospital Particular de Lisboa) da expetativa que a Autora tinha de ficar a viver na casa quando se reformasse, passando a serem vizinhos, nunca esta lhe tendo falado de nenhum comodato. A testemunha JMS referiu ter trabalhado com a Autora desde 1989 em Bruxelas, que a “BS ia comprar o prédio em nome da irmã pois mais tarde ou mais cedo esta seria a herdeira”; explicou que, embora existissem vantagens fiscais em que a compra fosse efetuada pela Autora, dada a sua condição emigrante, com o usufruto já não haveria tais vantagens; referiu que não sabia que a BS e o Réu eram casados. A testemunha PL, amiga da Autora há 30 anos, disse espontaneamente ter visitado algumas vezes a casa, afirmando que a Autora tencionava ficar a viver aí quando regressasse a Portugal; supunha a testemunha que o Réu era companheiro da irmã da Autora.
Não deixou de se ponderar o motivo da demora por parte da Autora em exigir que o Réu lhe entregasse a casa: a circunstância de ela residir e trabalhar na Bélgica, tendo intenção de vir residir para a fração em apreço apenas quando se reformasse, aliada à relação familiar com o Réu, explicam que a Autora tenha aguardado algum tempo até avançar para a via judicial, somente o tendo feito após o seu regresso definitivo ao nosso país e se ter deparado com a inabalável recusa do Réu em deixar a casa, mesmo depois de interpelado por notificação avulsa, requerida em 2016.
Ainda quanto à prova documental, atentou-se especialmente nos documentos juntos pelo Réu atinentes ao estado de saúde da sua mulher (mormente o resumo do internamento do Centro Hospitalar de Lisboa Central relativo a dezembro de 2009 e do relatório clínico de 21-09-2010 do Hospital Particular de Lisboa), dos quais resulta que a falecida BS padecia de doença pulmonar obstrutiva crónica, apresentando, em dezembro de 2009, insuficiência respiratória aguda e pneumonia de aspiração, além das sequelas do AVC hemorrágico hipertensivo sofrido em dezembro de 2009, com hemorragia intracerebral, cortical e subaracnoideia; de salientar que a sua condição se deteriorou ao nível clínico e neurológico (score 5-6), tendo inclusivamente estado sujeita a ventilação mecânica contínua.
Nessa medida, sendo então evidente que a vida da irmã se aproximava do fim, ainda para mais estando a Autora a residir em Bruxelas, não foi produzida nenhuma prova convincente sobre o contexto fáctico que poderia levar a Autora a assinar, em 18 de janeiro de 2010, uma declaração negocial com o teor vertido no doc. 1, sendo inexplicável que pretendesse naquela altura dar de comodato à irmã a fração de que a mesma já era usufrutuária, muito menos a favor do Réu, considerando os sentimentos de desconfiança e inimizade que pelo mesmo nutria (aliás, este, na sua Contestação, considerou que se tratava de ódio), tanto mais sabendo que a sua irmã muito provavelmente não iria sobreviver a este último. Além de se nos afigurar que a irmã da Autora não estaria então em condições de saúde para solicitar à sua irmã um comodato, mesmo que uma tal solicitação tivesse sido efetuada em momento anterior, o normal seria que, a ser atendida, em janeiro de 2010, o texto do documento tivesse um conteúdo diferente. Ademais, tendo a fração sido adquirida há relativamente pouco tempo (menos de 3 anos) nos termos em que o foi, não se tratava sequer de uma casa em que o casal tivesse passado grande parte da vida, tendo as testemunhas (mormente AS) apontado a proximidade da casa ao Hospital Particular de Lisboa, onde a BS recebia tratamentos médicos, como um dos motivos da compra. De salientar que nem a situação financeira do Réu parecia inspirar preocupação, antes se mostrava desafogada, como resultou dos depoimentos das testemunhas que este arrolou, em especial AMV e FB, referindo-se àquele como dono de um estabelecimento comercial de venda de eletrodomésticos em Lisboa, sendo a primeira testemunha seu funcionário e fazendo também de motorista do Réu. Aliás, sabendo a irmã da Autora e o Réu que eram casados (pois pelo menos ambos os cônjuges disso saberiam), este seria o seu único herdeiro, beneficiando da herança constituída pelo património que aquela adquiriu em vida (tendo sido descrita pelas testemunhas, mormente RLA, como uma empresária que teve sucesso nos negócios), pelo que não necessitaria de viver numa casa emprestada. Em suma, não foi produzida nenhuma prova convincente de que a BS tivesse solicitado à irmã o comodato vitalício da casa para si e/ou o seu marido.
