Decisão Texto Integral
Recurso n.º 530/03.2TAPVZ.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro.
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I.- RELATÓRIO.
1. No PCC n.º 530/03.2TAPVZ.P1 do 1.º Juízo Criminal do Tribunal de Póvoa do Varzim, em que são:
Recorrente/Arguido: B……………….
Recorrido: Ministério Público.
por acórdão de 2008/Nov./27, de fls. 403-429, o arguido foi condenado pela prática, como autor material e na forma continuada, de um crime de abuso sexual de crianças, p. e p. pelos art. 30.º, 163.º, n.º 1, por referência ao artigo 177.º, n.º 4, todos do Código Penal, na pena de dois anos de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo período de dois anos, subordinada ao pagamento da indemnização cível à requerente C……………….
Mais foi condenado a pagar a esta o montante de € 5.000 euros (cinco mil euros), a que acrescem os respectivos juros de mora vencidos desde a notificação para contestar e vincendos até integral pagamento, à taxa legal.
2.- O arguido recorreu desta condenação pugnando pela revogação daquele acórdão e, em consequência, pela sua absolvição, ou então pela condenação de um crime de coacção sexual, na forma tentada, do art. 163.º, n.º 1, ou em alternativa pelo crime de actos exibicionistas do art. 171.º (antes da última reforma do Código Penal) ou do novo crime do art. 170.º (importunação sexual), apresentando, em suma, as seguintes conclusões:
1.ª) O recorrente impugna os factos elencados de III a XIII., XV., e XVII. a XX., que deveriam ter sido dados como não provados, face aos depoimentos da assistente e das testemunhas, atendendo às passagens supra referidas da gravação em CD dos respectivos depoimentos em audiência de julgamento, cuja indicação se dá aqui por integralmente reproduzida;
2.ª) As testemunhas chamadas pela acusação e ouvidas em audiência não presenciaram os factos, nem tiveram deles conhecimento directo ou indirecto enquanto estariam a ser cometidos, ou sequer suspeitaram que se passassem, apesar de serem pessoas próximas da assistente (e a própria mãe);
3.ª) Nos termos dos arts. 118.º, 128.º, n.º 1 e 125.º, a contrario, do Código de Processo Penal, é inadmissível, e nulo ou inexistente, o depoimento de testemunha inquirida sobre factos de que não possui conhecimento directo, não podendo tal depoimento ser tido em conta, como sucedeu, para reforçar o valor das afirmações da assistente;
4.ª) Resultam ainda dos depoimentos das testemunhas diversos elementos que não foram considerados pelo acórdão recorrido na motivação da decisão de facto, e que impunham uma decisão diversa;
5.ª) Ao invés do que entendeu o tribunal “a quo”, a assistente não fez uma «explicação pormenorizada, coerente e credível», susceptível de conduzir, por si só, à condenação do arguido, não sendo isento de contradições, que não foram tomadas em conta pelo tribunal recorrido;
6.ª) Alguns dos factos dados como provados no acórdão recorrido (III, IV, VI e VII) não foram sequer referidos pela assistente;
7.ª) E mesmo a valerem as palavras da assistente, sempre os factos V e VIII deveriam ser completados com as explicações que a assistente dá no seu depoimento, sobre a (pouca) intensidade e (mínima) duração do contacto entre ambos;
8.ª) Ao contrário do que entendeu o tribunal “a quo”, não cabe ao arguido carrear elementos que façam os juízes duvidarem da assistente, sob pena de se fazer incidir sobre ele um inaceitável ónus probatório;
9.ª) O exame pericial à personalidade do arguido não lhe diagnosticou qualquer anomalia ou perturbação psíquica que lhe atribuísse especial pendor para a prática dos factos de que veio pronunciado;
10.ª) De acordo com o princípio “in dubio pro reo” o arguido deveria ter sido absolvido da acusação e do pedido de indemnização civil;
11.ª) Muito embora o tribunal recorrido lhe chame «abuso sexual de crianças» parece que o crime pelo qual o arguido vem condenado é o que o tribunal identifica correctamente pelo artigo do Código Penal: coacção sexual, na forma de crime continuado, com a agravação relativa à vítima ser menor de 14 anos;
12.ª) A violência ou ameaça típicas da coacção sexual devem ser dirigidas a constranger a vítima de modo a possibilitar a prática de acto sexual de relevo;
13.ª) Mas no presente caso as agressões não teriam por fim constranger a assistente a sofrer um acto sexual contra sua vontade, não estariam funcionalmente ligadas à prática desse acto sexual;
14.ª) Quanto às ameaças, elas visavam impedir que a assistente «contasse alguma coisa à mãe». Desta forma, não visavam limitar a liberdade sexual da assistente, constrangendo-a a suportar acto sexual;
15.ª) Assim, não se encontra preenchido o tipo objectivo de ilícito do art. 163.º, n.º 1, ao mesmo tempo que se encontraria prescrito o direito de queixa correspondente ao crime de abuso sexual de crianças;
16.ª) O tribunal a quo não deu como provado que a assistente tivesse menos de 14 anos (ou qualquer outra idade) no momento da prática dos factos, pelo que não poderia ter condenado o arguido na agravação do art. 177.º, n.º 4;
17.ª) O acórdão recorrido não descreve em concreto que comportamento corresponde a «tentar apalpar»;
18.ª) Se o comportamento do arguido não produziu um resultado típico e se não se descrevem quaisquer actos de execução, bem se vê que ele não pode ser punido por este facto.
19.ª) Se isto sucede quanto ao último facto praticado pelo arguido, e a assistente não se lembra quando terá ocorrido o penúltimo, surge o problema da prescrição do direito de queixa: o exercício desse direito terá sido já intempestivo.
20.ª) Não é suficiente que se afirme que o arguido tocou o corpo da assistente para estarmos perante acto sexual de relevo, importa averiguar da intensidade e duração do contacto entre a mão do arguido e o corpo da assistente;
21.ª) Deve-se concluir que não houve acto sexual de relevo, e subsumir o comportamento do arguido à punição a título de tentativa, ou ao crime de actos exibicionistas do art. 171.º (antes da última reforma do Código Penal) ou do novo crime do art. 170.º (importunação sexual);
22.ª) Atendendo ao dano que a actuação do arguido seria capaz de causar, bem como às condições económicas deste, a indemnização fixada é exagerada;
23.ª) O acórdão recorrido violou ou não aplicou devidamente os arts. 21.º a 23.º, 163.º, n.º 1, 171.º, 177.º, n.º 4 do Código Penal, os arts. 118.º, 128.º, n.º 1 e 125.º do Código de Processo Penal e os arts. 483.º, 494.º e 496.º, n.º 3 do Código Civil;
24.ª) Deve ser reduzida para uma quantia justa a indemnização a que o recorrente foi condenado, atendendo às circunstâncias dos factos e à sua situação económica.
