Decisão Texto Integral
Processo nº 49/08.5GCVFR
T.I.C. do Porto
Relatora: Olga Maurício
Adjunto: Artur Oliveira
Acordam na 2ª secção criminal (4ª secção judicial) do Tribunal da Relação do Porto:
RELATÓRIO
1.
No inquérito instaurado na sequência da queixa apresentada por B… por factos integradores de um crime de burla, e no qual foram constituídos arguidos C… e D…, foi proferido despacho determinando o arquivamento dos autos, por inexistência de indícios da prática de ilícito penal.
O queixoso, entretanto constituído assistente, requereu a abertura de instrução, onde termina imputando ao arguido D… a prática de um crime de burla e de um crime de emissão de cheque sem provisão, dos art. 217º do Código Penal e 11º, nº 1, al. a), do D.L. nº 454/92, de 28/12, na redação dada pela Lei nº 48/05, de 29/8.
O pedido que foi deferido.
Produzidas as provas, foi realizado debate instrutório, tendo sido marcada para 7/2/2011 a leitura da decisão instrutória.
Entretanto, surgem no processo duas notificações, uma feita à mandatária do assistente e outra ao defensor do arguido, notificando-os de que a leitura daquela decisão seria realizada no dia 16/2/2011.
Neste dia 16 de Fevereiro a srª juíza procedeu à leitura da decisão instrutória «por apontamento verbal», conforme refere a acta.
A decisão proferida não ficou consignada na acta nem o seu texto foi junto ao processo.
No dia 17 de Fevereiro foi proferido despacho dizendo que aquando da redação da decisão instrutória lida na véspera se constatou que um dos crimes resultantes dos factos indiciados não tinha sido considerado. Assim, e por tal motivo, foi designada nova data para «comunicar a referida alteração na decisão instrutória, agora já terminada, e proceder à respectiva leitura».
Em 18 de Fevereiro procedeu-se à leitura desta nova decisão.
Nesta diligência foi junta esta decisão, bem como aquela que havia sido proferida no dia 16.
2.
O Ministério Público recorreu desta segunda decisão, de 18-2-2011, retirando da motivação as seguintes conclusões:
«A decisão instrutória de pronúncia proferida no dia 18.02.2011 pelas 10h35m é inexistente, porque contraria a uma outra anterior, violando assim o disposto no art. 666 nº 1 C.P.C.
Proferida sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do Juiz quanto à matéria da causa, só podendo alterá-la nas condições previstas no nº 2 do art. 666º C.P.C.
Verificados que sejam todos os restantes elementos constitutivos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito, integra o crime de cheque sem provisão previsto na alínea b) do nº 1 do art. 11º do Decreto-Lei 454/91 de 28.12, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 316/97, de 19.11, a conduta do sacador de um cheque que, após a emissão deste, falsamente comunica ao banco sacado que o cheque se extraviou, assim o determinando a recusar o seu pagamento com esse fundamento.
A falsa comunicação ao banco ou o relato falso do extravio do cheque, porque constitui um documento particular, poderá constituir a prática do crime de falsificação de documento p. e p. no art. 256 nº 1 C. Penal, (desde que não se autonomize o crime de emissão de cheque sem provisão, por existir concurso aparente entre ambos os crimes) mas não o crime previsto no nº 3 do mesmo preceito, pois tal escrito ou comunicação não está abrangido pela factualidade típica deste número 3».
Termina pedindo a confirmação da decisão de não pronúncia do arguido, por ser anterior àquela que pronunciou o arguido.
3.
O assistente respondeu dizendo, em síntese, que aquando da decisão de pronunciar o arguido o poder jurisdicional não se tinha esgotado, porquanto a primeira decisão instrutória, de não pronúncia, foi proferida oralmente, apenas por apontamento, sem que o texto estivesse escrito.
O Sr. P.G.A. junto desta relação pronunciou-se pelo provimento do recurso, por esgotamento do poder jurisdicional sobre o objecto da causa.