Finalmente, também se ponderou o teor das declarações prestadas pela Autora e pelo Réu, tendo a Autora explicado, de forma que se nos afigurou credível, que quando foi viver para a Bélgica, há 30 anos, deixou várias folhas de papel em branco com irmã, até porque os seus filhos tinham ficado cá em Portugal, supondo que o texto do doc. 1 tenha sido acrescentado depois e negando perentoriamente ter assinado um documento com tal conteúdo. Já o Réu, de forma que se nos afigurou pouco credível, afirmou - sem precisar minimamente como, quando e onde - que a Autora assinou o dito documento à frente dele e que ela o tinha preenchido. Porém, a ser assim, a ter o documento sido assinado pela Autora com o conteúdo que do mesmo consta, à frente do Réu (e apenas deste, já que a irmã da Autora estaria então hospitalizada), das duas uma: ou a Autora tinha vindo a Portugal, pelo que não havia razão para indicar que o documento havia sido emitido em Bruxelas; ou o Réu tinha ido à Bélgica, o que não é de todo plausível e nem foi afirmado por ele; de qualquer modo, a ter sido assinado à sua frente, reitera-se a estranheza de um tal documento não ter sido igualmente assinado pelo Réu na mesma altura, ficando um exemplar em poder da Autora, pois caso contrário não se poderia fazer valer do mesmo, por exemplo, no tocante às obras que os comodatários assumiam como sendo da sua responsabilidade.
Em conclusão, ponderando o conjunto da prova produzida, não nos parece que a mesma seja suficiente para dar como provado que a Autora assinou um documento com o conteúdo vertido no doc. 1, não sendo, pois, convicção deste coletivo, que um tal facto se tenha verificado, isto é, que a Autora tenha assinado um documento pelo qual dava de comodato a fração em apreço nos autos, antes se nos afigura bem mais provável que o não tenha feito. Além do aspeto geral do documento (a cujas particularidades fizemos referência), mostra-se convincente toda a prova em contrário que foi produzida, evidenciando que a Autora confiava na sua irmã, mas não no Réu, e desconhecia que estes fossem casados, que a Autora pensava que viria a ser a única herdeira da irmã (fragilizada pela doença) e que após a morte desta (terminando o usufruto) e se reformasse, poderia ficar a residir na casa que tinha adquirido, não nos parecendo credível que tivesse declarado o que consta do documento, apesar de ter aposto a sua assinatura nas duas folhas em branco (uma delas com um cabeçalho).
Portanto, procedem parcialmente as conclusões da alegação de recurso, pelo que se modifica a decisão da matéria de facto, passando os pontos 7 e 8 a terem o seguinte teor:
7. Em data não apurada a Autora apôs a sua assinatura manuscrita nas duas folhas de papel apresentadas com a Contestação como doc. 1 (originais a fls. 183-184) quando das mesmas apenas constava o cabeçalho existente no canto superior esquerdo com os dizeres:
“OS
Rue de …, …
1050 Bruxelles”
E aditando-se ao elenco dos factos não provados o seguinte um ponto com o seguinte teor:
- Quando a Autora apôs a sua assinatura nas duas folhas de papel apresentadas com a Contestação como doc. 1 (originais a fls. 183-184) das mesmas constava o texto com o seguinte teor:
- na primeira folha (frente), “OS, divorciada, titular do bilhete de identidade …, NIF …, residente na Rue de …, …, 1050 Bruxelas, declara para os efeitos tidos por convenientes e de acordo com a sua vontade, que:
1. É legítima possuidora do da fracção autónoma individualizada pela letra “I”, correspondente á habitação B no piso 3, do prédio urbano sito na Avenida …, n.º … e Rua …, n.ºs …, …-A e …-B, freguesia de São Sebastião da Pedreira, concelho de Lisboa e descrito na Nona Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número … da dita freguesia, inscrito na respectiva matriz sob o artigo ….
2. A ora declarante, sem prejuízo da escritura de compra e venda celebrada no dia 21 de Maio de 2007, no Cartório notarial de Lisboa, entregou e cedeu a partir de Maio de 2007, gratuitamente, a BS, casada, titular do bilhete de identidade …, NIF … e residente na Rua …, n.º … – …, em Lisboa e ao seu marido, MR”
- na segunda folha (verso), “MR, casado, titular do bilhete de identidade …, NIF …, residente na Rua …, n.º … – … B, em Lisboa, a fracção autónoma descrita em 1. para que dela exclusivamente se sirvam e usufruam nos termos legais.