3. A assistente respondeu em 2009/Fev./18, a fls. 464-476, sustentando a improcedência do recurso, porquanto e em suma:
1.ª) O recurso do arguido assenta numa selecção avulsa e descontextualizada de parte dos depoimentos da assistente e das testemunhas, com o propósito de gerar a dúvida e a absolvição;
2.ª) Não se verificam quaisquer contradições nos depoimentos, como se comprova pela audição dos mesmos, nas partes da gravação da audiência de julgamento supra referenciadas na motivação do presente recurso;
3.ª) O depoimento da testemunha D…………… foi corroborado pelas declarações da assistente, pelos depoimentos das demais testemunhas e pelos exames periciais à personalidade da segunda e do arguido, sendo prova válida e eficaz (126.º, do C. P. Penal);
4.ª) A idade e o ano referidos no ponto VII dos factos provados são um mero lapso de escrita;
5.ª) A perícia à personalidade do arguido comprovou as suas tendências comportamentais, referindo que o mesmo apresenta um “quadro compatível com uma grande parte dos (…) abusadores sexuais de menores”, manifestou “concordância (…) em relação a numerosas crenças legitimadoras do abuso sexual”;
6.ª) A perícia à personalidade da assistente reconheceu perturbações e angústias patológicas por “temer o outro”, depressão acentuada, perturbação pós-stress traumático e nexo de causalidade entre os maus-tratos de que foi vítima e a psicopatologia desenvolvida – sem relação com a morte da irmã;
7.ª) O arguido vinha pronunciado por um crime de coacção sexual do art. 163.º, do Código Penal, mas foi condenado pelo crime de abuso sexual de crianças identificado pelo art. 163.º, quando estava em causa o art. 171.º, tratando-se de um lapso que deve ser corrigido;
8.ª) Vivendo o arguido com a mãe da assistente em condições análogas às dos cônjuges, exercendo sobra a vítima um poder paternal de facto, tendo-a a seu cargo, não era obrigatória a existência de queixa (178.º, n.º 1, al. b), do C. Penal);
9.ª) Mas mesmo que assim não se entenda sempre o Ministério Público poderia dar início ao procedimento criminal quando o interesse da vítima o impusesse, como era o caso;
10.ª) Houve violência por parte do arguido quando arranhou a assistente;
11.ª) Os actos praticados pelo arguido sobre a assistente iniciaram-se em 1996, quando esta tinha 12 anos de idade;
12.ª) O arguido ao apalpar os peitos da assistente, exibindo-lhe o seu pénis, tocando-lhe ou tentou tocar-lhe e/ou beijar-lhe as partes mais intimas do corpo, colocando-se por cima da mesma, pressionando a sua zona púbica, praticou actos sexuais de relevo;
13.ª) Tendo praticado tais actos até 2003/Nov./19 não há lugar a prescrição;
14.ª) Invocar que o arguido não tem bens para pagar a indemnização é um argumento que não colhe, pois, a ser assim, as vítimas daqueles que não dispõem de quaisquer rendimentos nunca teriam direito a ser indemnizados;
4. Nesta Relação o ilustre PGA emitiu parecer em 2009/Jun./01, a fls. 485-487, no sentido de se considerar que o Ministério Público não tinha legitimidade para deduzir acusação, sustentando, no essencial, o seguinte:
1.ª) Tendo em vista a clara posição assumida pelo colectivo no despacho proferido na audiência de julgamento em 2008/Nov./27, o mesmo pretendeu dar uma nova qualificação jurídica aos factos constantes na pronúncia, no sentido de se estar perante a prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado – não como aí se diz pelo art. 163.º, n.º 1, 177.º, n.º 4, 30.º – mas sim pelo art. 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 4, do Código Penal, em vigor à data da prática dos factos;
2.ª) A ser assim, se por um lado limitaram-se os factos integrantes deste crime desde data indeterminada do ano de 1995 até 17 de Março de 1998, data em que a assistente perfez 14, por outro lado, deixa de fora de tal incriminação os demais factos provados desde essa data até fins de Novembro de 2003, data em que o arguido abandonou a casa da assistente e sua mãe;
3.ª) O crime de abuso sexual de crianças do art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, à data da prática dos factos tinha natureza semi-pública, pelo que o prazo para o exercício do direito de queixa é de 6 meses contados a partir do momento em a vítima teve conhecimento dos factos;
4.ª) A assistente só em 17 de Março de 2000 é que atingiu os 16 anos de idade, pelo que a queixa deveria ter sido apresentada pela sua mãe que exercia o poder paternal, sendo certo que esta não era conhecedora dos factos de que a sua filha era vítima;
5.ª) Daí decorre que esta dispunha de ainda de seis meses para apresentar queixa relativamente aos factos que ocorreram até 17 de Março de 1998, contados desde a data em que completou 16 anos (2000/Mar./17), pelo que quando apresentou a mesma em 28 de Novembro de 2003 fê-lo fora de prazo;
5. Cumpriu-se o disposto no art. 417.º, n.º 2 do C.P.P., tendo a assistente respondido a este parecer, renovando as suas considerações anteriores. Colheram-se os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito.* As questões suscitadas neste recurso reconduzem-se à nulidade dos depoimentos das testemunhas [a)], ao reexame da matéria de facto [b)], à tipificação do crime de coacção sexual, na forma agravada e continuada [c)], à extinção do direito de queixa [d)] e ao montante indemnizatório [e)].*
** II.- FUNDAMENTAÇÃO.
1. – O acórdão recorrido.
Na parte que aqui releva transcreve-se o seguinte:
“II.- FACTOS PROVADOS:
I.- A assistente C…………. é filha de E…………...
II.- Em data aqui não concretamente apurada, no decurso do ano de 1994, o arguido e a mãe da assistente C…………, iniciaram uma relação amorosa, que desenvolveram aos fins de semana, decidindo (ambos) pela coabitação conjunta (marital), na casa onde morava a assistente C………….., com a sua mãe, no ano de 1995 até 2003.
III.- Aos sábados, quando a mãe da assistente ia para o mercado ajudar uma vizinha na venda da hortaliça, o arguido aproximava-se da assistente C………… e dizia-lhe para se despir ao mesmo tempo que retirava as calças e exibia o pénis.
IV.- Em diversas ocasiões o arguido abordou a assistente, C…………. apalpando-lhe os seios tentando beijá-la só não conseguindo completamente realizar os seus intentos libidinosos, por a mesma (assistente) fugir dele (arguido).
V.- O arguido por diversas vezes, apalpou-lhe os seios e colocou as suas (dele) mãos pressionando a zona púbica da criança (vagina), fazendo-o por cima das cuecas da assistente Patrícia.
VI.- Também por várias vezes, o arguido entrou no quarto da assistente, C…………, quando esta se encontrava semi-nua da cinta para cima e tentou apalpar-lhe os seios.
VII.- Quando a assistente se encontrava deitada na cama, o arguido tentou colocar-se por cima dele não o conseguindo concretizar, face à resistência da assistente – C……….., isto sucedendo quando a C……….. tinha 12 anos de idade (1997)[1] e numa altura em que o arguido passou a residir definitivamente na casa onde morava a assistente com a sua mãe e irmã F…………. (já falecida).
VIII.- Sempre que a mãe da C………… não se encontrava em casa, o arguido por várias vezes (em número aqui não concretamente apurado) aproximava-se da assistente, apalpava-lhe os seios.
IX.- No dia 19 de Novembro de 2003, pela manhã, quando a irmã da assistente C………….. estava na casa de banho e a mãe daquela se estava a vestir, o arguido entrou no quarto da assistente, quando esta se encontrava a vestir, não tendo ainda colocado nem o soutien nem a camisola, o arguido aproximou-se então da assistente e tentou apalpar-lhe o peito, o que só não conseguiu, face à resistência da assistente C………….
XI.- O arguido agrediu fisicamente a assistente C………… por algumas vezes, duas das quais de forma a provocar-lhe arranhões no corpo.
XII.- Para além disso, o arguido ameaçava a assistente com novas e mais graves agressões se esta contasse alguma coisa à mãe, constrangendo-a, assim, a manter-se em silêncio.
XIII.- A assistente nunca contou à mãe o que se passava por vergonha e por medo do que pudesse suceder.
