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ECLI:PT:TRP:2024:280.24.6YLPRT.A.P1.D7

Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES

Descritores: PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO LOCADO DIREITO A HABITAÇÃO

Processo: 280/24.6YLPRT-A.P1

Nº Convencional: JTRP000

Nº do Documento: RP20241125280/24.6YLPRT-A.P1

Data do Acordão: 25/11/2024

Votação: UNANIMIDADE

Texto Integral: S

Nível de acesso: 1

Meio Processual: APELAÇÃO

Decisão: CONFIRMADA

Indicações eventuais: 5ª SECÇÃO

Área Temática: .

Sumário

I - No âmbito do procedimento especial de despejo, depois de deduzida oposição, e proferida que seja uma decisão que titule a desocupação do locado, e esta desocupação não venha a ter lugar voluntariamente, a execução, ou seja, a efetivação dessa mesma desocupação não será levada a cabo num tribunal mediante um processo executivo clássico, mas no BNA ao qual regressa para esse efeito (cf. artigos 15.º-J e 15.º- K do NRAU).
II - Nessas situações e não tendo sido pedido o deferimento da desocupação do locado em simultâneo com a dedução de oposição [cf. nº 1 al. b) do artigo 15.º-D do NRAU], não pode tal pedido ter lugar posteriormente e, concretamente, no âmbito do artigo 864.º do CPCivil cujo normativo abrange apenas as situações em que a formação do título executivo ocorre numa ação clássica de despejo, precisamente a que vem referida no artigo 14.º do NRAU.
III - Portanto, no regime vigente do CCivil e do NRAU (este sem as alterações introduzidas pela Lei nº 56/2023, de 06.10) apenas podem servir de título executivo para obter hoje a entrega de coisa imóvel arrendada: a) um título judicial, sentença condenatória proferida numa clássica ação de despejo, título executivo nos termos do art.º 703.º, nº 1, al. a) do CPCivil. A execução seguirá os termos do art.º 862.º do CPCivil; b) um título judicial para entrega do locado, formado nos termos do art.º 15.º-I nº 11 do NRAU, título executivo nos termos do art.º 703º, nº1, al. a) do CPCivil. A execução seguirá os termos regulados no NRAU; c) um título extrajudicial para entrega do locado, formado nos termos do art.º 15º-E do NRAU, título executivo nos termos do art.º 703.º, nº1, al. d) do CPCivil. A execução seguirá os termos regulados no NRAU.
IV - O direito à habitação constitui um direito a prestações positivas do Estado e de outros entes públicos territoriais, os quais são os seus sujeitos passivos, não sendo exercitável em via direta contra tais entidades e, muito menos, contra particulares. Sob a reserva do possível, cabe ao Estado desenvolver políticas que fomentem a habitação, designadamente para os mais carenciados.
V - Em caso de despejo de indivíduos ou famílias vulneráveis, cabe ao Município, ao ISS, IP e ao IHRU, IP o acompanhamento da situação, cabendo a tais entidades diligenciar pela procura de soluções de realojamento (Artigo 13º da Lei nº 83/2019, de 3.9 e Artigo 4º do Decreto-lei nº 89/2021, de 3.11).

Decisão Texto Parcial

Não disponível.