3. Atendendo á idade dos comodatários, os quais, cada um deles tem nesta data mais de 70 anos e idade, o prazo do presente acordo é vitalício e só caduca pela morte do último dos comodatários, renunciando a declarante à restituição do imóvel até que se verifique a morte do último dos comodatários.
4. Os comodatários deverão cuidar e conservar o imóvel no estado em que o receberam, ficando às suas custas todas as despesas inerentes ao seu uso, nomeadamente, água, luz gás e condomínio e dos danos e prejuízos vierem a causar ao mesmo ou terceiros.
5. Caso a fracção autónoma venha a necessitar de obras interiores, ou o prédio aonde a mesma está integrada venha a sofrer danos, deteriorações ou quaisquer eventos que necessite de reparação ou reconstrução, tais obras correm por conta dos comodatários.
Bruxelas, 18 de Janeiro de 2010
OS”.
Ponto 1.º dos Factos não Provados
O Tribunal considerou não provado que: Atenta a localização da fração autónoma descrita no ponto 1º dos Factos Provados o valor de renda praticado para imóveis desta dimensão, com garagem, ronda os 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros) mensais. O que foi motivou nos seguintes termos: “A decisão do tribunal fundou-se na circunstância da testemunha MIM, que depôs sobre este facto, e que é a consultora imobiliária à qual a Autora pediu uma avaliação do valor locativo da fracção, ter atribuído esse valor com base apenas no que lhe foi transmitido pela A. sobre as características da mesma, sem ter visitado a fracção, e por conseguinte sem conhecimento directo dessas características e do estado em que esta se encontra.”
A Autora, no recurso subordinado, defende que tal facto deve ser considerado provado, com base no depoimento da testemunha MIM, bem como nos documentos juntos aos autos para prova do valor locativo da fração.
Apreciando.
Do depoimento desta testemunha resultou que o dito “relatório de avaliação” (datado de 21-04-2021 e junto com o requerimento de 23-04-2021) não constitui um verdadeiro relatório de avaliação da fração, tendo aquela explicado que nem visitou a mesma e que a metodologia em que se baseou é a de um estudo de mercado, uma análise comparativa com base na informação veiculada pela Autora (que lhe solicitou o relatório, indicando as caraterísticas da fração) e nas indicações das bases de dados a que os agentes imobiliários têm acesso.
Nessa medida, e não obstante a fração esteja aparentemente em bom estado, face aos depoimentos prestados pelas testemunhas (em particular DM e FB) e às fotografias juntas pelo Réu no seu requerimento de 19-04-2018, o certo é que existe aqui uma considerável margem de imprecisão no tocante ao valor locativo da concreta fração em apreço.
Porém, o facto que ora se discute não é esse, mas tão só o atinente ao valor de renda praticado para imóveis desta dimensão (T3), com garagem e localização (Rua …, em Lisboa). Ora, está provada a localização da fração e, face à certidão do registo predial junta aos autos com a Petição Inicial, verifica-se que tem dois lugares de estacionamento e uma arrecadação. Da caderneta predial junta com a Petição Inicial resulta ainda que a fração tem 4 divisões assoalhadas.
O relatório junto com a Petição Inicial, elaborado em 28-01-2018 por uma conhecida agência imobiliária, reporta-se aos valores médios de mercado do arrendamento praticados no concelho de Lisboa, na zona das Avenidas Novas, para apartamentos T3, indicando valores de renda entre 980 € a 2.200 € consoante a “gama” das casas (do segmento mínimo ao máximo), merecendo-nos credibilidade. Já o relatório de abril de 2021 vem apontar para um “valor estimado” / “preço sugerido” de 2.400 € do que parece ser o concreto apartamento dos autos, situado na Rua …, 47, visando matéria distinta da vertida no ponto fáctico em apreço, pelo que se irá considerar provado o facto que foi alegado, mas de harmonia com o que resulta daquele outro relatório.
Assim, altera-se a decisão da matéria de facto, eliminando-se o ponto em apreço do elenco dos factos não provados e passando a constar como ponto 8. do elenco dos factos provados o seguinte facto:
8. Em janeiro de 2018, o valor de renda praticado para frações (com ou sem garagem) da tipologia (T3) da fração referida em 1. localizadas na zona das Avenidas Novas Lisboa rondava os 980 € a 2.200 € mensais.