XIV.- Em Novembro de 2003 por ter ficado abalada com a morte da sua irmã que se verificou em 24.11.2003 procurou a ajuda da psicóloga da Câmara Municipal desta cidade, a quem acabou por relatar o sucedido e que a aconselhou a apresentar queixa.
XV.- O arguido ingeria com frequência bebidas alcoólicas em excesso tornando-o mais violento e agressivo.
XVI.- Desde finais de Novembro de 2003 que o arguido deixou de residir na casa da mãe da assistente, não mais tendo qualquer contacto com a mesma (C…………..).
XVII.- Como consequência directa e necessária da conduta do arguido vinda de descrever, sofreu a assistente C…………. lesões no seu corpo, traduzidas em arranhões, cuja extensão e características não foi possível comprovar bem como lesões ao nível psicopatológico, melhor descritos no exame médico-legal de fls. 46 e segs, “sintomatologia ansiosa e depressiva de grau acentuada que perturbam significativamente a sua adaptação à vida em geral, reunindo critérios de perturbação de pós-Stress Traumático”.
XVIII.- O arguido bem sabia que actuava contra a vontade da menor C………… que abusava da autoridade resultante da relação de convivência marital com a mãe da menor, aproveitando-se do temor causado pela ameaça contra a integridade física, tirando partido da inferioridade física desta, aproveitando o clima de intimidação que criara sobre a assistente, consciente da idade da mesma, com o propósito conseguido de satisfazer o seu desejo libidinoso.
XIX.- A assistente foi sujeita a perícia psicológica apresentava ainda medos e sintomatologia associada à desordem de stress pós-traumática, resultantes directa e necessariamente da actuação do arguido e que carecem, ainda actualmente, de acompanhamento psicológico e social.
XX.- Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punível por lei.
XXI.- Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
XXII.- O arguido tem quatro filhos todos de maioridade, a 3ª. Classe (ensino primário) e aufere um subsídio atribuído pelos serviços sociais franceses de cerca de 400 euros e de um subsídio da segurança social de cerca de 181 euros.
XXIII.- O arguido tem uma imagem social positiva considerado ajustado socialmente inexistindo indicadores de comportamentos de abuso de álcool.
III.- Factos não provados
a) -acusação. - No essencial, provaram-se todos os factos constantes da acusação, excepto que o arguido agarrava a C………… pelos braços e de que as agressões que foi vítima[2] provocaram-lhe hematomas.
b) -pedido cível. - Não se provaram os demais factos indicados nos artigos 41.º a 80.º do pedido de indemnização cível (cfr. fls. 340 a 346) que não constam da matéria de facto comprovada referida de 1 a 22.
IV.- Motivação da decisão.
O Tribunal apreciou livre e criticamente as provas, as quais se mostram gravadas pelo sistema legalmente disponível.
A decisão do colectivo assentou basicamente nas declarações da ofendida/assistente C………… que fez uma explicação pormenorizada, coerente e credível, fazendo a narração dos factos dentro de um quadro lógico incapaz de ser efabulado por alguém sem ter a vivência efectiva da situação detalhada, tal como foi dada a conhecer a este colectivo de juízes. Num pequeno trecho sucinto das suas declarações prestadas na audiência, retira-se algumas expressões mais evidenciadas nos seus depoimentos, nomeadamente que o “o arguido apalpava-lhe os “peitos por cima da roupa, e exibia-lhes os órgãos genitais”; entrava no quarto quando estava semi-nua; Quando o arguido se encontrava sozinho apalpava-lhe os peitos e queria que ela lhe apalpasse os órgãos genitais. Às vezes ele queria descer as calças, mas fugia”. A menor fez um relato destes acontecimentos no plural pretendendo notar que o arguido abusava de si e da sua irmã F……….. (já falecida). O arguido nega a autoria da prática dos factos mas a sua posição processual situa-se dentro da generalidade da conduta dos arguidos, nomeadamente, neste tipo de ilícitos criminais.
A assistente C……… tem uma capacidade intelectual situada ligeiramente abaixo dos padrões normativos. A sua esfera afectiva encontra-se perturbada pela existência de angústia patológica que gere sofrimento emocional e graves problemas de adaptação afectiva. Reprime as suas emoções (angústia e medo) por temer o outro. Em termos psicopatológicos manifesta sintomatologia ansiosa e depressiva de grau acentuado que perturbam significativamente a sua adaptação à vida em geral, reunindo critérios de perturbação de pós-Stresse Traumático. É o que se evidencia nas conclusões da avaliação psicológica (cfr. fls. 46 a 48).
Acresce que a prevalência das declarações da ofendida em directa conexão e antítese com as declarações do arguido ao refutar abertamente os abusos sexuais, tem alicerce nas queixas por ela (ofendida) efectuadas à psicóloga – Dra. D…………. a quem se apresentou em grande pressão emocional, muito confusa, mas com um discurso organizado e revelador de medo da figura do companheiro da Mãe. Demonstrando assim um quadro perfeitamente lógico e enquadrável, em abusos sexuais por parte do arguido, o qual, nas suas declarações, não forneceu uma justificação minimamente credível, para suscitar dúvidas ao Colectivo de Juízes, que as declarações da C…………. constituíam, a final, uma encenação ou efabulação dela própria. Bem ao invés: A análise atenta e criteriosa do discurso livre e espontâneo da C…………. conjugado com os depoimentos das todas as pessoas ouvidas no decurso da audiência e analisando o exame da avaliação psicológica feita ao arguido e junto aos autos e com as regras de experiência comum, esse suporte documental e testemunhal permite ao colectivo de juízes a convicção segura que a decisão dos factos comprovados reflecte a análise ponderada reflectiva e assertiva de todos os depoimentos produzidos na audiência, conjugados com os documentos probatórios alusivos a esta temática motivadora.
Numa apreciação mais genérica, sem querer fazer-se uma descrição exaustiva “verbo ad verbum” das provas produzidas na audiência, conquanto, para isso existe a gravação mecânica das provas, importa somente evidenciar um pequeno enxerto[3] contextualizado das asserções feitas nos respectivos depoimentos, não olvidando que em relação à menor, estamos perante uma criança com substanciais carências afectivas (ausência da figura paterna) e notórios constrangimentos financeiros da mãe, o seu nível de compreensão e desenvolvimento físico/psíquico próprio da idade e a dimensão dos abusos sexuais e as suas consequências. A acrescer o resultado da avaliação da personalidade do arguido a não evidenciar desajustamento/perturbação psicológica (arguido) mas o quadro onde se integra ser compatível com o perfil de uma grande parte dos abusadores sexuais de menores.
Neste sentido, vejamos agora alguns pormenores dos depoimentos da Menor – C…………., para quem o arguido conheceu a sua mãe em 1994 e, desde então, aos fins de semana conviviam um com o outro na casa da mãe, juntando-se diariamente no ano de 1996. A depoente tinha cerca de 12 anos, andava na escola, na altura no 5º ano, quando o arguido se encontrava sozinho consigo (Menor) e a sua irmã falecida F………... O mesmo “apalpava-lhe os peitos e queria que ela lhe apalpasse a “pilinha”. Às vezes ele queria descer as calças, mas fugiam. No início isso sucedia só aos sábados, por ela (quando a Mãe ia ajudar a vender produtos hortícolas mas, posteriormente, acontecida alguma com frequência. No dia anterior à morte da sua irmã F…………., o arguido queria bater na mesma (F………….).
O arguido apercebendo-se que estava(m) no quarto semi-nua(s) entrou no quarto e tentou apalpar-lhe(s) os seios, mas conseguira(m) impedi-lo de o fazer. O arguido batia-lhes (a si e à sua irmã), fazendo-o com maior violência por duas vezes, uma quando a depoente tinha 16 anos e outra com[4] ela tinha 18 anos. A última vez que o arguido lhe bateu foi em 2002.