Decisão Texto Integral

Processo nº 280/24.6YLPRT-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Execução do Porto-J1
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª. Ana Paula Amorim
2º Adjunto Des. Drª. Teresa Pinto da Silva
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
Por apenso ao procedimento especial de despejo, AA e esposa BB vieram requerer o diferimento de desocupação do locado, alegando sumariamente que são idosos, têm problemas de saúde e ainda não conseguiram encontrar um imóvel alternativo, por auferirem a quantia global de €1.292,04 e os preços do mercado de arrendamento na cidade da Póvoa de Varzim serem muito elevados.
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Conclusos os autos foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o assim requerido.
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Não se conformando com o assim decidido vieram os Requerentes interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
A) A sentença proferida em 09/09/2024, Ref.ª 463121919, que indeferiu liminarmente o requerimento de Diferimento de Desocupação do Locado faz uma errada interpretação e aplicação das normas de direito aplicáveis;
B) O art.º 864º nº 1 do C.P.C., não obsta a que o pedido de Diferimento de Desocupação do Locado arrendado não possa ser formulado previa e preventivamente em relação à instauração da ação executiva, face ao teor da decisão que autoriza a entrada dos Senhorios;
C) Constitui violação da garantia constitucional do Direito à Habitação do art.º 65.º a C.R.P. e dos artigos 2.º, 7.º, 10.º e 13.º da Lei de Bases da Habitação a sentença que decreta, “a decisão vale como autorização de entrada imediata no domicílio”, sem considerar um período de tempo mínimo suficiente para que os despejados possam ser alojados pelo Estado;
D) Apesar de interposto recurso de tal decisão, foi ao mesmo fixado efeito devolutivo, por força da norma legal, o que permite aos Apelados executarem a decisão recorrida na pendência desse recurso, ou seja, colocar os Recorrentes na rua súbita e inopinadamente;
E) O Direito à Habitação dos Apelados encontra-se por isso em situação de risco iminente, não restando aos Apelantes outra opção que não fosse a da apresentação do Incidente de Diferimento de Desocupação do Locado;
F) Incidente que não pode ficar dependente da instauração da execução de sentença por parte dos Apelados, sob pena de consubstanciar uma diminuição e impossibilidade por parte dos Apelantes do exercício de um dos direitos que se encontra previsto e regulado na lei;
G) Por isso o incidente foi interposto tempestivamente, porque deduzido até antes da execução, momento último para a sua dedução;
H) A decisão recorrida é nula e de nenhum efeito por violar o disposto no nº 1 do art.º 864º do C.P.C., o art.º 65º da C.R.P. e os arts.º 2.º, 7.º, 10.º e 13.º da Lei de Bases da Habitação.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se havia, ou não, fundamento para o indeferimento liminar do incidente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A dinâmica factual a ter em consideração para a resolução da questão supra enunciada é a que resulta do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Isto dito e como supra se referiu é apenas uma a questão que vem posta no recurso:
a)- saber se havia, ou não, fundamento para o indeferimento liminar do incidente.
Como se evidencia da decisão recorrida aí se concluiu pela manifesta extemporaneidade do requerimento de diferimento de desocupação do locado, estribado na circunstância de que ele não foi deduzido no prazo da oposição ao procedimento especial de despejo movido pelos Requeridos.
É contra este entendimento que se insurgem os apelantes, alegando em resumo que se o executado pode “dentro do prazo de oposição à execução” (cfr. artigo 864.º, nº 1 do CPCivil) apresentar o requerimento de diferimento de desocupação do locado, seguro é que esse será o prazo limite, ou seja, da interpretação de tal norma, não resulta, à contrário sensu, que não seja possível, antes da existência da execução, os ainda “não executados” formularem o pedido de diferimento de desocupação do ocado, preventivamente em relação à instauração da ação executiva.
Quid iuris?