Do contrato de comodato
Na sentença recorrida foram tecidas as seguintes considerações de direito (sublinhado nosso):
«A A. fundamentou o pedido de restituição da fracção autónoma identificada nos autos no respectivo direito de propriedade sobre a mesma, e na ofensa desse direito real por parte do Réu em virtude da ocupação desse imóvel sem título.
Muito embora em sede de acção de reivindicação “(...) a causa de pedir deva ser constituída pela alegação de uma forma originária de adquirir, a mesma pode ser preenchida, como foi, pela invocação da presunção que resulta do artigo 7º do Código do Registo Predial,” (Acórdão da Relação de Lisboa de 30/4/2009, relator Manuela Gomes, disponível em www.dgsi.pt).
Ora no caso sub iudice a A. goza da presunção decorrente do registo da propriedade a seu favor, a qual se não for ilidida pelo R. determina o reconhecimento do direito de propriedade invocado pela primeira e que por conseguinte a restituição dessa fracção autónoma só possa ser recusada se o Réu demonstrar dispor de título que legitime a ocupação desta (artigo 1311º, n.º 2, do Código Civil).
Com efeito, “na acção de reivindicação, provado o requisito de propriedade da coisa reivindicada, a restituição será uma consequência directa, a não ser que se prove ter o seu detentor um direito real ou obrigacional que obste ao pleno exercício da propriedade e à restituição peticionada.” (Acórdão do S.T.J. de 31/01/2012, rel. Paulo de Sá, disponível em www.dgsi.pt)
Deste modo “incumbe assim ao réu que pretenda obstar à restituição da coisa, a prova do respectivo facto impeditivo, nos termos do artigo 342º, n.º 2, C.C., ou seja, que é titular de um direito (real ou de crédito) que legitime a recusa de restituição” (Acórdão do S.T.J. de 27/10/2011, Rel. Granja da Fonseca, disponível em www.dgsi.pt)
Contrapõe o R. à pretensão da A. a sua qualidade de comodatário, invocando que ocupa a fracção em causa com autorização da A., a qual declarou por escrito dar-lhe essa fracção de comodato até à sua morte.
Resultou apurado que a Autora assinou a frente do documento no qual se lê: “(…)”
Mais se apurou que a Autora assinou o verso do documento no qual se lê: “(…)”
Decorre do referido documento, repartido por duas folhas, ambas assinadas pela Autora, que aí se encontra materializada uma declaração da mesma em que esta consigna ter entregue e cedido gratuitamente ao Réu a fracção autónoma identificada nos autos para que dela se sirva, sendo essa cedência vitalícia, só caducando pela morte do comodatário.
Efectivamente, e face ao disposto no art.º 376º, nº 1 e nº 2, do C. Civil, o documento particular cuja autoria esteja reconhecida, como sucede no caso em análise, faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, considerando-se os factos compreendidos na declaração provados, em termos de prova plena, na medida em que sejam contrários aos interesses do declarante.
Deste modo é de considerar que a referida declaração consubstancia um contrato de comodato, definido pelo artigo 1129º do C. Civil como o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.
Conforme decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 22.9.2016 não existe qualquer dúvida que “um comodato celebrado entre os proprietários de um imóvel e terceiros não vincula os futuros adquirentes do mesmo imóvel”, “nem as partes do contrato de comodato lhe poderiam atribuir semelhante eficácia, por a tanto se opor a regra da tipicidade dos direitos reais”. (rel. Maria dos Prazeres Beleza, disponível em www.dgsi.pt).
No entanto, e dado que a relação jurídica de comodato vincula as partes do respectivo contrato importa aferir o alcance da estipulação do seu carácter vitalício, e desse modo se recai sobre o Réu a obrigação de restituir à Autora o imóvel objecto do comodato.
Dispõe o artigo 1137º do C. Civil que se os contraentes não convencionaram prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodante logo que o uso finde, independentemente de interpelação, se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que lhe seja exigida. Verifica-se alguma controvérsia na doutrina e na jurisprudência no que respeita à admissibilidade legal do contrato de comodato vitalício.
De um lado perfilam-se aqueles que entendem ser “difícil entre nós, justificar qualquer limite legal de duração do contrato de comodato” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume II, 4ª ed. revista, pág. 756).
No entanto, e dado o carácter absoluto e a natureza de tipicidade e publicidade inerentes aos direitos reais, não pode este tribunal subscrever esse entendimento.