O arguido apalpava-lhe os “peitos por cima da roupa, e exibia-lhes os órgãos genitais”.
O arguido logo pela manhã bebia bagaço e cerca das 10 horas bebia vinho. “O arguido chamava-lhes “putas pequenas”.
Estavam (a Menor e a sua irmã F…………), a vestir as roupas e o arguido entrava no quarto. Quando as “apanhava a vestir as roupas” entrava no quarto, tentava apalpar-lhe os seios e a vagina ainda que por cima das cuecas, não sabendo quando foi a última vez que tal aconteceu.
Tinha(m) medo do arguido que era violento e agressivo, chegando-a a agredir.
Depois da sua irmã falecer, aconselharam-na a ir à psicóloga da Câmara Municipal, à qual a depoente “contou tudo”.
De notar aqui que a depoente persistiu na asserção que o arguido tentou pôr-se em cima dela mas não concretizou o acto porque a mesma (depoente) impediu de o fazer. Às vezes fugiam de casa e refugiavam-se na casa de uma vizinha que cuidou de ambas quando eram pequenas, O arguido ingeria bebidas alcoólicas de forma excessiva.
A sua irmã faleceu em 24.11 e o arguido saiu de casa no dia 18.11. 2003.
A sua mãe recebia cerca de 40 contos por mês de pensão do seu marido e de abono das filhas.
E………….. A depoente conheceu o arguido em 1994 e viveu maritalmente com ele na mesma casa desde 1995 até 2003. A depoente ia às compras e tratar de assuntos pessoais do arguido. As filhas nunca lhe contaram nada. As crianças ficavam em casa porque se convencer que o arguido tratava as suas filhas como um pai, daí lhe confiar as menores. Mas a partir de certa altura apercebeu-se que as crianças começaram a fugir de casa para ir para casa de uma senhora (viúva) que as criou. Andavam nervosas e excitadas, mas a depoente nunca desconfiou de nada. É verdade que a depoente numa ocasião bateu no arguido precisamente na véspera da sua filha F………… falecer, por ele querer agredi-la (F…………). A certa altura a depoente achou estranho por o arguido “pôr-se muito à vontade”, mas as crianças possivelmente com medo nessa altura não lhe contaram nada. Sabia que o arguido ingeria bebidas alcoólicas e era agressivo. Logo pela manhã bebia bagaço e vinho. A partir do momento em que o arguido foi expulso de casa, a C………….. ficou mais calma. No início a C…………. aceitou bem a presença do arguido, mas a partir de certa altura começou a andar muito nervosa. O arguido contribuía para as despesas do lar. A C…………. fez o 9.º ano, estava a trabalhar, mas o contrato de trabalho era meramente temporário. A C……….. não tem dificuldades de aprendizagem. Logo após o funeral da sua filha F……….., a depoente mudou a fechadura da porta e “pôs o arguido na rua”. Aliás, a depoente disse isso exactamente à família dele. A menor algum tempo depois do falecimento da irmã F…………, sofreu uma grande depressão e andou em tratamento.
G………….. A depoente é vizinha da C…………. há mais de três anos e foi quem cuidou das duas irmãs as quais a tratavam por avó, mas a C………….. nunca lhe confidenciou nada do que supostamente aconteceu entre ela, a irmã e o arguido. A depoente também não se apercebeu de qualquer anormalidade entre as menores e o arguido no que tange aos supostos abusos sexuais. Nunca suspeitou do arguido, não obstante a sua casa ficar muito perto da depoente onde viviam as Menores C………… e F…………...
H…………... A depoente sabe que as meninas iam a chorar para a sua casa, quando tinham 10/12 anos. Quando a mãe estava em casa não havia problemas, mas na ausência desta vi-as a chegar a casa da depoente a chorar. A depoente alertou a mãe para essa situação, mas também nada a fazia suspeitar de eventuais abusos sexuais por parte do arguido. Ouviu o arguido a insultar a mãe da criança. Havia discussões entre ambos e via com frequência as meninas em casa da depoente a chorar. A depoente disse às menores que tinham a “morada aberta” e disse à E…………. “ para ter cuidado com as filhas”, por as ver chorar.
Dra. D…………. Psicóloga. A depoente exerce funções na Câmara Municipal da Póvoa de Varzim desde 2002. A Menor foi a duas consultas, fazendo-lhe relacionadas com os abusos sexuais do arguido, razão porque a depoente encaminhou a menor para o Ministério Público e ao Hospital. Na primeira consulta a Menor apresentou-se alterada com uma grande pressão emocional, muito confusa, atribuindo a morte da irmã ao arguido. Mas teve um discurso organizado, revelando medo perante a figura do companheiro da Mãe por tentativas de abuso sexual e maus tratos, não lhe referindo nenhuma situação em concreto. A menor estava perturbada e havia necessidade de exteriorizar/partilhar. Não houve nenhum episódio em concreto que a C……….. lhe tivesse revelado. Na segunda consulta, a Menor estava mais tranquila, apresentando um discurso livre e espontâneo, falando dos abusos sexuais do arguido. Esta situação afecta o desenvolvimento psíquico – afectivo da criança.
I………….. A depoente conhecia a C………… há algum tempo. O arguido conheceu-o em Argivai. As relações entre o arguido e a mãe dos menores era bastante belicosa, insultando-se a cada passo, mas nunca se apercebeu de qualquer pormenor que pudesse indiciar o envolvimento sexual do arguido com a Menor C………...
De salientar que o arguido – B……….. – nas suas declarações prestadas disse que viveu maritalmente com a E…………. desde 94/95 e durante cerca de 9 anos. A E………….. tinha um mau relacionamento com as filhas e pelo menos uma vez, a mesma (E…………) e as duas filhas baterem-lhe.
A E………… contratou um carpinteiro mudou a fechadura da porta de casa e impediu-o de entrar em casa.
O arguido ajudava nas despesas de renda de casa, água, luz com o montante de cerca de 181 euros por mês e nunca abusou das bebidas alcoólicas e a C………… nunca teve medo do arguido.
Aliás era o arguido quem aquecia a água e era a Mãe que levava a água à casa de banho. A C………….. gostava do arguido. Nunca abusou sexualmente do álcool.
Nesta acepção a decisão da matéria de facto teve como sustentáculo as declarações da Menor C………….., a qual sempre foi muito coerente nos pormenores relacionados com o abuso sexual, em conjugação com todo os demais elementos probatórios atrás indicados, bem como relatório de observação psicológica junto a fls. 108 a 115.
O bom comportamento social do arguido, anterior aos factos, a sua situação económica e demais condições particulares, foi assegurado pelo teor do relatório social junto aos autos sendo a ausência de antecedentes criminais certificada pelo respectivo certificado junto.
O arguido ainda que se tenha disponibilizado a prestar declarações, nega a prática dos factos, o que está em consonância com a conduta da generalidade dos arguidos neste tipo de ilícitos criminais.”* 2.- Os fundamentos do recurso.
a) Nulidade do depoimento das testemunhas.
Estabelece o art. 125.º, do Código Processo Penal[5] que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei”, acrescent6ando-se no art. 128.º, n.º 1, que “A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.
Mais à frente, consigna-se no art. 129.º, n.º 1 que “Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.”.
O recorrente invocou que as testemunhas chamadas pela acusação e ouvidas em audiência não presenciaram os factos, nem tiveram deles conhecimento directo ou indirecto enquanto estariam a ser cometidos, ou sequer suspeitaram do que se passassem, apesar de serem pessoas próximas da assistente (e a própria mãe).