Nos termos do art.º 15.º-D, n.º 1 da Lei n.º 6/2006, de 27/02, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 56/2023, de 06/10 (doravante, NRAU atual), intentado procedimento especial de despejo, o BAS (Balcão do Arrendatário e do Senhorio) “expede imediatamente notificação para o requerido, por carta registada com aviso de receção, para, em 15 dias, este:
a) Desocupar o locado e, sendo caso disso, pagar ao requerente a quantia pedida, acrescida da taxa por ele liquidada;
b) Deduzir oposição à pretensão e ou requerer o diferimento da desocupação do locado, nos termos do disposto no artigo 15.º-M.”(negrito e sublinhados nossos).
Por conseguinte, caso tenha sido movido procedimento especial de despejo pelos senhorios contra os inquilinos com vista à desocupação do locado–como aconteceu no caso sub judice–, afigura-se-nos que o incidente de diferimento de desocupação do locado deve ser apresentado no prazo previsto para a dedução da oposição a tal pretensão, ainda que a oposição não tenha sido deduzida.
Para além de esta interpretação nos parecer resultar diretamente do art.º 15.º-D, n.º 1 do NRAU atual–já que não se compreenderia que se fizesse menção ao prazo para requerer o diferimento de desocupação do locado, no mesmo prazo da oposição, em alternativa a esta–, é a que melhor se coaduna com o artigo 865.º, n.º 1, al. a) ex vi do art.º 15.º-M do NRAU atual e com os artigos 15.º-I, n.º 11 e 15.ºJ, n.º 5 e 6 do mesmo diploma legal.
Por sua vez estatui o artigo 864.º do CPCivil com a epígrafe “Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação”, no seu n.º 1: “No caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo para a oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis e indicar as testemunhas a apresentar até ao limite de três.”
É desta forma concedida ao arrendatário a faculdade de, no âmbito do procedimento executivo de entrega do imóvel arrendado para a sua habitação, solicitar o diferimento da desocupação do arrendado, por razões sociais imperiosas.
Constata-se assim, que o legislador veio consagrar um apoio, que é transitório, por razões sociais imperiosas que identifica, ao executado arrendatário que se apresenta com carência de meios económicos ou financeiros para suportar o pagamento da renda de um imóvel para habitação, estabelecendo em cinco meses, o prazo máximo para o diferimento da desocupação.
Tal como nos dizem Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo[1], “Reflete aqui o legislador uma preocupação de harmonização prática dos dois direitos conflituantes em jogo: o interesse do executado em retardar a entrega do imóvel em causa e o interesse do senhorio em não ficar economicamente prejudicado com esse diferimento, tando mais que já dispõe de título que lhe concede a via para a entrega efetiva do imóvel.
Isto dito, no caso concreto o incidente foi deduzido por apenso ao procedimento especial de despejo como resulta, aliás, do requerimento inicial apresentado pelos apelantes, pois que, não foi instaurada qualquer execução pelo apelado.
Ora, assim sendo, torna-se evidente que o pedido do deferimento da desocupação teria de ter sido requerido nos 15 dias seguintes à notificação dos apelantes nos termos do preceituado no já citado artigo 15.º-D.
Bom, mas obtemperam os apelantes, se o executado pode “dentro do prazo de oposição à execução” (cfr. artigo 864.º, nº 1 do CPCivil) apresentar o requerimento de diferimento de desocupação do locado, seguro é que esse será o prazo limite, ou seja, da interpretação de tal norma, não resulta, à contrário sensu, que não seja possível, antes da existência da execução, os ainda “não executados” formularem o pedido de diferimento de desocupação do ocado, preventivamente em relação à instauração da ação executiva.
Acontece que, salvo o devido respeito, existe aqui algum equívoco por parte dos apelantes.
Analisando.
Como se extrai, por recurso à consulta do histórico do processo especial de despejo de que estes autos são apenso, os apelantes, depois de notificados, vieram deduzir oposição à pretensão de desocupação do locado impetrada pelo apelado.
Por mor desta oposição, o BAS apresentou os autos à distribuição (cf. nº 1 do artigo 15.º-H do NRAU) e tendo aí seguido a sua tramitação normal foi, a final, proferida decisão com a seguinte parte dispositiva:
“Nestes termos e com os fundamentos que antecedem:
- condeno os requeridos a procederem à entrega do locado ao requerente no prazo de 30 (trinta) dias, declarando que esta decisão vale como autorização de entrada imediata no domicílio;
- não condeno os requeridos no pagamento ao requerente de rendas no reclamado montante de €640 (seiscentos e quarenta euros);
- julgo improcedentes os pedidos de condenação de requerente e requeridos como litigantes de má-fé, em multa e indemnização”.
Portanto, tendo sido julgada improcedente a oposição, a decisão tinha de respeitar o que se encontra plasmado no nº 11 do artigo 15.º-I do NRAU cujo teor é o seguinte:
Quando a oposição seja julgada improcedente, a decisão condena o requerido a proceder à entrega do imóvel no prazo de 30 dias, valendo tal decisão como autorização de entrada imediata no domicílio”.
Ora, a partir da prolação desta decisão, ao contrário do que parecem entender os apelantes, já não existe qualquer fase judicial para a sua execução.
Efetivamente, como refere Elsisabeth Fernandes[2]O PED tem, assim, uma natureza tendencialmente extrajudicial, mas transforma-se numa ação declarativa a tramitar no tribunal, como um processo especial e urgente, despoletado por iniciativa do próprio arrendatário ao opor-se. Carateriza-se por ser um “processo híbrido” e “evolutivo”, pois começa por ser uma injunção, para passar a ser um processo judicial se houver oposição do arrendatário, para poder ser, no âmbito do mesmo procedimento e depois de formado o título executivo, uma execução (não judicial) para entrega de coisa certa, ou seja, para efetivação do despejo(negrito e sublinhados nossos).
Portanto, obtida nessa ação uma decisão judicial que titule a desocupação do locado, e esta desocupação não venha a ter lugar voluntariamente, a execução, ou seja, a efetivação dessa mesma desocupação não será levada a cabo num tribunal mediante um processo executivo clássico, mas no BNA ao qual regressa para esse efeito, procedimento que, aliás, resulta da própria lei.
Efetivamente, preceitua o artigo 15.º-J do NRAU sob a epígrafe “Desocupação do locado e pagamento das rendas em atraso” o seguinte:
1 - Conferida autorização judicial para entrada no domicílio, o agente de execução ou o notário desloca-se imediatamente ao locado para tomar a posse do imóvel.
(…)
3 - O agente de execução ou o notário podem solicitar diretamente o auxílio das autoridades policiais sempre que seja necessário o arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efetivar a posse do imóvel, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 6 do artigo 757.º do Código de Processo Civil.
E regulando depois o artigo 15.º-K do mesmo diploma legal o destino dos bens estipula o seguinte:
1 - O agente de execução ou o notário procede ao arrolamento dos bens encontrados no locado.
2 - O agente de execução ou o notário notifica o arrendatário para, no prazo de 15 dias após a tomada da posse do imóvel, remover todos os seus bens móveis, sob pena de estes serem considerados abandonados.
3 - Quando não tenha sido possível proceder à notificação do requerido, prevista no número anterior, o agente de execução ou o notário afixa, na data em que procede ao arrolamento dos bens encontrados, notificação na porta do imóvel, considerando-se o requerido notificado para efeitos do disposto no número anterior.
Isto dito, perguntar-se-á: se é assim qual a razão de ser o estatuído no artigo 864.º do CPCivil quando aí permite, dentro do prazo de oposição à execução, requerer o diferimento da desocupação do locado?
Como se torna evidente o normativo em questão abrange apenas as situações em que a formação do título executivo ocorre numa ação clássica de despejo, precisamente a que vem referida no artigo 14.º do NRAU.
O que significa que, atualmente, os títulos executivos para obter hoje a entrega de coisa imóvel arrendada são os seguintes:
● Um título judicial, sentença condenatória proferida numa clássica ação de despejo (artigo 14.º do NRAU), título executivo nos termos do art.º 703º, nº1, al. a) do CPC. A execução seguirá os termos do art.º 862.º e ss. do CPCivil;
● Um título judicial para entrega do locado, formado nos termos do art.º 15.º-I nº 11 do NRAU, título executivo nos termos do art.º 703.º, nº 1, al. a) do CPCivil. A execução seguirá os termos regulados no NRAU;
● Um título extrajudicial[3] para entrega do locado, formado nos termos do art.º 15.º-E do NRAU, título executivo nos termos do art.º 703º, nº1, al. d) do CPC. A execução seguirá os termos regulados no NRAU.