Pelo contrário, e conforme decidido pelo Acórdão do S.T.J. de 16.11.2020, entende-se não ser admissível um contrato de comodato celebrado vitaliciamente porquanto “se assim fosse, coincidiria quanto ao conteúdo, a um direito de uso e habitação, direito real tipificado no art. 1408º do C. Civil”. (rel. Alves Velho, disponível em www.dgsi.pt)
Com efeito, considerando a unidade do sistema jurídico português não se afigura aceitável permitir por via de contrato que não respeita as exigências de forma e de publicidade inerentes aos direitos reais a constituição de direito obrigacional que na prática teria o alcance de alguns dos direitos reais tipificados na lei.
Por outro lado, e tal como referido por Rodrigues Bastos, “o uso da coisa, no comodato, deve durar por todo o tempo estabelecido no contrato. Discute-se se será admissível um comodato por mais de trinta anos, dado o que preceitua o art. 1025.º (para a locação).
Embora a lei não marque, para esta hipótese, um limite à duração do uso, a verdade é que tem de considerar-se a cedência sempre limitada a certo período de tempo, sob pena de desrespeitar a função social preenchida por este contrato, cuja causa é sempre uma gentileza ou favor, não conciliável com o uso muito prolongado do imóvel. Bastará para isso pensar que um comodato muito prolongado de um imóvel converter-se-ia em doação (indirecta) do gozo da coisa, ou, se fosse para durar por toda a vida da outra parte, o comodato descaracterizar-se-ia em direito de uso e habitação”. (Notas ao Código Civil, vol. IV, pág. 251 e 252).
Deste modo refere-se no Acórdão do S.T.J. de 16.11.2020 “em razão dessa nota de temporalidade, assumida como traço essencial do comodato, a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que o «uso determinado», a que se alude no art. 1137º, do CC, pressupõe uma delimitação da necessidade temporal que o comodato visa satisfazer, não podendo considerar-se como determinado o uso de certa coisa se não se souber, quando aquele uso não vise a prática de actos concretos de execução isolada mas antes actos genéricos de execução continuada, por quanto tempo vai durar, caso em que se deve haver como concedido por tempo indeterminado. Assim, o uso só é determinado se o for também por tempo determinado ou, pelo menos, determinável”. (rel. Maria da Graça Trigo, disponível em www.dgsi.pt).
Concorda-se assim com a posição assumida no Acórdão do S.T.J. de 16.11.2020 acima citado quando considera que “no quadro normativo vigente, não seria de aceitar um comodato que subsistisse indefinidamente, seja por falta de prazo, seja por ele ter sido associado a um uso genérico, de tal modo que o comodatário pudesse manter gratuitamente e sem limites o gozo da coisa”. (no mesmo sentido ver jurisprudência aí citada).
Concorda-se igualmente conforme decidido no Acórdão do S.T.J. de 21.3.2019 que essa “posição (...) é, (... ) a mais consentânea com o princípio geral emanado do art. 237º, do CC, segundo o qual, em caso de dúvida, nos contratos gratuitos deve prevalecer o sentido da declaração menos gravoso para o disponente “ , e que a vingar tese diversa “ o comodatário ficaria numa posição bem mais sólida e favorável do que se tivesse, por exemplo, celebrado um contrato de arrendamento (cf., quanto à duração do contrato de locação o art. 1025º, do CC), solução que, salvo o devido respeito, a ordem jurídica não poderia tolerar”.
Sendo certo que relativamente ao contrato de arrendamento o legislador afastou o seu carácter vitalício, estabelecendo ainda um prazo máximo para a respectiva duração, não se aceita que não esteja ínsito no contrato de comodato idêntica limitação, que decorre da natureza não perpétua desse contrato.
Aliás se assim não sucedesse nada obstaria à estipulação de comodato que perdurasse não só durante a vida do comodatário mas igualmente durante a vida dos respectivos herdeiros, traduzindo a constituição de um verdadeiro direito real de uso e habitação sobre o imóvel (artigo 1484º do C. Civil).
Deste modo entende este tribunal que não sendo válida a estipulação de comodato vitalício o contrato de comodato celebrado entre as partes tem de ser considerado como sem prazo convencionado e por conseguinte sujeito à disciplina do n.º 2 do artigo 1137.º do C. Civil. Neste sentido aliás se pronunciou o Acórdão do S.T.J. de 16.11.2020 atrás citado considerando que “um contrato de comodato como o dos autos em que o tipo de uso da coisa (para habitação das RR.) não está temporalmente definido nem limitado, é de considerar como sendo um contrato de duração indeterminada, sujeito à regra da cessação ad nutum prevista no n.º 2 do art. 1137.º do CC” (citando-se nesse Acórdão no mesmo sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, Vol. XII – Contratos em especial, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, págs. 166 e seg., e o acórdão do STJ de 16.11.2010 (proc. n.º 7232/04), disponível em www.dgsi.pt).»