Foi cumprido o disposto no nº 2 do art. 417º do C.P.P..
4.
Proferido despacho preliminar foram colhidos os vistos legais.
Realizada a conferência cumpre decidir.* FACTOS PROVADOS
5.
Dos autos resultam os seguintes factos, relevantes à decisão:
1º - B… apresentou queixa contra D…, imputando-lhe a prática de factos integradores de um crime de burla.
2º - Instaurado inquérito foram constituídos arguidos D… e C….
3º - O inquérito veio a ser arquivado pelo Ministério Público, por invocada falta de indícios da prática de qualquer ilícito penal.
4º - O assistente requereu a abertura de instrução, imputando ao arguido a prática dos crimes de burla e de emissão de cheque sem provisão.
5º - O pedido foi deferido.
6º - Produzidas as provas e realizado o debate instrutório, surge a diligência da leitura da decisão instrutória, sendo o seguinte o conteúdo da respectiva acta (fls. 343/344 do processo):
«…
ACTA DE LEITURA DA DECISÃO INSTRUTÓRIA
Data: 16-02-2011 - Hora: 11h00
Juiz de Direito: Dra. E…
…
PRESENTES:
Assistente: B…
Mandatária do Assistente: Dra. F…
Defensor Oficioso do Arguido: Dr. G… * Quando eram 11 horas e 14 minutos, pela Mma Juiz de Direito foi declarada aberta a presente audiência, tendo de seguida procedido à leitura da decisão instrutória, que foi feita apenas por apontamento verbal, pelo facto da sua redacção não estar concluída, na parte referente ao crime de emissão do cheque sem provisão.
Pela Sra. Dra. Juiz foi dito que faria a entrega da referida decisão no próximo dia 21/02/2011, às 15 horas, seguindo a mesma por correio. * Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a audiência sido declarada encerrada quando eram 11 horas e 18 minutos …».
7º - No dia 17/2/2011 foi proferido o seguinte despacho:
«No dia 16/2 pelas 11.14 horas, proferi verbalmente ao assistente, sua mandatária judicial e defensor nomeado ao arguido, decisão instrutória de Não Pronúncia ao arguido pelos imputados crimes de burla e de cheque sem provisão relatados na acusação alternativa do assistente, sendo quanto ao cheque sem provisão, pelo facto de os cheques serem pré-datados.
Expliquei que a decisão estava a ser proferida oralmente e não faria a sua entrega em papel, pelo facto de ainda não estar terminada, pois se encontrava redigida apenas na parte referente à burla e apenas iniciadas considerações sobre os elementos objectivo e subjectivo do crime de cheque sem provisão.
No dia 16/2 saí do tribunal apenas pelas 19.45 horas.
Porém, esta manhã, ao continuar a redacção da decisão instrutória, reparo que, não se verificando o crime de emissão de cheque sem provisão por não se verificarem as condições objectivas de punibilidade, autonomiza-se o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nº 1 b) e 3 do C.P., que seria consumido pelo primeiro crime (cheque sem provisão) caso se verificassem todos os elementos deste tipo de ilícito.
Assim, via telefone, convoque de novo o assistente, a sua mandatária judicial e o defensor do arguido para comparecerem neste tribunal no dia de hoje, pelas 15.00 horas, para lhes comunicar a referida alteração na decisão instrutória, agora já terminada, e proceder à respectiva leitura».
8º - A fls. 347 do processo consta uma cota, que contém a seguinte informação: «Aos 17-02-2001 contactei telefonicamente com a Sra. Dra. F…, pelas 14h38, mandatária do assistente e com o Sr. Dr. G…, defensor oficioso do arguido, pelas 12h45, a quem transmiti o conteúdo do despacho que antecede, os quais declararam ficar cientes. Contudo, pela Sra. Dra. F… foi me comunicado que não seria possível estar presente no tribunal à hora indicada».
9º - Nesse mesmo dia 17 foi proferido novo despacho, com o seguinte conteúdo: «Leitura da decisão instrutória no dia de amanhã (18/2) pelas 10.30 horas, neste tribunal. D.N.».
10º - É o seguinte o teor da acta da diligência de leitura da decisão instrutória, de 18-2-2011 (constante de fls. 350 e 351 do processo):
«…
ACTA DE LEITURA DA DECISÃO INSTRUTÓRIA
Data: 18-02-2011 - Hora: 10h30
Juiz de Direito: Dra. E…
…
PRESENTES:
Assistente: B…
Mandatária do Assistente: Dra. F…
Defensor Oficioso do arguido: Dr. G… * Quando eram 10 horas e 35 minutos, pela Mma Juiz de Direito foi declarada aberta a presente audiência, tendo de seguida proferida oralmente a decisão instrutória, que fez juntar aos autos.
Neste momento foi pedida a palavra pelo Sr. Dr. G…, ilustre defensor oficioso do arguido, que no uso da mesma disse opôr-se a que se desse sem efeito a decisão instrutória comunicada verbalmente no dia 16/02/2011, pelas 11h14.
De seguida, a Sra. Juiz fez a entrega de uma outra decisão instrutória aos presentes, elaborada em conformidade com a comunicação efectuada no dia 16/02/2011, juntando-a aos autos. * Logo, todos os presentes foram devidamente notificados, tendo a audiência sido declarada encerrada quando eram 11 horas e 55 minutos …».
11º - A fls. 352 a fls. 375 consta a decisão instrutória de 18-2-2011, que termina do seguinte modo:
«… Pelo exposto, nos termos da primeira parte do nº 1 do art. 308º do C.P.P., este tribunal decide, para julgamento em processo comum e com a intervenção do tribunal singular, pronunciar o arguido:
- D…, filho de H… e de I…, natural de Portugal, nascido em 26/1/1971, titular do B.I. nº ……., divorciado, empresário em nome individual, residente na Rua …, nº …., r/c, na Maia, pela prática dos factos descritos na acusação alternativa do assistente de fls. 247 a 260, na parte referente ao cheque de fls. 5, os quais integram um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nºs 1 b) e 3 do Cód. Penal.
…
Uma vez que o crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256º nºs 1 b) e 3 do C.P. tem natureza pública e atento o que ficou acima exposto, extraia certidão de todo o processado e remeta-a aos competentes serviços do MºPº, com vista à eventual instauração de procedimento criminal contra C…a, sacadora do cheque de fls.
Texto processado por computador e revisto pela signatária. Os versos estão em branco – cfr. art. 94º nº 2 do C.P.P.
Porto, 18/2/2011, pelas 10.35 horas».
12º - A fls. 376 a 393 consta a outra decisão instrutória, correspondente àquela que foi lida por apontamento no dia 16-2-2011, que termina do seguinte modo:
«… Aplicando estes ensinamentos ao caso dos autos, entendemos, salvo melhor opinião, não se indiciarem os enunciados requisitos dos tipos objectivo e subjectivo do crime de burla.
… Isto que dizer, que no caso dos autos, o crime de emissão de cheque sem provisão não se verifica por faltar uma das condições objectivas de punibilidade.
Pelo exposto, este tribunal decide Não Pronunciar o arguido D…, pelos crimes que o assistente lhe quer ver imputados e em consequência ordenar o oportuno arquivamento dos autos.
Fixo em 2 Uc a taxa de justiça pela realização da instrução – cfr. arts. 8º nº 2 do R.C.P., e art. 515º nº 1 a) do C.P.P.
Cessa a medida de coacção fixada ao arguido – art. 214º nº 1 b) do C.P.P.
Notifique.
Texto processado por computador e revisto pela signatária. Os versos estão em branco – cfr. art. 94º nº 2 do C.P.P.
Porto 18/2/2011 pelas 11.45 horas».*
* DECISÃO
Como sabemos, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente (art. 412º, nº 1, in fine, do C.P.P., Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do S.T.J. - cfr. acórdão do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, pág. 196 e jurisprudência ali citada e Simas Santos/Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., pág. 74 e decisões ali referenciadas), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do mesmo Código.
Por via dessa delimitação resulta que a questão a decidir prende-se com a alegada inexistência da decisão instrutória proferida às 10.35 horas do dia 18 de Fevereiro, constante de fls. 352 a 375, por ter sido proferida quando o poder jurisdicional da srª. juíza para apreciar o caso já se tinha esgotado, com a prolação da decisão anterior.* Sem que tivesse havido intervenção de tribunal superior nesse sentido, neste processo foram proferidas, por iniciativa da srª juíza do processo, duas decisões instrutórias:
- a primeira, proferida em 16-2-2011 «por apontamento verbal», que não pronunciou o arguido pelos crimes de burla e emissão de cheque sem provisão, imputados no requerimento de abertura de instrução;
- a segunda, lida em 18-2-2011, às 10.35 horas, e junta ao processo de seguida, que pronunciou o arguido pelo crime de falsificação de documento, do art. 256º, nº 1, al. b), e nº 3 do Código Penal.
É contra esta segunda decisão instrutória que o Ministério Público se insurgiu, dizendo que ela não se poderá manter por ter sido proferida quando o poder jurisdicional da juíza do caso já se tinha esgotado.
Diz o art. 666º do C.P.C., no seu nº 1, que «proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa».
É lícito, porém, proceder à sua correção, nos casos previstos nos art. 380º do C.P.P., o que não é, manifestamente, o caso dos autos.
Este princípio corporizado no art. 666º do C.P.C. aplica-se, claro, ao processo penal, ex vi do art. 4º do C.P.P..
Deste modo, proferida que seja a decisão o poder jurisdicional do juiz relativamente à matéria decidida esgotou-se. Esta regra, estabelece o nº 3 da norma, aplica-se aos despachos.
Portanto, o juiz não pode reapreciar, por sua iniciativa ou a requerimento, questão ou questões já decididas por sentença ou despacho. «Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível» [1].
Este vício, que atinge um dos princípios basilares do nosso direito, determina, mais do que a nulidade da decisão (ele não consta, sequer, do elenco legal das nulidades), a sua inexistência jurídica [2].
Fosse esta a única questão a tratar a solução do caso estava encontrada: a segunda decisão instrutória, claramente violadora do referido princípio legal, seria inexistente.
Mas a verdade é que outra questão, prévia a esta, se coloca.
Tal como resulta do processo, a primeira decisão instrutória – de não pronúncia -, foi lida em 16-2-2011 «apenas por apontamento verbal, pelo facto da sua redacção não estar concluída …».
Ora, nos termos do nº 1 do art. 307º do C.P.P. «encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia, que é logo ditado para acta …».
Porém, «quando a complexidade da causa em instrução o aconselhar, o juiz, no acto de encerramento do debate instrutório, ordena que os autos lhe sejam feitos conclusos a fim de proferir, no prazo máximo de 10 dias, o despacho de pronúncia ou de não pronúncia. Neste caso, o juiz comunica de imediato aos presentes a data em que o despacho será lido, sendo correspondentemente aplicável o disposto na segunda parte do nº 1».
Regime em tudo semelhante a este está previsto para a sentença.
Conforme determina o art. 372º, nº 2, e 373º, nº 1, ambos do C.P.P., a sentença é sempre lida publicamente sendo, depois disso, depositada na secretaria – art. 372º, nº 5, e 373º, nº 2.
Da semelhança de regimes legais retira-se, entendemos, a semelhança no tratamento de eventuais situações anómalas que aconteçam.
Uma destas situações anómalas é, precisamente, a “leitura por apontamento”.
Como se viu, do texto da lei decorre que a incorporação da decisão instrutória no processo é simultânea com a sua leitura: ou ela é ditada para a acta, e é incorporada à medida que vai sendo lida; ou é junta, em texto escrito pelo juiz, imediatamente depois da leitura.
Ou seja, a lei não contempla a figura da decisão lida por apontamento ou rascunho, com o sentido que lhe é atribuído, de indicação de indiciação/prova dos factos relevantes e indicação do dispositivo, com junção do texto escrito em momento ulterior, depois de encerrada a diligência de leitura.
«Os actos processuais, para produzirem efeitos jurídicos, obedecem a certo número de requisitos. A falta ou insuficiência destes afecta o acto na sua validade ou na sua eficácia … Num e noutro caso a consequência é a falta de efeitos jurídicos. Mas enquanto o acto inválido não produz efeitos, porque não tem, em si mesmo, consistência jurídica, pela falta de elementos essenciais que o deveriam constituir, o acto ineficaz não tem efeitos jurídicos, por falta de requisitos exteriores ao próprio acto … se à ineficácia corresponde a nulidade, à invalidade pode corresponder a nulidade ou, em certos casos, a inexistência jurídica do próprio acto …» [3].
Já vimos um caso de inexistência jurídica. Um outro caso de inexistência jurídica, agora decorrente da total falta de requisitos, é a prolação de sentença/despacho apenas verbalmente, sem que fique nos autos o seu texto escrito [4].
«O conceito de sentença inexistente constrói-se desta maneira: a sentença inexistente é o acto que não reúne o mínimo de requisitos essenciais para que possa ter a eficácia jurídica própria duma sentença. A sentença inexistente é um mero acto material, um acto inidóneo para produzir efeitos jurídicos, um simples estado de facto com a aparência de sentença, mas absolutamente insusceptível de vir a ter a eficácia jurídica de sentença … Se o acto contém o mínimo de elementos ou de requisitos indispensáveis para a existência jurídica da sentença, mas está inquinado de vícios de formação, estamos perante a figura da sentença nula; se falta esse mínimo, estamos perante a figura da sentença inexistente, isto é, estamos perante um acto que tem existência material, mas não tem existência jurídica … a sentença meramente verbal, da qual não ficou vestígio escrito, não existe, nem sequer materialmente …» [5].
Embora a nossa lei não contemple a figura do acto inexistente ele é, como vimos, amplamente acolhido na doutrina.
Aliás, há quem entenda que a norma do art. 468º do C.P.P., cuja epígrafe é “decisões inexequíveis”, versa, precisamente, sobre decisões penais inexistentes [6]. E um dos casos de inexequibilidade ali contemplado é, precisamente, o da decisão penal não reduzida a escrito.
E a jurisprudência há muito acolheu o conceito de decisão judicial inexistente.
Já em 1997 foi decidido que «não estando … corporizada num documento escrito, a sentença enferma de um … vício de essência …» [7]. Em 27-6-2001 decidiu-se, agora no Porto [8], que «a sentença verbal não reduzida a escrito … padece do vício da inexistência jurídica …» acrescentando, com muita acuidade, que mal se compreenderia que uma sentença não traduzida e representada em escrita se tivesse como uma verdadeira sentença, quando nem sequer é exequível. O mesmo se pode ler num outro acórdão desta relação [9]: «se a sentença consistiu numa pronúncia oral, que não chegou a ser reduzida a escrito, é claro que não existe sentença» [10].
Transpondo todo este raciocínio para o nosso caso, por total identidade de razões, como afirmámos, temos, então, que a decisão instrutória de 16-2-2011, lida por apontamento verbal, é inexistente.
Sendo esta decisão inexistente, sendo ela insusceptível, por isso, de gerar quaisquer efeitos – nomeadamente o efeito negativo de caso julgado, qual seja o de impedir nova decisão sobre a mesma causa -, então a segunda decisão instrutória renasce, digamos assim, porque quando foi proferida já o não foi em violação do princípio consignado no art. 666º do C.P.C. (esgotamento do poder jurisdicional do juiz) [11].
Mas nem por isso esta segunda decisão instrutória resiste.
Entre a primeira e a segunda decisões instrutórias há total identidade dos factos dados como indiciados e como não indiciados. No entanto, a decisão final é diferente: enquanto que na primeira a decisão é de não pronúncia pelos crimes de burla e emissão de cheque sem provisão, imputados no RAI, já na segunda a srª juíza pronunciou o arguido pela prática de um crime de falsificação de documento, ou seja, por crime diferente.
Segundo a alínea f) do art. 1º do C.P.P. é substancial a alteração que «tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Sobre a alteração substancial em sede de instrução diz o nº 3 do art. 303º do C.P.P. que a «alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso …». Diferentemente sucede com a alteração não substancial, que pode ser considerada, tal como permite o nº 1. E quando a alteração incida apenas sobre a qualificação jurídica dos factos indiciados, pode o tribunal conhecê-la, tal como permite o nº 5 desta norma.
Aqui chegados temos, então, que a decisão instrutória lida por apontamento em 16-2-2011 é inexistente não produzindo, por isso, qualquer efeito.
Quanto à segunda, proferida em 18-2-2011, ela incorpora uma alteração.
Se se entender que se trata de uma alteração substancial, não poderá ser conhecida no processo.
Diferentemente, caso se trate de alteração não substancial, então tem o juiz que comunicar a alteração ao defensor, tem, depois, que interrogar o arguido sobre ela e conceder-lhe, sendo requerido, prazo para preparação da defesa, tudo em conformidade com o estabelecido no nº 1 do art. 303º do C.P.P.
De qualquer modo esta segunda decisão é nula, porque não se contem nos limites definidos no requerimento de abertura de instrução.
A única forma de colmatar as excentricidades ocorridas é fazer regressar o processo à fase do debate instrutório para, aqui, se decidir se ocorre, ou não, alguma alteração, substancial ou não substancial, quanto ao âmbito do processo, tal como foi definido no requerimento de abertura de instrução.
Dependendo da decisão, terá a srª. juíza que tomar uma ou outra atitude, em conformidade com o estabelecido na lei.* DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, na procedência do recurso, declara-se a inexistência da decisão instrutória de 16-2-2011 e a nulidade da decisão proferida a 18-2-2011, determinando-se o regresso do processo à fase do debate instrutório para, decidindo-se pela verificação de uma alteração substancial ou não substancial dos factos, se decidir, em conformidade com o disposto no art. 303º do C.P.P.
Sem custas.
Elaborado em computador e revisto pela relatora, 1ª signatária – art. 94º, nº 2, do C.P.P.
Porto, 2011-07-13
Olga Maria dos Santos Maurício
Artur Manuel da Silva Oliveira
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[1] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V., 1984, pág. 126.
[2] A título meramente exemplificativo veja-se o acórdão desta relação de 15-12-2010, relatado pelo sr. desembargador Machado da Silva.
[3] Manuel Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1955, pág. 262/263.
[4] Paulo Cunha, Processo Comum de Declaração, 2ª. ed., pág. 359.
[5] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, 1984, pág. 114 a 119.
[6] É o caso de Maia Gonçalves e Paulo Pinto de Albuquerque.
[7] Acórdão da relação de Évora de 25-2-1997, relatado pelo sr. desembargador Rui Maurício, CJ ano XXII, tomo I, pág. 311 e segs.
[8] Acórdão relatado pelo sr. desembargador Manso Rainho, CO ano XXVI, tomo III, pág. 246 e segs.
[9] De 5-3-2003, relatado pela srª. desembargadora Isabel Pais Martins, ano XXVII, tomo I, pág. 214 e segs.
[10] Ainda no mesmo sentido vide os acórdãos da relação de Lisboa de 12-1-2005 e 23-6-2005, proferidos nos processos 8439/04-3 e 4544/05-9.
[11] Assiste, pois, razão ao assistente quando se pronunciou nestes exactos termos. |