Porém, não é isso que resulta da motivação do acórdão recorrido nem do próprio depoimento dessas testemunhas, porquanto muito embora seja comum que apenas a assistente teve conhecimento directo do sucedido, segundo a sua versão dos acontecimentos, o certo é que houve factos indirectos que foram do conhecimento das testemunhas E…………, mãe da assistente e de H…………...
A primeira chegou a mencionar ter-se apercebido das suas filhas começarem a “fugir de casa para ir para casa de uma senhora (viúva) que as criou”, assim como que “a partir do momento em que o arguido foi expulso de casa, a C………… ficou mais calma”
A segunda relatou que “as meninas iam a chorar para a sua casa, quando tinham 10/12 anos. Quando a mãe estava em casa não havia problemas, mas na ausência desta vi-as a chegar a casa da depoente a chorar”
Tratam-se de factos de que a mesmas tiveram conhecimento directo.
A testemunha D…………., psicóloga, para além de ter um conhecimento indirecto do sucedido através do que lhe foi relatado pela assistente, no decurso de duas consultas que esta teve consigo, teve igualmente um conhecimento directo do seu estado emocional.
Ora a versão dos imputados abusos sexuais perpetrados pelo arguido, foi confirmado pela própria assistente.
Por sua vez, as testemunhas I………….. e G………… nada adiantaram quanto ao sucedido.
Nesta conformidade, não deslumbramos onde tenha havido violação do princípio da legalidade das provas ou das regras que regulam a obtenção de provas, sendo o presente fundamento de recurso manifestamente improcedente.* b) Reexame da matéria de facto.
Decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1, que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no art. 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Por sua vez e de acordo com o precedente art. 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”.
Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Nesta conformidade e para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados (i), a prova de que se pretende fazer valer (ii), identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova (iii).
Convém, no entanto, precisar que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso [Ac. do STJ de 2005/Jun./16 (Recurso n.º 1577/05), 2006/Jun./22 (Recurso n.º 1426/06)].
Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e possibilita-se o seu conhecimento por esta Relação [Ac. do STJ de 2006/Nov./08].
Como é sabido e muito embora, segundo o disposto no art. 127.º, o tribunal seja livre na formação da sua convicção, existem algumas restrições legais ou condicionantes estruturais que o podem comprimir.
Tais restrições existem no valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (169.º), no efeito de caso julgado nos Pedido de Indemnização Cível (84.º), na prova pericial (163.º) e na confissão integral sem reservas (344.º).
Aquelas condicionantes assentam no princípio da legalidade da prova (32.º, n.º 8 C. Rep.; 125.º e 126.º) e no princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência [32.º, n.º 2, C. Rep.; 11.º, n.º 1 DUDH[6]; 6.º, n.º 2 da CEDH[7]].
Por tudo isto, este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “in dubio pro reo”.
Para além da violação destas restrições legais ou destas condicionantes estruturais, o juízo decisório da matéria de facto só é susceptível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.* O recorrente impugna os factos provados sob os pontos III, IV, VI e VII, por não terem sequer sido referidos pela assistente, enquanto os descritos sob os pontos V e VIII deveriam ter sido completados pelas explicações dadas pela mesma sobre a (pouca) intensidade e (mínima) duração do contacto entre ambos.
Quanto à primeira impugnação e procedendo à audição integral do depoimento da assistente podemos constatar que a assistente por diversas vezes [v. g. 04:03 a 05:51; 22:36 a 26:52; 27:35 a 28:22; 30:55 a 31:06; 37:30 a 38:16] e a várias instâncias, inclusive do próprio mandatário do arguido, relatou os factos referenciados sob os itens impugnados sob os pontos III, IV, VI e VII.
Também não encontramos nas referências que o arguido faz nos itens 7.º e 8.º da sua motivação a existência de contradições no depoimento da assistente quanto à ocasião em que esta revelou o sucedido à sua mãe – se antes ou depois da sua irmã falecer.
E isto porque quando o recorrente faz referência a um segundo momento [17:41 a 18:06] do depoimento da assistente, esta não se reporta à sua mãe mas a uma Dra. J…………. assistente social da Câmara Municipal, a quem teria contado, após o falecimento da sua irmã, algumas ocorrência do que se tinha passado [18:06 a 18:14].
Aliás, não existe qualquer contradição entre esta versão relatada pela assistente e o depoimento da sua mãe, pois esta afirmou não se recordar se quando expulsou o arguido de casa já sabia do sucedido.
De resto, estas contradições apontadas pelo arguido surgiram logo na instância desenvolvida pelo seu ilustre mandatário no decurso da audiência de julgamento, não se inibindo sequer de invocar – fazendo-o de um modo indevido, logo assinalado pelo Sr. Juiz Presidente – as declarações prestadas pela assistente no decurso do inquérito [25:20 a 25:42], sem que previamente tivesse suscitado a possibilidade de leitura desse depoimento.
No que concerne à contradição apontada no item 9.º da sua motivação, é um facto que a assistente afirmou ter revelado à testemunha H…………… que o arguido lhe apalpava os peitos – “contámos que apalpava o peito” –, muito embora anteriormente tenha referido que “não entrámos em detalhes” [16:25 a 16:34] enquanto aquela testemunha afirmou que “as crianças – querendo referir-se à assistente e irmã – vinham a chorar mas não diziam o motivo porquê”.
Naturalmente que existe uma discrepância nesta parte, mas a mesma não tem a relevância que lhe dá o recorrente, não retirando credibilidade à versão da assistente nem ao depoimento desta testemunha. O que sobressai deste depoimento testemunhal é que tanto a assistente como a sua falecida irmã vinham a chorar para a casa da mãe desta testemunha e sempre quando as mesmas estavam sózinhas com o arguido, o que denota que algo tinha acontecido e que as mesmas vinham perturbadas.
Aliás o depoimento desta última testemunha mostra-se seguro mesmo quando foi instada pelo ilustre mandatário do arguido, a tal ponto que teve expressões espontâneas do género “algo se passava, não vi com os meus olhos” [19:40 a 19:44] e quando confrontada se tinha visto algo respondeu, na sua simplicidade, “a minha mente não é burra” [20:00], tendo a dado momento, dada a insistência e variada de perguntas que lhe eram dirigidas, afirmado: “O senhor doutor quer me dar a volta, mas vou falar a verdade” [20:35].
Relativamente aos pontos V e VIII o recorrente sustenta que os mesmos deviam ser completados com as explicações dadas pela assistente de que o arguido tocar-lhe-ia no peito e na zona púbica, por cima da roupa, com a mão, com pouca intensidade e durante um tempo mínimo.
Muito embora essa “pouca intensidade” e esse “tempo mínimo” sejam de uma relatividade indecifrável, deve haver algum equívoco quando o recorrente afirma que a assistente fez essa afirmação, porquanto a mesma limitou-se a responder “sim” a uma pergunta sugestiva do ilustre mandatário do arguido, que foi a seguinte: “Então tudo o que ele fazia, se eu bem compreendo, era …tocava-vos no peito o tempo estritamente necessário até vocês conseguirem fugir?” [27:20 a 27:28].
E mais à frente, reportando-se a uma afirmação da assistente de que o arguido lhe apalpava a vagina foi novamente questionada pelo ilustre mandatário do arguido, nos seguintes termos, igualmente sugestivos: “Isso só o tempo necessário até você conseguir escapar?” [31:14 a 31:20]
Tratando-se de perguntas sugestivas, que são inadmissíveis, a subsequente resposta não poderá ser valorada, sem mais.