O Réu não se conformou com este entendimento, pugnando agora pela validade do contrato de comodato vitalício. A Autora, por seu turno, na ampliação do âmbito do recurso, veio defender que nem sequer existia um contrato de comodato.
Vejamos.
De referir, antes de mais, que, face aos factos considerados provados na sentença, não estava evidenciado que o Réu e a sua mulher tivessem, em 18 de janeiro de 2010, produzido, de forma expressa ou tácita, uma declaração negocial no sentido da celebração desse contrato.
Seja como for, nem há que indagar se a ocupação que o Réu vem fazendo da mesma constitui um comportamento concludente a esse respeito, pois, ante os factos provados, na versão modificada por este Tribunal da Relação, é fora de dúvida que não se pode considerar que entre a Autora e o Réu (e a irmã daquela) tenha sido celebrado um contrato de comodato.
Logo, fica prejudicada a apreciação da questão da validade do comodato vitalício, impondo-se concluir, embora por fundamentação não inteiramente coincidente com a vertida na sentença, que o Réu está obrigado a restituir à Autora, por ser a sua proprietária, a fração autónoma reivindicada, não tendo o Réu demonstrado dispor de título que legitime a ocupação que vem fazendo da mesma.
Da indemnização pela ocupação ilícita da fração
A este respeito, foi na sentença recorrida desenvolvida a seguinte fundamentação de direito:
«Por último a A. requereu a condenação do Réu a pagar-lhe a título de indemnização a quantia de €178.000,00 (cento e setenta e oito mil euros) calculada até à data da entrada da presente acção, a que acresce a quantia mensal de 2 500,00€ até à entrega da fracção, e juros de mora vencidos e vincendos.
Ora o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (artigo 1305° do Código Civil) pelo que recai sobre quem ilícita e culposamente violar aquele direito a obrigação de indemnizar o referido proprietário dos danos que lhe causar (artigos 483º, 499º e 563º do C.C.)
No entanto a obrigação de indemnização depende da existência de danos e pressupõe a verificação do nexo de causalidade entre eles e o facto ilícito (artigo 563º do Código Civil). Não se olvida a existência de uma corrente doutrinária e jurisprudencial “que pugna pela indemnização da simples privação do uso”, defendendo que “a perda de possibilidade da utilização do bem quando e como lhe aprouver, tem valor económico e recorre-se para o cálculo da correspondente indemnização.” (in Acórdão da Relação de Guimarães de 19-04-2018, relator Salvador Melo, elencando a doutrina e a jurisprudência nesse sentido, não sufragando no entanto esse entendimento nesse acórdão, disponível em www.dgsi.pt).
No entanto, entende este Tribunal que essa corrente carece de base legal, face aos princípios estruturantes do direito civil nacional legalmente consagrados que reclamam a ocorrência de dano.
Deste modo, e sufragando-se o entendimento exarado no Acórdão da Relação de Guimarães de 19/04/2018, acima referenciado, considera-se que “não basta a simples privação, em si mesma, sendo necessário ainda que se alegue como prova a frustração de um propósito de proceder à utilização da coisa, demonstrando o lesado que a pretenderia usar, dela retirando utilidades que a mesma normalmente lhe proporcionaria, não fora a privação pela actuação ilícita de outrem, o lesante. Não é pois, suficiente a simples privação em si mesma: torna-se necessário que o lesado alegue e prove que a detenção ilícita da coisa frustra um propósito real – concreto e efectivo – de proceder à sua utilização” (disponível em www.dgsi.pt).
Ora sucede que no caso em apreço a Autora não demonstrou a intenção de proceder ao arrendamento da fracção e que com esse arrendamento obteria uma quantia não inferior a 2 500,00 euros e como tal improcede assim a pretendida indemnização fundada no invocado prejuízo que para ela decorre da frustração desse arrendamento.
Conforme se decidiu no Acórdão do S.T.J. de 3/10/2013 (relator Fernando Bento) “a indemnização do dano da privação do uso pressupõe, portanto, a demonstração da possibilidade de certa utilização concreta ou da afectação da possibilidade dessa utilização, como integradora das faculdades do proprietário” (disponível em www.dgsi.pt).