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Do que vem de se expor é manifesto que, tal como se decidiu, o requerimento para a desocupação do locado é extemporâneo, razão porque bem indeferido foi.
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Alegam os recorrentes que não tendo sido atribuído efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão que os condenou à entrega do locado, poderão ser postos na rua de um dia para o outro, sem direito a usar qualquer habitação, o que configura a manifesta violação do direito fundamental, constitucionalmente consagrado no art.º 65º da Constituição da República Portuguesa, e do seu reconhecimento expresso e previsão na Lei de Bases da Habitação–Lei nº 83/2019, de 3 de setembro.
Não se questiona que o direito à habitação goza de justificada tutela constitucional-cf. art.º 65.º da CRPortuguesa, que proclama, no seu artigo 1.º que “Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
Importa, todavia, desde logo, enfatizar que o procedimento agora impetrado pelos apelantes (diferimento da desocupação do locado) e que o tribunal recorrido, e bem, indeferiu, poderia em devido tempo ter sido formulado.
Na verdade, ainda que que tivessem deduzido oposição à pretensão do Requerente/apelado podiam, simultaneamente, ter formulado pedido de diferimento de desocupação do locado para acautelar a situação de a oposição vir a ser julgada improcedente [cf. nº 1 al. b) do artigo 15.º-D do NRAU] coisa que, manifestamente, não fizeram, além de que, na oposição nem sequer fizeram referência a qualquer das situações que motivem a suspensão e ou diferimento da desocupação do locado como o deviam ter feito [cf. o nº 3 al. d) do artigo 15.º-F do NRA].
Isto dito, o direito à habitação consagrado constitucionalmente não constitui um direito absoluto, que permita ao particular/executado exercitá-lo em autotutela contra terceiros, incluindo contra o exequente, na sequência do decretamento do despejo.
Tendo por conteúdo “o direito a uma morada digna, onde cada um possa viver com a sua família[4] o direito à habitação encontra-se consagrado como um direito social, que a Constituição acolhe numa dupla dimensão, isto é, enquanto direito que gera para o Estado tanto o dever de omitir as ações suscetíveis de o comprometer ou afetar, como ainda a obrigação de promovê-lo e protegê-lo, através da criação e manutenção dos pressupostos de facto e de direito necessários à respetiva defesa e satisfação.[5]
Encontrando-se o legislador ordinário constitucionalmente vinculado à edição de normas de promoção e proteção do direito à habitação, o regime jurídico do arrendamento urbano, atualmente constante do NRAU, inscreve-se justamente no âmbito instrumentos de direito ordinário mobilizados para aquele fim.
Ora, no âmbito da concretização, através dos institutos de direito ordinário, dos chamados imperativos jurídico-constitucionais de tutela, o legislador dispõe, em regra, de um amplo espaço de livre apreciação, valoração e modelação dos instrumentos escolhidos em ordem à realização daquele desiderato.
É esta vertente de direito social que implica um conjunto de obrigações positivas por parte do Estado, legitimando pretensões a determinadas prestações, que vem acentuada no artigo 65.º da CRP, particularmente nos seus n.ºs 2 a 4.
Significa isto que, sendo o direito à habitação configurado como um direito à proteção do Estado, as pretensões nele fundadas não têm como destinatários diretos os particulares, nas relações entre si, mas antes o Estado, as regiões autónomas e as autarquias, a quem são impostas um conjunto de incumbências no sentido criar as condições necessárias tendentes a assegurar tal direito. A garantia de tal direito envolve, deste modo, a adoção de medidas no sentido de possibilitar aos cidadãos o acesso a habitação própria (cf. o n.º 3 do artigo 65.º da CRP).
Contudo, o mesmo direito não se esgota nem se identifica com o direito a ser proprietário de um imóvel onde se tenha a habitação, sendo realizável também por outras vias, designadamente através do arrendamento.