Revistos todos os pontos da matéria de facto impugnada pelo recorrente, resta concluir pela improcedência do pretendido reexame.* c) Tipificação do crime de coacção sexual, na forma agravada e continuada.
Muito embora na parte decisória o acórdão recorrido faça alusão que condena o arguido pela prática de um crime de abuso sexual de crianças do art. 163.º, n.º 1, por referência ao art. 177.º, n.º 4 e 30.º, todos do Código Penal, o certo é que o mesmo na motivação faz antes alusão ao crime de coacção sexual que é a previsão daquele art. 163.º – o crime de abuso sexual de crianças encontra-se previsto no art. 172.º, do Código Penal.
A ser assim e interpretando o acórdão, partiremos do pressuposto que o arguido foi condenado pelo crime de coacção sexual.
Tal ilícito da punição do art. 163.º, n.º 1 pune “Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo”.
A agravante situar-se-ia, de acordo com o art. 177.º, n.º 4 do Código Penal, “se a vítima for menor de 14 anos”.
O bem jurídico aqui protegido diz respeito à liberdade e à autodeterminação sexual das pessoas, pelo o que está essencialmente em causa é a tutela do consentimento ou vontade da vítima numa perspectiva de liberdade sexual.
Tanto numa dimensão positiva ou dinâmica, de que cada um tem o direito de dispor sexualmente do seu corpo e a faculdade de se relacionar sexualmente de acordo com a sua própria vontade, como numa dimensão negativa ou estática, no sentido de ter a disponibilidade de não suportar actuações sexuais contra a sua vontade.
A agravante aqui em causa tem a sua justificação na maior intensidade dessa ilicitude e na redobrada protecção da sexualidade que merecem aqueles que são infantes ou adolescentes.
O tipo objectivo deste ilícito consiste na acção de constrangimento mediante um daqueles actos de coacção (violência, ameaça grave) ou na colocação da pessoa visada, tanto do sexo masculino, como feminino, num estado de inconsciência ou de paralisação, com vista a praticar consigo ou com outrem actos sexuais de relevo.
Acto sexual de relevo e partindo do indicado bem jurídico, será toda aquela acção que é notoriamente condicionadora da liberdade e da autonomia sexual que cada um tem pleno direito a preservar e a desenvolver.
Para o efeito é necessário que esses actos tenham uma conotação sexual e sejam suficientemente relevantes para ofender a livre disposição sexual da vítima, o que implica um contacto corporal com conotações sexuais.
Retomando os factos provados temos que por diversas vezes o arguido apalpou os seios da assistente e com as suas mãos (dele) pressionou a zona púbica (vagina) daquela, fazendo-o por cima das cuecas [IV, V e VIII, dos factos provados], o que configura actos sexuais de relevo.
Porém, não encontramos, nos factos provados que o arguido tenha perpetrado qualquer acto de coacção ou tenha colocado a vítima numa situação de inconsciência ou na impossibilidade de lhe resistir.
Efectivamente resulta provado que “O arguido agrediu fisicamente a assistente C………. por algumas vezes, duas das quais de forma a provocar-lhe arranhões no corpo” [XI]. Mas trata-se, segundo a descrição que daí resulta, de acontecimentos isolados, que não são dirigidos à realização de qualquer acto sexual de relevo.* Nesta conformidade, a conduta do arguido até a menor atingir 14 anos de idade, o que sucedeu em 17 de Março de 1998 acaba por tipificar um crime de abuso sexual de criança, da previsão do art. 172.º, n.º 1 do Código Penal, que pune “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa”.
O bem jurídico aqui tutelado continua a ser, mas agora mediatamente, a liberdade e autodeterminação sexual a que qualquer pessoa tem direito, mas por se tratar de vítimas menores a relevância incide imediatamente na protecção da sexualidade durante a infância e o começo da adolescência e na preservação de um adequado desenvolvimento sexual nestas fases de crescimento – e não tanto a “intangibilidade sexual” e muito menos uma “obrigação de castidade e de virgindade quando estejam em causa menores”, como se diz no acórdão recorrido, pois não estando comprovado tais factos ou sempre que a menor não tivesse esses atributos nunca haveria a tipificação dos crimes até agora referenciados, o que não tem acolhimento na respectiva descrição típica.
Os actos sexuais de relevo cometidos pelo arguido na pessoa da assistente já foram apontados e consistiram em apalpar os seios da segunda e na colocação das mãos daquele na vagina desta, através das cuecas da menor, na altura com menos de 14 anos de idade, como muito bem sabia o arguido.
É evidente que existem outros actos cometidos pelo arguido, tais como, por um lado, a exibição do seu pénis à assistente [III dos factos provados], a entrada no quarto desta quando a mesma estava semi-nua, que seria apenas com o soutien [VI dos factos provados] os quais configuram actos exibicionistas ou, por outro lado, a tentativa de beijar a assistente, de lhe apalpar os seios ou mesmo de deitar-se por cima dela [IV, VI, VII], que representam tentativas de desenvolver actos sexuais de relevo.
No entanto, tanto aqueles actos exibicionistas, como estes actos de tentativa configuram estádios antecessores ou que se desenvolvem no âmbito dos actos sexuais de relevo que foram consumados, não patenteando uma relevância própria e autónoma em relação a estes últimos [Ac. STJ de 2008/Out./29, CJ (S) III/207].
Daí que os mesmos ainda que tipifiquem, segundo a ordem indicada, um crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 172.º, n.º 3 al. a), que correspondiam a actos exibicionistas, ou de um crime de abuso sexual de criança, na forma tentada, da previsão do art. 172.º, n.º 1, do Código Penal, encontram-se numa relação de concurso aparente com o crime de abuso sexual de criança, na forma consumada, do citado art. 172.º, n.º 1, que pune de uma forma mais grave qualquer um daqueles outros ilícitos.
E isto porque havendo tentativa e consumação de uma crime de abuso sexual de criança ou a forma privilegiada e fundamental do seu cometimento, seja por uma relação de consunção pura, em relação aos primeiros, ou de especialidade, no que concerne aos segundos, apenas persiste a punição do crime de abuso sexual de criança na sua forma consumada e em relação ao seu tipo fundamental.
Coloca-se ainda a questão de se tratar de um crime continuado, sendo esse de resto o entendimento desenvolvido pelo acórdão recorrido, que não foi objecto do recurso que versou o anterior acórdão desta Relação, que foi dirigido ao despacho de pronúncia do arguido.
Retomando o acórdão recorrido e partindo do disposto no art. 30.º, n.º 2 do Código Penal, o mesmo apenas apresentou reticências em relação ao pressuposto respeitante ao “quadro da mesma solicitação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
Partindo do facto de o arguido viver maritalmente com a mãe da menor, habitando na mesma casa, fazendo vida em comum, considerou verificado este pressuposto. Não partilhamos e s.m.o. deste posicionamento, pelas razões que passamos a enunciar.
De acordo com o disposto no art. 30.º, n.º 2, do Código Penal, haverá concurso de crimes quando se verificar: a homogeneidade da forma de execução de diversos ilícitos (1); a lesão do mesmo bem jurídico (2); a unidade do dolo (3); a persistência de uma situação exterior que facilite a execução (4) e diminua consideravelmente a culpa do agente (5).
A divergência situa-se em relação à verificação destes dois últimos pressupostos.
O fundamento do crime continuado reside essencialmente na diminuição da culpa demonstrada pela conduta do agente, sendo este pressuposto a âncora indispensável para que a punição de uma pluralidade de crimes se centre apenas na punição de um só crime.