Consequentemente , e fazendo apelo ao citado aresto, “o Tribunal carece de conhecer, quando está em causa a privação de uso e dando por assente tratar-se de um dano patrimonial, se aquela privação redundou concretamente num dano emergente ou num lucro cessante, para apurar o valor dos mesmos, pois a indemnização visa precipuamente reconstituir - por equivalente pecuniário, na impossibilidade óbvia de reconstituição natural - a situação hipotética que existiria se não tivesse ocorrido o facto ilícito e o dano, (art. 562º e 563º do C.C.)”
Deste modo improcede nesta parte o pedido.»
A Autora, no recurso subordinado, arroga-se o direito a ser indemnizada pelo prejuízo que lhe advém da ocupação que o Réu vem fazendo da fração em apreço, discordando do entendimento do Tribunal a quo, “ao ter tomado a posição de que este caso era um caso de simples privação do uso de um imóvel e depois ter concluído que, como não tinha sido feita prova de que a Recorrida tinha intenção de usar a fração, então que não tem direito a indemnização”. De referir que a indemnização peticionada pela Autora, com fundamento no facto de o Réu ocupar a fração (reivindicada) desde a morte da usufrutária (pelo alegado “prejuízo que resulta para a Autora ver-se privada de utilizar a fração de sua propriedade”), contemplava, além de parcela ilíquida, uma parcela já líquida, quantificada em 178.000 €, quantia esta que (embora a Autora não tenha explicitado o seu cálculo de forma clara) corresponde ao somatório do valor de (hipotéticas) rendas relativas ao período de agosto 2010 a dezembro de 2013 (41 meses x 1.500 € ꞊ 61.500 €), janeiro a dezembro de 2014 (12 meses x 2.000 € ꞊ 24.000 €) e janeiro de 2015 a janeiro de 2018 (37 meses x 2.500 € ꞊ 92.500 €).
Como é sabido, a questão da indemnização pela mera privação do uso de uma coisa trata-se de problemática que vem dividindo a doutrina e a jurisprudência, parecendo-nos que o sentido dominante da mesma vem sendo o expresso no acórdão do STJ de 26-01-2021, proferido no processo n.º 6122/17.1T8FNC.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), resumido de forma muito clara nas seguintes passagens do respetivo sumário:
(…) II - Por muito censurável que seja o comportamento do agente, a existência de dano é condição essencial da obrigação de indemnização. Se se mostra que não há dano, não há lugar a indemnização.
III - A privação do uso de uma coisa poderá constituir uma obrigação de indemnização sem necessidade de comprovação de certos e concretos prejuízos, mas desde que o lesado alegue e prove previamente que a privação da coisa frustrou um propósito real, concreto e efetivo do seu uso.
IV - Para que se possa falar em indemnização por perda de chance é necessário que o lesado mostre que detinha na sua esfera jurídica a oportunidade de (com grande probabilidade, pois tudo gira ao redor de factos eivados de um certo grau de aleatoriedade, de incerteza) alcançar certo efeito que lhe seria vantajoso, mas que acaba por não ser alcançado devido a facto do autor da lesão.
V - Se os autores nada alegaram e provaram em termos de oportunidade perdida, nem a isso fizeram sequer qualquer alusão, não há base jurídica para a fixação de uma indemnização a título de perda de chance.
Na esteira, entre outros, do acórdão do STJ de 12-07-2018, proferido no proc. n.º 2875/10.6TBPVZ.P1.S1 (também disponível em www.dgsi.pt), cujo sumário tem o seguinte teor:
“I - A mera privação do uso da coisa não é indemnizável, devendo o lesado alegar e provar a privação do uso da coisa por acto ilícito de terceiro e a existência de uma concreta utilização relevante da coisa, o que constitui entendimento jurisprudencial dominante do STJ.
II - A prova de que, em consequência das obras levadas a cabo no prédio vizinho da ré, a fração dos autores ficou impedida de ser utilizada, até então ocupada por uma irmã do autor, conduz à atribuição de uma indemnização, a pagar pela ré aos autores, pela privação do uso do imóvel, fixado, com recurso à equidade (tratava-se de uma cave), em 150 euros mensais – art. 1348.º, n.º 2, do CC.”