Decorre do que fica dito que o direito à habitação constitui um direito a prestações positivas do Estado e de outros entes públicos territoriais, os quais são os seus sujeitos passivos, não sendo exercitável em via direta contra tais entidades e, muito menos, contra particulares. Sob a reserva do possível, cabe ao Estado desenvolver políticas que fomentem a habitação, designadamente para os mais carenciados.
Isto mesmo decorre da Lei da Habitação (Lei nº 83/2019, de 3.9) cujo artigo 13.º sob a epígrafe “Proteção e acompanhamento no despejo” que:
1 — Considera-se despejo o procedimento de iniciativa privada ou pública para promover a desocupação forçada de habitações indevida ou ilegalmente ocupadas.
2 — A lei estabelece os termos e condições em que a habitação é considerada indevida ou ilegalmente ocupada.
3 — O despejo de habitação permanente não se pode realizar no período noturno, salvo em caso de emergência, nomeadamente incêndio, risco de calamidade ou situação de ruína iminente, casos em que deve ser proporcionado apoio habitacional de emergência.
4 — O Estado, as regiões autónomas e as autarquias locais não podem promover o despejo administrativo de indivíduos ou famílias vulneráveis sem garantir previamente soluções de realojamento, nos termos definidos na lei, sem prejuízo do número seguinte.
5 — Em caso de ocupação ilegal de habitações públicas, o despejo obedece a regras procedimentais estabelecidas por lei.
6 — Sempre que estejam reunidas as condições para o procedimento previsto no n.º 1, são garantidos pelo Estado, nomeadamente:
a) Desde o início e até ao termo de qualquer tipo de procedimento de despejo, independentemente da sua natureza e motivação, a existência de serviços informativos, de meios de ação e de apoio judiciário;
b) A obrigação de serem consultadas as partes afetadas no sentido de encontrar soluções alternativas ao despejo;
c) O estabelecimento de um período de pré-aviso razoável relativamente à data do despejo;
d) A não execução de penhora para satisfação de créditos fiscais ou contributivos, nos termos da lei, quando esteja em causa a casa de morada de família;
e) A existência de serviços públicos de apoio e acompanhamento de indivíduos ou famílias vulneráveis alvo de despejo, a fim de serem procuradas atempada e ativamente soluções de realojamento, nos termos da lei.
7 — As pessoas e famílias carenciadas que se encontrem em risco de despejo e não tenham alternativa habitacional têm direito a atendimento público prioritário pelas entidades competentes e ao apoio necessário, após análise caso a caso, para aceder a uma habitação adequada.
Resulta deste acervo normativo que, se os requerentes não tenham condições económicas efetivas de providenciar pelos próprios meios uma solução de habitação, cabe-lhes-conforme deflui destes normativos–dirigir-se ao respetivo Município, ao IHRU, IP e/ou ao ISS, IP, sendo estas as entidades públicas incumbidas de diligenciar pela obtenção de uma solução habitacional, mesmo transitória.
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Improcedem, desta forma, todas as conclusões formuladas pelos apelantes e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 25 de novembro de 2024
Manuel Domingos Fernandes
Ana Paula Amorim
Teresa Pinto da Silva
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[1] In. A Ação Executiva Anotada e Comentada, pág. 581, em comentário a este art.º 864.º do CPCivil.
[2] O “O procedimento especial de despejo, revisitando o interesse processual e testando a compatibilidade constitucional” in Revista Julgar, n.º 19, 2013, p. 78.,
[3] Porque emitido por uma entidade administrativa, o BNA.
[4] Cf. Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Volume I, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2017, p. 958 e ss.
[5] Neste sentido, sobre a dupla função vinculativa dos direitos fundamentais, Nesta última aceção-de resto, pacífica na jurisprudência deste Tribunal (cf. Acórdãos n.º 130/92, 131/92, 806/93, 32/97 e 590/04)-, o direito fundamental à habitação apresenta-se como um direito a ações positivas do Estado, nas quais vão incluídas quer as prestações fácticas quer as prestações normativas necessárias a assegurar a todos, por via da propriedade ou do arrendamento, a obtenção e conservação de uma “morada decente, para si e para a sua família” (Acórdão n.º 151/92).

Descritores:
 PROCEDIMENTO ESPECIAL DE DESPEJO DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO LOCADO DIREITO A HABITAÇÃO