Podem ocorrer todos os demais requisitos, mas se este não se verificar exclui-se a continuação criminosa.
Por isso o pressuposto da continuação criminosa que incida sobre uma circunstância exógena deverá corresponder a uma conjuntura que, de maneira considerável, facilite a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível que o agente se comporte de modo distinto [Ac. STJ de 2008/Out./29, CJ (S) III/207].
Circunstância exógena será toda aquela para a qual o agente não tenha contribuído, de qualquer forma, para a sua ocorrência e seja, simultaneamente, facilitadora da repetição da actividade criminosa.
Daí que para a verificação do crime continuado não seja suficiente a ocorrência de uma solicitação exterior que facilite de maneira apreciável a reiteração criminosa, devendo a mesma surgir como um potenciador da diminuição considerável da culpa do agente [Ac. STJ de 2003/Out./29 e de 2009/Jun./25].[8]
Tal não existe quando o arguido passou a residir em união de facto com a mãe da menor, onde esta co-habitava com aquele, porquanto o grau de confiança inerente a essa convivência deveria reforçar o respeito pela vítima, derivado da menoridade da mesma e de ser familiar da sua companheira.
Mas isto não significa que ocorra uma pluralidade de crimes, porquanto, como é característico nos crimes sexuais que se prolongam no tempo com a mesma vítima, decorrente de uma relação de proximidade, muitas vezes existe uma única resolução criminosa que acaba por dominar uma acção unitária, ainda que esta seja cindível numa pluralidade de factos externamente separáveis, mas que se apresentam intimamente ligados no tempo e no espaço.
Tal sucederá quando os actos sexuais adicionados surgirem na sequência da mesma resolução criminosa.
Mas já haverá um concurso de crimes, ainda que esteja em causa o mesmo ilícito e a mesma vítima sexualmente abusada, quando haja a reformulação do desígnio criminoso, surgindo este de modo autónomo em relação ao propósito criminoso anterior.
O caso em apreço corresponde antes a um único crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 171.º, n.º 1 do Código Penal, de trato sucessivo e dominado por uma única resolução volitiva que se vai consecutivamente renovando até ao momento em que a assistente ainda não tinha 14 anos de idade.* A partir de 17 de Março de 1998, quando a menor atingiu 14 anos de idade a conduta do arguido deixou de ter relevância jurídico-penal, conforme passaremos a explicitar.
O acórdão recorrido não é muito preciso na fixação temporal dos actos praticados pelo arguido, ficando, de resto, alguma nebulosa quanto ao momento da sua ocorrência.
E isto porque se podemos situar o referenciado nos pontos III a VII dos factos provados até 1997, a partir daqui passam a existir algumas indefinições temporais – aliás a conduta do arguido descrita em VIII dos factos provados corresponde à conduta do mesmo enunciada em III e IV também dos factos provados.
Mas mesmo que se estenda temporalmente o sucedido em VIII, onde se menciona que “o arguido por várias vezes (em número aqui não concretamente apurado) aproximava-se da assistente, apalpava-lhe os seios”, até 19 de Novembro de 2003 dia em que “o arguido aproximou-se então da assistente e tentou apalpar-lhe o peito, o que só não conseguiu face à resistência da assistente C………….”, como se refere em IX dos factos provados, continuamos a considerar que a conduta do arguido não tipifica qualquer crime contra a liberdade e autodeterminação sexual.
Uma coisa é certa e como se encontra assente em XVI dos factos provados “Desde finais de Novembro de 2003 que o arguido deixou de residir na casa da mãe da assistente, não mais tendo qualquer contacto com a mesma (C………….)”.
Ora até então e mesmo posteriormente, mais concretamente até 15 de Setembro de 2007, altura em que entrou em vigor a Lei n.º 59/2007, de 04/Set., os actos sexuais de relevo praticados com menores com mais de 14 anos só tinham relevância caso se enquadrassem no disposto no art. 173.º, n.º 1, onde se punia “Quem praticar ou levar a praticar os actos descritos nos n.os 1 ou 2 do art. 172.º, relativamente a menor entre 14 e 18 anos que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência”.
Tratando-se de actos exibicionistas estar-se-ia na previsão do subsequente n.º 2, segundo o qual “Quem praticar acto descrito nas alíneas do n.º 3 do art. 172.º, relativamente a menor compreendido no número anterior deste artigo e nas condições aí descritas”.
Isto significava que o menor entre 14 e 18 vítima de abusos sexuais devia se encontrar numa situação de dependência em relação ao agente, o que só sucederia se aquele estivesse confiado a este para educação ou assistência.
Seria essa relação de dependência pessoal, através da lei (v.g. progenitores), de uma decisão judicial (v. g. confiança judicial, tutela, adopção), de um contrato (v.g. explicador) ou mesmo de uma situação de facto, em que o agente surgisse numa situação de garante da educação ou assistência do menor (v. g. terceiro na ausência dos pais), que fundamentaria a punição do crime de abuso sexual de menores dependentes [Ac. STJ de 2002/Nov./13, CJ (S) III/224].[9]
Nesta conformidade as vítimas de actos sexuais de relevo que fossem menores entre 14 e 18 anos de idade e não estivessem numa relação de dependência, tal como se preceitua no art. 173.º, n.º 1, relativamente ao agente desses actos, ficaram sem qualquer tipo de tutela penal.
O mesmo ocorre relativamente aos adultos, sempre que esses actos sexuais não se realizassem mediante coacção sexual [163.º] ou não correspondessem a violação [164.º].
Tal sucedeu desde que o crime de ultraje ao pudor da previsão do art. 213.º, do Código Penal de 1982 foi pura e simplesmente revogado, deixando de ter correspondência no Código Penal Reformado com o Dec.-Lei n.º 48/95, de 15/Mar..
E isto porque o Código Penal de 1995, através do seu art. 171.º, passou apenas a tipificar como crime os actos exibicionistas, que abrangeria apenas os casos de “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista”.
Ora acto exibicionista será toda a actuação com significado ou conotação sexual realizada diante da vítima[10].
Ficavam assim de fora deste tipo legal de crime todo o acto com relevância sexual que fosse praticado com a vítima adulta ou adolescente com mais de 14 anos de idade e fora do condicionalismo do art. 173.º, n.º 1, desde que, como é óbvio, não correspondesse a situações de coacção sexual [163.º] ou de violação [164.º].
Nesta conformidade apalpar os seios de uma destas pessoas atrás referenciadas fora do circunstancialismo de coacção sexual não integrava qualquer tipo de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, como sucedeu com a assistente desde que esta fez 14 anos de idade.
Esta carência de tutela penal durou mais de 12 anos até que com a revisão de 2007, passou a cominar-se no art. 170.º, do Código Penal o crime de importunação sexual, passando então a visar-se “Quem importunar outra pessoa, praticando perante ela actos de carácter exibicionista ou constrangendo-a contacto de natureza sexual” – sendo nosso o negrito.* d) Extinção do direito de queixa.
Estabelece o art. 113.º, n.º 1 do Código Penal que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”.
Acrescentava-se no seu n.º 3, na altura da ocorrência dos factos, mais concretamente entre 1995 e Novembro de 2003, que “Se o ofendido for menor de 16 anos ou não possuir discernimento para entender o alcance e o significado do exercício do direito de queixa, este pertence ao representante legal e, na sua falta, às pessoas indicadas nas alíneas do número anterior, segundo a ordem aí referida, salvo se algumas delas houver comparticipado no crime”, sendo uma dessas pessoas o ascendente [n.º 2, al. a)].
Por sua vez, preceitua-se no art. 115.º n.º 1, do Código Penal que “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz”.
O crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 172.º, do Código Penal assumia na ocasião natureza estritamente semi-pública, muito embora, com a Lei n.º 97/2001, de 25/Ago., passasse a contemplar a possibilidade de iniciativa do Ministério Público quando tal crime fosse praticado contra menor de 14 anos e o agente tenha legitimidade para requerer o procedimento criminal, por exercer sobre a vítima poder paternal, tutela ou curatela ou a tiver a cargo [178.º, n.º 1, al. b) do Código Penal].
Mas não era esse o caso, já que o arguido não exercia sobre a assistente qualquer destas responsabilidades e quando houve essa alteração legislativa já a assistente tinha mais de 16 anos de idade.
E isto porque a mesma nasceu em 17 de Março de 1984 pelo que em 17 de Março de 2000, quando tinha 16 anos de idade e porque a sua mãe até então nada sabia dos acontecimentos de que aquela tinha sido vítima, cabia-lhe exercer o seu direito de queixa.
Não o fez nessa ocasião nem nos seis meses seguintes, pois como resulta do auto de denúncia de fls. 2, a assistente apenas apresentou queixa em 28 de Novembro de 2003.
Daí que o Ministério Público seja parte ilegítima para exercer a presente acção penal contra o arguido, como de resto e muito oportunamente o ilustre PGA logo chamou a atenção no parecer por si emitido.* e) Montante indemnizatório
Poder-se-ia sustentar que tendo naufragado o exercício da acção penal por parte do Ministério Público com a subsequente absolvição do arguido da correspondente instância penal, estaria prejudicado o conhecimento do último fundamento de recurso do arguido.
Não cremos que assim suceda, pois como é jurisprudência uniformizada, através do então designado Assento n.º 7/99 do STJ, de 1999/Jun./17 “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” [DR 179/99 SÉRIE I-A, de 1999/Ago./03].
Aliás, já posteriormente através do Acórdão Uniformizador n.º 3/2002, de 2002/Jan./17, se fixou jurisprudência no sentido de que “Extinto o procedimento criminal, por prescrição, depois de proferido o despacho a que se refere o artigo 311.º do Código de Processo Penal mas antes de realizado o julgamento, o processo em que tiver sido deduzido pedido de indemnização civil prossegue para conhecimento deste” [DR 54 SÉRIE I-A, de 2002-03-05].
Estabelece o art. 483.º do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Deste modo e para a ocorrência de responsabilidade civil por factos ilícitos é necessário que se verifiquem os seguintes pressupostos: 1.- o facto; 2.- a ilícitude; 3.- o nexo de imputação do facto ao agente; 4.- o dano; 5.- o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Muito embora não se discuta a verificação de nenhum destes pressupostos mas apenas o montante indemnizatório para ressarcir a conduta ilícita provocada pelo arguido na assistente, convirá ter presente que muito embora a conduta daquele não tenha relevância jurídico-penal, por falta do exercício tempestivo de queixa por parte da vítima, isto não significa que essa mesma conduta não integre, como de resto acabou por integrar, um crime de abuso sexual de crianças da previsão do art. 171.º n.º 1 do Código Penal.
Porém, a ilicitude da conduta do arguido não se finou no momento em que a asistente atingiu os 14 anos de idade, pois muito embora a partir daí a mesma careça, por opção legislativa, de tutela penal, já, no entanto, persiste a tutela civilística da personalidade em geral [70.º, Código Civil], com particular incidência no direito à reserva da intimidade da vida privada [80.º, Código Civil], designadamente na vertente da liberdade sexual a que cada um tem direito. Tutela essa que, de resto, tem consagração constitucional.
A indemnização por danos não patrimoniais reporta-se àqueles que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo o seu montante calculado segundo critérios de equidade e tendo ainda em atenção as circunstâncias enunciadas no art. 494.º do Código Civil (grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso), face ao que se preceitua no precedente art. 496.º.
Nesta conformidade, a situação económica do agente não é o único vector em que assentam os critérios de indemnização por danos não-patrimoniais, como parecer transcorrer da fundamentação recursiva aqui em apreço.
Mais decisivo que esse factor é a globalidade da ilicitude revelada pelo acto ou actos que infrinjam os direitos, no caso de personalidade, da vítima, que passaram a carecer de tutela e as consequências de natureza não-pratimonial provocadas por essa conduta ilícita.
A conduta do arguido é fortemente culposa, violando os direitos de personalidade da assistente numa das suas vertentes nucleares mais intimas, que é a sua sexualidade, em parte com incidência criminal, perdurando essa ilicitude entre 1995 e 19 de Novembro de 2003, ou seja, durante cerca de 8 anos, numa fase em que aquela ainda era menor, mais concretamente adolescente.
Como consequência directa e necessária da conduta do arguido a assistente sofreu, entre outras, lesões ao nível psicopatológico, melhor descritos no exame médico-legal de fls. 46 e segs, tais como “sintomatologia ansiosa e depressiva de grau acentuada que perturbam significativamente a sua adaptação à vida em geral, reunindo critérios de perturbação de pós-Stress Traumático”. [XVII dos factos provados].
Nesta conformidade, o montante indemnizatório de € 5.000 euros (cinco mil euros) e respectivos juros legais, está mais que ajustado aos danos não-patrimoniais de que a assistente foi vítima, sendo improcedente o presente fundamento de recurso.*
** III.- DECISÃO.
Nos termos e fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao presente recurso interposto pelo arguido B………….. e, em consequência, decide-se:
a) julgar o Ministério Público parte ilegítima para o exercício da presente acção penal contra o arguido, absolvendo o mesmo da instância penal, revogando-se o acórdão recorrido na parte criminal.
b) manter no demais o acórdão recorrido, designadamente na condenação a pagar a mencionada indemnização por danos não-patrimonais.
Mais se condena o arguidos nas custas deste recurso no que concerne à parte cível, fixando-se a taxa de justiça em três (3) Ucs, a que acresce a sanção de 3 UC prevista no art. 420.º, n.º 3 C. P. Penal pela rejeição de parte do seu recurso – cfr. art. 513.º, 514.º do Código Processo Penal.
Notifique.
Porto, 07 de Outubro de 2009
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
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[1] Ao abrigo do disposto no art. 380.º, n.º 1, al. b), do Código Processo Penal e por se tratar de manifesto lapso, porquanto a C……………. nasceu em 1984/Mar./17, corrigiu-se o ano para 1997. Mais se consigna que todas as restantes correcções serão efectuadas ao abrigo deste segmento normativo, dispensando-se a sua subsequente referência.
[2] Aditou-se e corrigiu-se a referência que se encontra em itálico.
[3] Certamente queria dizer-se “excerto”.
[4] Certamente queria dizer-se “quando”
[5] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[6] Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 Dezembro de 1948.
[7] Convenção Europeia dos Direitos do Homem, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Out.
[8] Acessíveis, respectivamente, em www.dgsi.pt, processo n.º 2606/03, 5.ª secção e em www.colectaneadejurisprudência.com, processo n.º 274/07, 3.º Secção.
[9] ANTUNES, Maria João, no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I (1999), p. 556.; ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, no “Comentário do Código Penal” (2008), p. 478.
[10] RODRIGUES, Anabela Miranda, no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I (1999), p. 533 a 537, que é expressa em enunciar que “esta não foi a lógica seguida pelo legislador actual, que não puniu a prática de actos sexuais sem ou contra a vontade da vítima” (p. 535, parte final); ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, no “Comentário do Código Penal” (2008), p. 468; LOPES, José Mouraz, “Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual no Código Penal” (2002), p. 78. |