Esta jurisprudência, ainda que por vezes sumariamente enunciada em termos demasiado rígidos, tem sido aplicada com alguma generosidade, conduzindo à atribuição de indemnizações pela denominada “privação do uso” do bem. Daí não divergirmos da mesma, já que, em nosso entender, quando, devido à ocupação do seu prédio por terceiro, o proprietário de um imóvel está a ser privado de o usar, inferindo-se dos factos provados que, não fora essa circunstância, o pretenderia fazer, do mesmo retirando quaisquer utilidades (cf. art. 1305.º do CC), tal configura um dano que deve ser indemnizado (por aquele ocupante), podendo na sua quantificação recorrer-se à equidade. Neste sentido, destacamos dois acórdãos da Relação de Lisboa:
- de 08-10-2020, proferido no processo n.º 3622/19.2T8LSB.L1 (não disponível online e em que a ora Relatora interveio como 1.ª Adjunta), como se alcança das seguintes passagens do respetivo sumário:
“2. O facto do lesado estar a ser privado de usar um bem que lhe pertence, não lhe sendo permitido dele retirar as utilidade pretendidas, constitui ele próprio um dano representando uma limitação ao seu direito de propriedade, que deve ser indemnizado quando os factos revelam de forma consistente e com toda a probabilidade a determinação de ser dado uso ao bem.
3. Estando demonstrada a existência dos danos, faltando apenas a sua quantificação, está o tribunal legitimado a recorrer à equidade para fixar o valor indemnizatório, de acordo com o art.º 566.º n.º 3 C.Civil.”
- de 07-10-2021, proferido no processo n.º 28606/17.1T8LSB.L1 (disponível em https://outrosacordaostrp.com e em que a ora Relatora interveio como 2.ª Adjunta), em cujo sumário se refere que: “Estando dado como provado, com base nas alegações dos autores, que “se o réu lhes tivesse entregado o imóvel em Agosto de 2013 estes poderiam ter percebido um rendimento mensal proveniente daquele não inferior a 1700€”, o réu deve ser condenado – como foi - a indemnizar os autores desse valor mensal enquanto não restituir o imóvel, podendo-o ser, no caso, quer ao abrigo da responsabilidade civil, quer ao abrigo do enriquecimento sem causa.”
Ora, constatamos que o Tribunal a quo, embora parecendo aderir a esta tese, não logrou, ante a insuficiência da decisão da matéria de facto, aplicá-la corretamente. Com efeito, a Autora alegou nos artigos 13.º a 31.º da Petição Inicial um conjunto de factos que se revestem de relevância para a decisão desta questão, factos que não foram considerados provados ou não provados na sentença, porventura por terem sido indevidamente perspetivados como respeitantes apenas ao pedido ilíquido referido em e) do petitório, o que não é correto, designadamente no que concerne à matéria vertida nos artigos 13.º, 14.º, 15.º, 17.º, 18.º, 23.º, 24.º, 28.º, 29.º e 30.º.
Impõe-se, assim, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 2 do art. 662.º do CPC [e tendo em atenção o previsto na alínea c) do n.º 3 do mesmo artigo], anular, no tocante à decisão absolutória da mesma constante, a decisão proferida na 1.ª instância, por ser indispensável a ampliação da decisão da matéria de facto.
Nesta medida, procedem em parte as conclusões da alegação de recurso subordinado.
Em suma:
- Ante a procedência das conclusões da ampliação do âmbito do recurso requerida pela Autora, o recurso (independente) interposto pelo Réu improcede, mantendo-se a decisão condenatória na sentença;
- O recurso subordinado procede parcialmente, com a anulação da sentença no tocante à decisão absolutória, a fim de ser ampliada a decisão da matéria de facto.
Vencido o Réu em ambos os recursos, é responsável pelo pagamento das respetivas custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário, caso venha a ser concedido.
*
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) negar provimento ao recurso interposto pelo Réu e, em consequência, confirmar a sentença recorrida na parte objeto deste recurso, ou seja, no tocante à decisão de condenação do Réu a entregar à Autora a fração em apreço;
b) conceder parcial provimento ao recurso subordinado interposto pela Autora e, em consequência, anular a sentença recorrida na parte objeto deste recurso, ou seja, no que concerne à decisão de absolvição do Réu do mais peticionado, em ordem à ampliação da decisão da matéria de facto, nos termos supra indicados.
Mais se decide condenar o Réu no pagamento das custas de ambos os recursos, sem prejuízo do apoio judiciário (caso venha a ser concedido).
D.N.
Lisboa, 14-07-2022
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira |